Por Mario Mele
Quem bateu os olhos na classificação final do triathlon Nissan XTerra Brazil pode até ter concluído que quando há gringos no páreo, não há chance de brasuca no topo do pódio. De fato, o título em 2007 novamente foi para a mão de um atleta estrangeiro, como nos dois anos anteriores. Porém, quem prestou um pouco mais de atenção no desempenho dos brasileiros – a maioria deles sem patrocínio – sacou que o país fabrica competidores extremamente fortes para uma modalidade ainda pouco explorada por aqui. No dia 25 de agosto a paulista Ilhabela sediou, pelo terceiro ano consecutivo, a etapa nacional do XTerra, que de longe é o maior circuito cross-country de triathlon do mundo. Mas na belíssima ilha do litoral norte, tanto a organização, quanto a mãe-natureza, não foram amigáveis na hora de compor o trajeto.
A começar pelo canal de São Sebastião, que raramente tem ondas, mas resolveu exibir um mar bem mexido e com forte correnteza no dia da prova. Ali, os competidores nadaram num percurso de etapas: 750 metros de braçadas, a subida num píer e 30 metros de corrida nele, um salto de três metros no mar e mais 750 metros de nado. Finalizada a fase aquática, tanto na perna de 29 quilômetros de mountain bike, quanto nos nove quilômetros de corrida, o relevo desnivelado do litoral paulista e a temperatura que subiu na última metade da prova, foram os culpados por muitas estafas musculares, respirações ofegantes, desmaios e produções de ácido lático em série.
O canadense Mike Vine, sujeito conhecido e reconhecido em muitos XTerras mundo afora, tirou a melhor média nas braçadas, pedaladas e passadas, e cruzou a linha de chegada na frente de todos, com o tempo de 2h40min38s. Como retribuição, levou na bagagem um cheque de R$ 6.248. Um baita esquenta para a grande final do circuito, que rola em outubro no Havaí, reunindo os melhores triatletas e corredores de aventura do mundo.
Na final brasileira e fungando no cangote do canadense, chegou o brasiliense Alexandre Manzan – um minuto depois de Mike – confirmando o favoritismo entre os brasileiros. “Fiquei satisfeito com o meu desempenho. Perdi para um cara que é uma máquina e que vive somente para este esporte. No meu caso, tenho que ter muita disciplina para treinar e me manter no auge do condicionamento físico. Além de atleta profissional, sou policial civil”, analisou Manzan.
Outro motivo de satisfação para Manzan foi que ele deixou caras de ponta – como o argentino Oscar Galindez e o brasileiro Rodrigo Altafini – comendo poeira. Na bike, Altafini chegou a roubar a colocação do brasiliense, que era o terceiro colocado naquele instante. Mas a adrenalina e a ansiedade impediram Altafini de olhar as placas de orientação do percurso e ele se perdeu, girando a coroa à toa por preciosos minutos. Mesmo com o deslize, ele cruzou a linha de chegada na quarta colocação. Daqui a pouco “Altafini” será sinônimo de “perdido” no dicionário, pois na etapa regional do circuito de Angra dos Reis (RJ), em abril, ele cometeu o mesmo vacilo. Mas o cara é guerreiro.
E quem sabe Manzan vire sinônimo de superação. Foi ele quem papou esta etapa passada, em Angra, e aos 33 anos, ele se destaca em quase todas as competições nas quais se inscreve. Isto tudo depois se recuperar de um gravíssimo atropelamento que sofreu, há quase uma década, quando treinava na estrada. Mesmo depois das duras conseqüências do acidente – como um pé moído e outros ossos fraturados – ele juntou forças e paciência para se recuperar e continuar figurando entre os melhores do esporte. Os médicos chegaram a duvidar que um dia Manzan pudesse voltar a treinar. Não só voltou como hoje a corrida é o seu forte. Durante os nove quilômetros da modalidade em Ilhabela, ele conseguiu diminuir em quatro minutos a sua diferença inicial em relação ao líder canadense. “Se o percurso fosse mais plano e menos ‘escalaminhada’, até daria para alcançá-lo”, analisou, no final.
Já o argentino radicado no Brasil Oscar Galindez foi o terceiro a terminar a prova em Ilhabela. Para ele, a felicidade no lugar mais alto do pódio ficou para o dia seguinte, quando sua filha Sofia ganhou o XTerra Kids, uma prova especial para a criançada, na qual a menina venceu na categoria meninas de 6 a 8 anos.
No ringue feminino adulto, a norte-americana Candy Angle não frustrou as expectativas a seu favor e repetiu o feito do ano passado. Conseguiu abrir uma vantagem confortável em cima das brasileiras Cristina de Carvalho e Julyana Machado, respectivas segunda e terceira colocadas. Mesmo assim, Candy chiou no final: “este ano parece que tinham mais subidas. Não estou acostumada a pedalar em terrenos tão íngremes”. A gringa fez uma prova de recuperação, pois na segunda perna, durante a bike, foi obrigada a ficar dez minutos parada, desatando o nó formado na corrente da magrela, depois de ter trocado uma marcha. “Quando vi que tinha sido ultrapassada [pela Cris de Carvalho], respirei fundo e, com uma das mãos, girei o pedal com muita força. Incrivelmente tudo voltou ao normal”, conta Candy, sorrindo. Se ela tivesse competindo na categoria elite masculina, chegaria na admirável 14ª colocação.
Julyana Machado e o local Edivando de Souza Cruz foram os triatletas forasteiros que se deram bem neste XTerra. Na verdade os dois são mountain bikers e esta foi a primeira vez que se arriscaram no trio natação-bike-corrida. “Preciso treinar natação. Fiquei para trás no começo, mas depois perdi as contas de quantos eu ultrapassei pedalando”, contou Edivando, mostrando-se satisfeitíssimo com o sexto lugar e os elogios da galera.
Aliás, incentivo da torcida não faltou para os brasileiros que competiram. As centenas de pessoas que se aglomeraram na área de transição, montada na praia do Perequê, aguardavam ansiosas a cada troca de modalidade. Era um empurrãozinho moral, que se transformava em ar para os pulmões de Manzan, Altafini, Cris de Carvalho e tantos outros. “Se tivessem mais alguns quilômetros de corrida você venceria Manzan!”, gritou um espectador atento depois da chegada.
O próprio Mike Vine fez questão de dizer que esta foi uma das provas mais exigentes de sua carreira e que de todos os XTerra, este foi o que ele mais teve que suar a camisa para vencer. Depois de sair da água um minuto atrás do então líder Galindez, o canadense começou uma perseguição tão violenta à presa que ainda no segundo quilômetro sobre rodas tomou um rola, que poderia ter prejudicado-o seriamente. Por sorte, saiu apenas com o ombro esfolado e a bike intacta. Mas as dificuldades mostraram que, aos 34 anos, Vine continua em sua melhor forma. E por isso, cruzou a linha final com o sorriso no rosto e dando pulinhos de alegria sob merecidos aplausos.
Duro na queda
Um, dois, três, quatro, cinco provas no mesmo final de semana. E o melhor atleta ainda embolsava duas passagens para a África do Sul, presente da Go Outside
Não foi só o trio natação-bike-corrida que agitou Ilhabela no final de semana. Mais quatro provas rolaram logo na seqüência do X Terra: o desafio de mountain bike MTB Cup, a maratona aquática Swim Challenge, a corrida em trilha Trail Run e o desafio de bike Downhill Session. E o atleta que melhor sobrevivesse a pelo menos três dessas competições ganhava, da Go Outside, duas passagens ida e volta para a África do Sul e o título de XTreme Survivor. Um desafio e tanto, afinal, alguns dos atletas mais cascas de cada modalidade assinaram a lista de presença, como os bikers Erika Gramiscelli (mtb) e Markolf Berchtold (downhill) e a nadadora Poliana Okimoto, medalha de prata no Pan-Rio.
E quem se deu muito bem – e vai para a África na faixa – é o professor de educação física Samuel Ferraz Júnior. Seu objetivo inicial era terminar o X Terra entre os primeiros, para conquistar uma vaga para o Havaí. Não levou esta, mas chegou em sétimo lugar (depois de 3h21min28s de suadeira) e se animou com a possibilidade de ganhar as passagens: mal teve tempo de recuperar o fôlego e 40 minutos depois do X Terra, Samuel já estava perfilado na largada do MTB Cup para mais 29 quilômetros de pedal. Acabou o dia? Não. “Terminei o Cup e fui para o downhill, mas não consegui ficar entre os dez”, conta Samuel. Depois de uma boa noite de sono, domingo cedinho era hora de correr mais nove quilômetros para passar a régua na maratona outdoor. “Fiquei alucinado com a possibilidade de fazer tantas provas quanto eu agüentasse, num único final de semana. Não há nada de loucura nisso. Fazendo um X Terra você descobre coisas que normalmente levaria dez anos para notar que existiam”, confessa.
Mas tanta disposição quase o tirou do combate. No reconhecimento da trilha do downhill, Samuel voou e bateu o pé violentamente no chão, mas sacudiu a poeira e deu a volta por cima. Já no triathlon, ele precisou parar por alguns minutos para trocar um pneu furado. “Mas não uso isso como justificativa para o desempenho. A culpa foi minha, eu escolhi os pneus errados”, analisa conscientemente. Para completar, ele torceu feio o tornozelo na última prova na trilha e correu os últimos quilômetros com os ligamentos rompidos. Vaso ruim o cara.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de outubro de 2007)
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