Loucos de ar

Por Cristina Degani

OXIGÊNIO É DOPING? De acordo com a nova regra estipulada pela Agência Mundial Anti-Doping (Wada), sim. A decisão foi divulgada em março, pouco antes da temporada de escalada das montanhas acima de 8 mil metros – onde o ar, rarefeito, chega a ter 1/3 do oxigênio existente ao nível do mar. De acordo com a norma, quem usa cilindros de oxigênio suplementar para escalar montanhas como o Everest, que está a 8.850 metros de altitude, pode passar a ser considerado antidesportista.

Doping é a utilização de meios ou substâncias capazes de aumentar artificialmente o desempenho esportivo, sendo prejudiciais ao jogo, ao atleta ou ao adversário. O texto da Wada é claro: o incremento artificial de captação, transporte ou liberação de oxigênio é um método proibido e portanto doping. Isso significa que, de agora em diante, quando jogadores de futebol acostumados a correr ao nível do mar forem para Quito (Equador), a 2.850 metros, eles não poderão mais passar perto de balões de oxigênio para melhorar o rendimento. A mesma regra vale para atletas de esportes olímpicos e também para os praticantes de esportes de montanha, como a escalada, pois desde 2004 a UIAA (União Internacional das Associações de Montanhismo) segue as normas da Wada.

São poucos os brasileiros que se aventuram a escalar montanhas de 8 mil metros e menos ainda os que o tentam sem oxigênio suplementar. No grupo dos que utilizam oxigênio suas ascensões estão Waldemar Niclevicz, primeiro brasileiro a escalar o Everest em 1995, ao lado de Mozart Catão; Irivan Gustavo Burda; Ana Elisa Boscarioli, primeira brasileira no Everest, em 2006; Rodrigo Raineri, que chegou aos 8.200 metros em 2005, junto com Vitor Negrete; e o próprio Vitor, que escalou o Everest com oxigênio em 2005 e morreu nessa montanha em 2006. Além do Everest, apenas Niclevicz, Burda e Ana Elisa escalaram outras montanhas acima dos 8 mil.

Na categoria dos que ousam encarar as altas montanhas sem cilidros de oxigênio, há hoje somente três brasileiros: José Luiz Pauletto (Kanchenjunga em 1986, 8.586 metros) e o casal Paulo e Helena Coelho – Vitor Negrete ousou, mas não sobreviveu. O casal Coelho retornou em meados de junho para o Brasil após a oitava tentativa de escalada do Everest sem oxigênio. Eles não conseguiram chegar ao cume devido ao mau tempo.

Para Helena, montanhista e guia de expedição, a questão de doping não é surpresa. “A questão não é se é imoral ou ilegal, mas qual o sentido da escalada para cada um”, fala. “Acredito que devemos estar ao nível da montanha, e não o contrário, para que a escalada seja um feito esportivo. Fico satisfeita em saber que a Wada colocou a questão de forma efetiva e clara, pois é importante para a evolução do esporte”, diz Helena. Paulo completa: “O nível técnico é diferente. Muita gente quer subir no Pão de Açúcar. Alguns escalam, outros vão de bondinho. Todos estão lá, mas o modo não é o mesmo, então o reconhecimento também deve ser diferente”. Antes das expedições, o casal costuma exercitar técnicas de melhorias do aparelho respiratório, para que na montanha possam estar confortáveis com o oxigênio captado apenas por meio da respiração.

Já Waldemar Niclevicz, o brasileiro que mais escalou montanhas acima de 8 mil, acredita que a inclusão do método como doping não tem fundamento. “O oxigênio é vital ao ser humano e não faz mal algum, ao contrário da maioria das substâncias usadas para o doping. Jamais vou encarar o uso de garrafas de oxigênio como doping, pois acredito que todos têm o direito de escalar as montanhas, desde que respeitem os seus limites e tenham consciência dos riscos que estão enfrentando”, diz. Para ele – que usou oxigênio nas escaladas do Everest e do Lhotse (8.501 metros), mas não em outras quatro montanhas –, escalar sem oxigênio é para alpinistas experientes, que percebem os efeitos do ar rarefeito no organismo quando têm de tomar decisões.

Desde a primeira ascensão ao Everest, em 1953, já chegaram ao topo do mundo aproximadamente três mil pessoas. Desses, apenas 150 escaladores não usaram oxigênio suplementar. O primeiro escalador a conquistar “limpo” a montanha foi o italiano Reinhold Messner, em 1978. Em 2007, apenas dois montanhistas chegaram ao cume sem oxigênio em cilindros.

O OXIGÊNIO ACIMA DOS 8 MIL JÁ TINHA INIMIGOS antes da proibição do método pela Wada. Em 2002, na Conferência para o Futuro do Montanhismo Mundial, realizada na região de Tirol (Áustria), cem dos melhores montanhistas do mundo redigiram o documento “Declaração de Tirol para as Melhores Práticas em Esportes de Montanha”. O documento foi enviado para 90 clubes de escalada em quase 70 países. Com dez lições de conduta e princípios éticos, a declaração tinha como meta auxiliar o crescimento do esporte e do praticante e promover o desenvolvimento social, cultural e do meio ambiente. Este documento antecipou à condenação ao uso de oxigênio em garrafas, afirmando que ele não combinava com a prática esportiva. No capítulo que trata de Estilo de Escalada, o texto diz que “a conduta esperada em alta montanha implica em escalar sem usar cordas fixas, sem substâncias químicas que favoreçam o corpo e sem uso de oxigênio suplementar.”

Um dos melhores escaladores do mundo, Ed Viesturs é o único norte-americano que já escalou as 14 maiores montanhas do planeta. Só o Everest ele subiu três vezes. Ed sempre escala sem uso de oxigênio suplementar por uma questão pessoal. “Mas não tem certo ou errado: esta é a minha maneira”. Porém, quando está guiando uma expedição, a segurança o motiva a usar oxigênio. “Acredito que assim sou mais capaz de realizar meu trabalho, pois essas pessoas dependem de mim e de minhas decisões”.

Em 2005, o paulista Rodrigo Raineiri chegou aos 8.200 metros do Everest sem oxigênio suplementar. A expedição que ele e Vitor Negrete faziam tinha como meta o cume sem o uso do método. Porém, a dificuldade fez com que Rodrigo colocasse a máscara de oxigênio após o início da zona da morte, aos 8 mil metros. “Você fica mais aquecido, toma as decisões com mais lucidez, perde menos células e fica mais inteiro na montanha. A chance de errar é menor e isso dá segurança”, explica ele.

Um ano depois, Rodrigo, que também é guia de expedições, perdeu na montanha seu amigo e companheiro de escalada, que em 2006 fez a segunda escalada do Everest, desta vez sem uso de oxigênio suplementar. Vitor demorou para subir e não conseguiu descer, morrendo na montanha. “Com oxigênio suplementar, você preserva seu organismo, sua integridade física e psicológica”. Porém, Rodrigo quer escalar o Everest no ano que vem, respeitando os princípios da Wada. “Mas levarei as garrafas para uma emergência. Se for preciso, uso”.

Ele e Paulo Coelho concordam que nesta polêmica, quem perde são aqueles que buscam patrocínio ou que querem passar a imagem de feito esportivo. “O passado não se discute, mas após esta resolução não será um grande feito subir com oxigênio”, reflete Rodrigo. “A lei do silêncio imperou no Everest nesta temporada”, acrescenta Paulo. “Acredito que as pessoas não se sentiram confortáveis para comentar porque essa questão envolve muito dinheiro, desde o enorme patrocínio de algumas expedições até os fabricantes desses cilindros”, conclui. É muito provável que seja o início de uma nova era acima dos 8 mil metros.


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de agosto de 2007)