Por Kevin Fedarko QUANDO SE TRATA DE ESCREVER SOBRE UM ASSUNTO DEPRIMENTE a ponto de parecer que o fracasso de vendas é garantido, fica difícil achar algo melhor que o livro que Michael Ghiglieri, um experiente guia do rio Colorado, estava concluindo na primavera de 2001. Seu manuscrito de 408 páginas contava, em detalhes de arrepiar, as muitas maneiras que mais de 600 pessoas encontraram um fim traumático e prematuro no Grand Canyon.
Como tinham certeza que nunca encontrariam quem publicasse um projeto tão macabro, Ghiglieri e seu co-autor Tom Myers – um médico que passou dez anos cuidando de pacientes na borda sul do cânion – decidiram investir US$ 45.000 em impressão e produção para lançarem o livro eles mesmos. Torraram suas economias, encheram o porta-malas do carro de livros e caíram na estrada, distribuindo exemplares de Over de Edge: Death in the Grand Canyon (Na beirada: Morte no Grand Canyon, sem tradução para o português) em livrarias, lanchonetes de beira de estrada e shopping centers no Arizona e em Las Vegas. “Foi um lição de humildade”, lembra Ghiglieri, hoje com 60 anos. “Era como se a gente tivesse 14 anos, atrás de nosso primeiro emprego como carregador em um supermercado”.
Mas o livro logo encontrou seu público e, no começo deste ano, Over the Edge já estava a caminho de sua 17ª edição, com mais de 150 mil exemplares vendidos e tornando-se o item mais comprado nas lojas da borda sul do cânion – o azarão literário do mundo outdoor. E, por isso, em junho Ghiglieri – que ganhou seu Ph.D. estudando chimpanzés em Uganda e por isso recebeu de seus amigos no cânion o carinhoso apelido de “o Doutor” – lançou um novo livro sobre um parque que, como o Grand Canyon, é conhecido pelo risco que apresenta para turistas e aventureiros descuidados.
Assim como seu predecessor, Off the Wall: Death in Yosemite, que Ghiglieri co-escreveu com o ex-superintendente do Serviço de Parques Nacionais, Charles “Butch” Farabee, é cuidadosamente organizado de acordo com as diversas maneiras que alguém pode começar a comer grama pela raiz nessas regiões isoladas. Além de deslizamentos de pedras, acidentes de avião e desastres em barcos e botes, o livro oferece uma variedade de afogamentos, erros de escalada, assassinatos, quedas de árvores, suicídios, trombas d’água, erros de BASE-jumping e desaparecimentos aleatórios.
As histórias exercem um fascínio sombrio, mas também servem de lição de como não se tornar mais um desses casos – o que Ghiglieri espera que ajude a reduzir o número de acontecimentos trágicos que acontecem dentro dos parques. Conversamos com o Doutor sobre sua pesquisa e sobre como boas coisas podem vir do estudo de acidentes horríveis.
GO OUTSIDE: Seria correto dizer que você está completamente obcecado pela morte?
GHIGLIERI: Não estou nem um pouco obcecado pela morte – na verdade, estou tão não-obcecado pela morte que nunca mais quero fazer outro livro como Over the Edge ou Off the Wall. O que eu estou meio obcecado é por sua prevenção, principalmente porque tantos dos acidentes narrados em ambos os livros eram perfeitamente evitáveis. Seria correto dizer que estou obcecado por isso.
Foi por isso que você os escreveu?
Sim. Sou guia de rafting há 34 anos e ficava impressionado com o fato de as pessoas estarem sendo mortas e mutiladas no Grand Canyon e no Yosemite todos os meses do ano, sem ninguém parecia tomar conhecimento ou se importar com o que estava errado. Havia registros, é claro, mas os arquivos costumavam ser jogados em uma caixa em algum canto e esquecidos. Por isso achei que seria uma boa idéia reunir e relacionar as informações e procurar algum padrão. No processo, descobri que era meio divertido aprender sobre essas coisas. Principalmente se não é você que está morrendo.
Como você encontrou toda essa informação?
A principal fonte foram os relatórios de incidentes do Serviço de Parques, mas muitas vezes os relatórios mais antigos estavam incompletos, tinham se perdido ou simplesmente foram jogados fora. Por isso checamos os arquivos do xerife do condado, lemos todos os microfilmes de todos os jornais do norte do Arizona e ao redor de Yosemite, passamos pente fino em todos os livros de história e fizemos muitas entrevistas. Foi um processo bem cansativo que, para cada livro, levou cerca de três anos – como procurar diamantes em leito de rio.
Podemos “aprender” com essas histórias?
Com certeza. E algumas lições são surpreendentemente simples e óbvias. Por exemplo, uma coisa que me impressionava era a quantidade de gente no Yosemite que insistia – e ainda insiste – em entrar em rios logo acima das gigantescas cachoeiras do parque, com mais de 300 metros de altura. As pedras são muito escorregadias. Basicamente, você tem uma camada invisível de algas melequentas cobrindo granito polido, com água passando a 20 km/h. Se você escorregar, vai se mover mais de 10 metros em dois segundos, e daí é só cair pela cachoeira. Mas as pessoas continuam a andar por ali com resultados absolutamente horríveis.
Foi financeiramente arriscado lançar esses livros. O que te fez achar que as pessoas iam querer ler sobre esse assunto?
Se eu fosse lançar um livro chamado, digamos, Death in the City, que listasse as maneiras como se pode morrer em um bairro violento – levar um tiro, ser atropelado, e por aí vai –, quase ninguém ia comprar. Mas três ou quatro milhões de anos de evolução nos programaram a prestar atenção em coisas grandes e assustadoras que podem nos machucar no mundo natural: tempestades, avalanches, geleiras, corredeiras, animais perigosos, o que seja. Esse tipo de ameaça atinge um nervo atávico. É preciso prestar atenção. É assim que você não acaba sendo o cara que vira almoço de urso.
Hábitos alimentares dos ursos à parte, algumas dessas mortes é bem engraçada, não?
Infelizmente, é engraçado, sim. Pode ser horrivelmente divertido perceber que “Meu Deus, eu pertenço a uma espécie com um intelecto tão variável… Saca só o lado mais baixo dessa variação”. Alguns desses incidentes são quase motivo de vergonha para o Homo sapiens. Você começa a perceber que um esquilo mediano pode ser mais esperto que um ser humano mediano.
É mesmo?
As pessoas fazem algumas das coisas mais idiotas que se pode imaginar, coisas que outras espécies nunca fariam. Por exemplo, tem o Shane Kinsella, um turista irlandês no Yosemite. Depois de beber um monte de vinho em agosto de 2005, ele posou para uma foto fingindo estar caindo logo acima da Upper Yosemite Falls, uma cachoeira de 435 metros. A foto não ficou legal, então seu amigo – que também tinha bebido muito – disse para ele fazer de novo. Shane fez o que ele pediu, só que dessa vez ele perdeu o equilíbrio de verdade, caiu no rio, saiu voando pela cachoeira, rodopiou no ar e, quando bateu no chão, explodiu como um melão maduro. Só um ser humano – nem mesmo uma ameba – cometeria um erro desses.
Essas histórias nunca te deixam deprimido?
Claro. É muito ruim ler a respeito de centenas de relatos de coisas terríveis que as pessoas fizeram consigo mesmas. Mas, por outro lado, se duas ou três pessoas que leram meus livros acabam não fazendo algo que poderia ter matado elas, eu fiz uma coisa boa e salvei uma vida.
Alguém já se irritou com o que você escreveu?
Eu esperava receber um monte de cartas dizendo “como você ousa?” de gente que leu Over the Edge, mas não recebi nenhuma. Na verdade, foi bem o contrário: recebemos muitas cartas, principalmente de parentes dos mortos, expressando gratidão pelo jeito que o livro os ajudou a colocar uma pedra na história. Muitas vezes elas escreviam para dizer, “Nunca tinha entendido o que aconteceu, mas agora finalmente entendo. Obrigado por ter escrito isso”. Era a última coisa que eu esperava. E foi um tanto incrível.
FINAIS INFELIZES
O melhor do pior de Over the Edge e Off the Wall
Lane McDaniels, 42 anos
12 de junho 1928
Ponte Navajo, Marble Canyon
McDaniels, um operário de construção, perdeu o equilíbrio em um andaime durante as obras do que na época era a mais alta ponte de aço do mundo e caiu 145 metros até o rio Colorado. Não havia rede de segurança, pois se temia que pegasse fogo se algum rebite quente caísse nela. Testemunhas relataram que o corpo de McDaniels pareceu “explodir e se achatar” no impacto.
Vôo 718 da United Airlines (58 pessoas a bordo); vôo 2 da TWA (70 pessoas a bordo)
30 de junho de 1956
Chuar Butte e Temple Butte
O Super Constellation da TWA entrou no espaço aéreo do DC-7 da United a 6.400 metros de altitude. Ambas as aeronaves estavam fora de curso – talvez para dar aos passageiros uma boa vista do cânion. O DC-7 colidiu com o Super Constellation e sua asa esquerda arrancou a cauda do Super Connie. Os dois aviões caíram no cânion. Não houve sobreviventes.
Anthony Krueger, 20
25 de março de 1971
Praia de Phantom Ranch
Enquanto acampava com amigos, Krueger tomou uma bebida feita de flores da datura, uma planta venenosa e alucinógena considerada sagrada. Depois de ter tentado erguer enormes pedras, falar com pessoas invisíveis e comer terra, ele desapareceu, aparentemente tentou nadar no rio Colorado e se afogou. Cinco semanas depois, seu corpo foi encontrado 11 km rio abaixo.
Trish Astolfo, 37
5 de janeiro de 1993
O abismo, borda sul
Astolfo, que dizem ter se inspirado no filme Thelma & Louise, tentou dirigir sua picape Grand Canyon adentro, mas o carro atolou antes de passar da beirada. Ela então abriu a porta, andou até o precipício e pulou – somente para cair em uma plataforma de pedra sete metros abaixo. Ferida, mas ainda viva, ela se arrastou até a beirada, de onde caiu 45 metros para a morte.
Donna Spangler, 59
11 de abril de 1993
Trilha Grandview, abaixo do Platô Horseshoe Mesa
Robert Merlin Spangler empurrou sua esposa, Donna, de um precipício para evitar a inconveniência de um divórcio. Ela caiu 48 metros. Depois de assinar uma confissão deste e de outros três assassinatos, Spangler pegou prisão perpétua e acabou morrendo de câncer na cadeia. Ele pediu autorização do Serviço de Parques Nacionais para que suas cinzas fossem jogadas no Grand Canyon. O juiz Paul G. Rosenblatt ordenou que o Serviço negasse o pedido.
Matthew J. Garcy, 20
24 de outubro de 1997
Cape Royal
Garcy pediu que uma pessoa que estava por perto tirasse sua foto e colocasse uma carta que estava no banco da frente de seu carro no correio. Então, ele tirou seus óculos, deu à pessoa e pulou da borda norte, caindo 120 metros para a própria morte.
Pomposo Merino, idade desconhecida
23 de julho de 1883
Um pasto de ovelhas a 16 km do vale de Little Yosemite
Merino, um pastor mexicano, estava contando a seu colega pastor Henry Montijo como viu um homem afastando uma arma durante uma briga. Para demonstrar, ele apontou sua arma carregada para a própria cabeça e deu um tapa nela. A pistola disparou e matou Merino.
William L. Gooch, 22
19 de maio de 1976
Trilha Ledge até o Glacier Point
Durante uma caminhada solitária, Gooch desceu pela trilha Ledge, que estava oficialmente fechada e tinha um aviso de “Perigo! Não tente seguir por esta trilha abandonada”. Logo depois da placa, ele saiu um pouco da trilha para encher sua garrafa de água e escorregou. Testemunhas viram-no deslizando por uma ladeira molhada e ouviram-no dizer “Oh, shit!” ao cair 180 metros para a morte.
Sonia Janet Goldstein, 33; Richard Russell Mughir, 29
17 de agosto de 1985
Glacier Point
Às 7h45 da manhã, duas testemunhas viram o corpo de Goldstein caindo da face do Glacier Point. Minutos depois, viram Mughir na beirada, com seus braços abertos como se fosse um Cristo Redentor. Segundo os investigadores que entrevistaram o terapeuta de Mughir, ele, que era psicologicamente instável, aparentemente convenceu sua namorada Goldstein a se unir a ele em um pacto de suicídio no qual ele a matou a facadas no topo do Glacier Point, jogou-a pela beirada e depois de jogou do precipício.
Jan Davis, 58
22 de outubro de 1999
El Capitan
Davis, uma dublê profissional, saltou do El Cap para protestar contra proibição do BASE-jumping no parque pelo Serviço de Parques Nacionais. Davis não conseguiu lançar seu pára-quedas a tempo e se esborrachou no vale de Yosemite na frente de 150 pessoas.
Vladimir Boutkovski, 24
17 de agosto de 2001
Face noroeste do Half Dome
Às 6h30 da manhã, três alpinistas na base do Half Dome viram um homem caindo em posição de salto livre antes de se chocar com o chão de cabeça. Boutkovski, um imigrante russo, estava estudando os ensinamentos de Carlos Castañeda. Segundo um relatório de um investigador do Serviço de Parques Nacionais, uma entrevista posterior com um dos amigos de Boutkovski revelou que a crença do jovem em “magia e misticismo” o levou a concluir que o salto o “livraria de sua ligação com a terra”.
Joseph E. Crowe, 25
29 de dezembro de 2002
Rota Zodiac, El Capitan
Crowe estava tentando fazer uma escalada de inverno solo de uma rota de 560 metros do El Capitan. Durante uma tempestade de neve, ele tentou descer fazendo rapel, mas sua corda era curta demais. Ele morreu congelado a apenas 7 metros do chão.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de agosto de 2007)
Ilustrações por Frank Stockton