Por Fernanda Franco
OS DOIS MORAM EM SANTOS E SÃO CICLISTAS de longa distância. Cláudio Clarindo, 30, e Júlio Paterlini, 41, nomes conhecidos desse esporte, dividiram o mesmo espaço de treino e competiram diretamente apenas uma vez – com Paterlini levando a melhor. Mas, justamente por serem os melhores em sua modalidade, eram adversários mortais há três anos. Decididos a Race Across America (RAAM) na categoria solo, partiram para os Estados Unidos sem trocarem uma palavra sobre a prova, apesar de serem os únicos representantes brasileiros nessa categoria (havia também um quarteto verde-amarelo na disputa, a equipe Vencendo Desafios). Ambos largaram para os 4.898 km com um objetivo: chegar na frente do outro, não importasse em qual colocação. No caminho, teriam de cruzar 15 estados norte-americanos no tempo-limite de 12 dias estabelecido pela organização.
“Eu perguntava sobre o Paterlini em cada parada e não estava nem aí para mais ninguém. Numa das vezes, me disseram que ele estava colado na gente e que era melhor não parar para tomar banho”, conta Clarindo, relembrando a rixa que contaminou também a equipe de apoio nos primeiros cinco dias de prova. E foi justamente a vontade de não serem vencidos um pelo outro que os manteve inteiros até a metade da competição. Depois da metade – e de todas as intempéries que passaram em cima da bike –, a rivalidade se transformou em parceria, o que permitiu que eles cruzassem a linha de chegada juntos, depois de 11 dias e 15 horas de prova.
Clarindo ficou com a 11a colocação e Paterlini com a 12a, entre os 24 atletas que largaram e os 19 que terminaram – um marco no ciclismo nacional, já que foi a primeira vez que um latino-americano terminou a competição. Num bate-papo na orla de Santos, eles contaram à Go Outside quais foram as sensações e dificuldades de completar a RAAM. Depois, colocamos eles cara a cara para fazer as perguntas que ficaram sem resposta durante a prova.
GO OUTSIDE: Qual era a treta que havia entre vocês e como isso mudou durante a prova?
Cláudio Clarindo – Somos os dois melhores atletas de uma modalidade e moramos em Santos. Tivemos muitos arranca-rabos competitivos e era impossível não existir rivalidade. Mas depois da RAAM posso dizer que não esquento mais a cabeça com essas coisas. Brigar para quê?
Júlio Paterlini – No auge da disputa na RAAM, resolvemos parar. A gente não precisava provar mais nada para ninguém, era só terminar o que tínhamos ido fazer, que era cruzar a linha de chegada.
Em que momento vocês se uniram na prova?
JP – A gente se via quase todo dia, até o quinto dia, quando dei uma parada por causa de uma febre. Aí o Claudio abriu vantagem. Quando me recuperei, já havia passado mais da metade do trajeto.
CC – Nos encontramos novamente quando faltavam dois dias para chegarmos ao fim, antes de uma cadeia de três montanhas de 3.000 metros. O Júlio vinha tirando a diferença, mas não tinha parado para dormir e estava com o joelho ferrado. Era noite, eu estava com dois outros ciclistas e resolvemos descansar antes da subida. Quando eu estava recomeçando a pedalar, o Júlio passou voando. Mirei e fui atrás. Os outros dois caras desistiram porque viram que a briga era pessoal. Subimos as três montanhas num cacete louco, irracional, descendo a 60 km/h. O Júlio punha um ritmo na subida que eu não acreditava, isso com mais de 3.000 quilômetros de prova nas costas. E sobe, sobe, sobe. E desce, desce e desce. Nossas equipes de apoio já estavam doidas, tava na cara que ia dar merda ali. Era melhor parar, e foi o que fizemos. Mas o Julio foi muito guerreiro: estava quatro horas e meia atrás de mim e me buscou.
Vocês choraram em algum momento?
CC – Quem nunca chorou, aprende a chorar na RAAM. Tenho a foto do meu filho na bike e quando estava estressado olhava para ela e desabava. Teve um dia que pedi para o carro de apoio se afastar e me deixar na frente por umas duas ou três horas. Chorei de soluçar.
JP – Ah, chora. Mas não de dor.
Qual era a estrutura de apoio de vocês?
CC – Eu fui com cinco tiozinhos de 50 anos. Todos ótimos: um ortodontista, dois empresários, um cinegrafista (que me filma desde moleque) e meu primeiro patrocinador, grande amigo e triatleta. Minha bike era emprestada e a gente tinha um motor home e um carro equipado com GPS e notebook.
JP – Eu tinha 10 pessoas comigo. Uma nutricionista, que sem ela eu não tinha terminado, pois a alimentação é muito importante nessa prova. Um fisoterapeuta – o que foi ótimo, pois eu estava com o joelho ruim. E eu tinha dois capitães: uma era a Giani. Se eu pedalar 26 horas, ela fica o tempo todo acordada, me dando comida na boca de 20 em 20 minutos. No começo, inclusive, eu não conseguia dormir no motor home de tanta gente me paparicando. Aí mudei minha estratégia e passei a dormir no pace car, o carro que acompanha o ciclista, sentado mesmo.
Quanto tempo vocês pedalavam por dia ?
CC – Eu tinha uma planilha de 400 km no carro. E se chegasse a 380 km e ainda tivesse três horas para acabar o dia, o negócio era acelerar porque você não sabia se estaria bem no outro dia.
JP – No começo, quando estávamos naquela disputinha, eu estava despreocupado porque estava bem. Tinha rodado 2.500 km, o que equivale a 500 km/dia. Quando tive febre, estabelecemos que eu tinha que fazer 400 km por dia.
GO – E como foi o episódio com o francês Jean Marc Velez, que terminou em décimo lugar ?
CC – Eu e o Julio vínhamos lado a lado conversando, curtindo a prova. Era de noite, já estávamos perto do final e o francês passou do meu lado atacando e dando risada. Era aniversário do Paterlini no dia seguinte e eu falei que ele iria ganhar um presente. Fui atrás do francês que nem um louco. Ultrapassei e fiquei lá na frente. Torci para o Júlio entender o recado, porque o francês estava fraco e a gente estava forte. De repente, vi uma luzinha vindo. Gritei: “Júlio, é você?” E ele respondeu “Acelera!”. Aí fomos embora.
JP – Depois que passei o francês, encostei no Clarindo, que me deu vácuo um pouco, como as equipes fazem em prova de ciclismo. O regulamento permite pedalar até 15 minutos juntos, mas os caras pararam o carro do lado e tiraram fotos para entrar com recurso. A organização ligou para o meu carro, dizendo que o Clarindo tinha que cruzar a linha de chegada na minha frente e que deveríamos deixar o francês ir embora. Se não fosse isso, seríamos 10o e 11o.
CARA A CARA
Claudio e Julio passaram mais tempo na RAAM tentando fugir um do outro do que pedalando juntos. Aqui, abrimos espaço para eles perguntarem um ao outro o que não tiveram a chance quando estavam em cima de suas magrelas.
CC – Como foi treinar para o RAAM
JP – Como eu tenho 30 anos de ciclismo, minha base de treinamento está feita. Três meses antes da prova, comecei a acordar todos os dias às 4:30 da manhã e treinar até as 8:30, além de musculação e natação. No domingo, eu fazia um treino mais longo, de oito horas a 10 horas. Também larguei minha cervejinha e entrei numa dieta alimentar. Quando eu fui para o Cape Epic [prova de mountain bike de 900 km disputada anualmente na África do Sul], em abril deste ano, perdi cinco quilos, o que me ajudou muito. Nas últimas três semanas, pedalava 1.000 km por semana com dois treinos noturnos.
JP – O que o levou a fazer uma prova tão longa?
CC – Quando começamos com longa distância em, 2001, fiz uma prova de 800 km. E comecei a escutar que fazer a RAAM na categoria solo era impossível. E eu gosto de desafios. Aquilo foi mexendo comigo. Assim como você, eu trilhei o caminho da longa distância, e o teto máximo era a RAAM. Fui trabalhando essa idéia. Eu já sabia que isso iria acontecer.
CC – Você teve várias adversidades. O que mais te marcou na RAAM ?
JP – No quinto dia, eu tive febre alta. Quando olhei minha cara inchada no espelho, lembrei de quando eu abandonei o L’Etape du Tour [prova em que ciclistas amadores percorrem o trajeto de uma das etapas do Tour de France], no ano passado, por causa de uma desidratação. É uma frustração muito grande desistir de uma prova longa dessas.Aquele dia no RAAM, eu tinha acordado às 4 da manhã e foram 20 horas de pedal, 400 e tantos quilômetros. Até tomei um banho gelado para baixar a febre, mas achei que poderia me trazer problemas porque ainda tava na metade da prova. Mesmo assim, não pensei abandonar. Meu maior medo era não completar a prova.
JP – Que imagem mais ficou na sua mente ?
CC – Um dos pontos de apoio era num Mac Donald’s e eu estava mal. Cheguei e estava a maior festa. Eu, que já tinha passado tanto tempo sozinho, adorei. Sentei na minha cadeirinha e a galera vinha me cumprimentar. De repente, sumiu todo mundo e eu olhava pra estrada e pensava que tinha que voltar a pedalar, todo fodido, com a boca toda cortada pelo sol e vento. E no dia seguinte também. Deu vontade de parar. Aí veio uma menininha correndo para brincar comigo, e o fato dela ter me dado atenção naquela hora me deu pique pra pegar a bike e sair pedalando. Sou feio pra diabo e estava ainda pior. Os caras da minha equipe me chamavam de orangotango, porque o forro era laranja e tava para o lado de fora da bermuda.
CC – Valeu a pena ?
JP – Sim, valeu. Agora sou um ciclista realizado. Tive várias frustrações na minha carreira. Uma delas foi quebrar o braço antes de disputar uma Olimpíada. Na categoria solo, não pretendo mais disputar a RAAM porque é impossível com a estrutura de vida que tenho. Só se tiver um patrocínio forte e duas pessoas como staff permanente na minha vida por oito meses. O vencedor da prova este ano, Jure Robic, 45, fez uma prova de 2.000 km na Eslovênia e venceu, por isso se inscreveu. Ele faz uma prova de 800, outra de 1.200 e vai pro RAAM porque já está preparado. Aqui a gente faz uma prova e fica o resto do ano todo parado. Se eu voltar, é para fazer em duplas com o objetivo de bater o recorde ou ganhar.
JP – E a nossa disputa, ajudou?
CC – Se não fosse a disputa, a gente não tinha chegado. Foi uma coisa muito bacana, que mexeu com os dois. Estimulou no começo e ajudou a distrair no final, pois a gente conversava. Se eu tivesse ido sozinho, teria feito outra prova. Eu poderia ter “estilingado” e depois ter tido de parar, lá na frente.
CC – Você acha que outro ciclista brasileiro terminaria essa prova ?
JP – O grande desafio é terminar no prazo dos 12 dias. Se ele terminar eu pago a viagem dele, mas também se não completar ele paga para mim a ida e a volta. Tive que mudar minha vida para a RAAM. É preciso querer muito completar essa prova.
JP – E agora? Qual a próxima?
CC – Eu quero ser tricampeão do Desafio 24 Horas, em Fortaleza. Na primeira vez que ganhei, a prova ainda não era muito reconhecida e no ano passado foi o ano mais difícil. Ali eu vi que tinha um pouco de experiência. Mantive a calma, mesmo com pneus furados. E agora que eu estou bem treinado, quero me consagrar lá. Já estou treinando e não quero nem saber contra quem vou pedalar.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de agosto de 2007)
SEM FIM: Clarindo segue numa das intermináveis estradas da prova rumo à gelada Mountain Creek, ponto mais alto da prova