Tribo de uma marcha só

Por Bruno Romano

GUIADOS PELOS GRITOS de uma galera ensandecida, ciclistas pedalam com os olhos totalmente vendados em um percurso traiçoeiro. Um deles decide “inovar” e enfrentar um desafiante ziguezague entre obstáculos totalmente pelado. Embalado pelo delírio geral do público, o “peladão” enfim encontra a linha de chegada e é declarado vencedor – mais pela ousadia do que pela performance atlética. Essa prova bizarra faz parte de uma bateria de eventos que elege o campeão do Single Speed World Championship (SSWC), o mundial das mountains bikes com uma só marcha. Trata-se de uma competição independente e anárquica na qual ser o mais rápido e bem preparado não significa absolutamente nada.

Essa pequena e divertida tribo de adeptos das bikes singlespeed se reuniu neste ano no Alasca (EUA) entre os dias 18 e 20 de julho. Cerca de 250 ciclistas celebraram o evento na cidade de Anchorage, um destino de aventura épico. Para aproveitar o verão do extremo norte do planeta, quando há luz até meia-noite e o sol reaparece logo em seguida, a “competição” começou cedo – no bar. Às três horas da madrugada do dia 19, todos os inscritos e mais uma dezena de foliões deram início à preparação do corpo e da mente para o desafio, à base de rock’n’roll e cerveja. O pedal mesmo só rolou depois das dez horas da manhã.

No SSWC, não há números de competição presos no peito nem cronômetro, muito menos ciclistas com roupas esportivas. Em vez de bermudas de lycra ou bretelles, participantes vestidos de Elvis Presley e Shrek se misturavam a outras figuras de definição impossível. “Estamos em busca da mais pura e simples diversão”, diz Chris Reichel, autor do debochado blog de ciclismo Drunk Cyclist (drunkcyclist.com), que prestigiou o evento deste ano e é adepto das mountain bikes singlespeed desde 2005. “Nós já somos idiotas o suficiente. Apenas demos um passo adiante, encarando trilhas no mato com uma só marcha. E, claro, com muita festa antes e depois”, conta Chris.

Já que a prova não é organizada por nenhum órgão oficial do ciclismo e tampouco tem regras definidas (nem nunca terá), a cada ano surge uma surpresa nova. Desta vez, os bikers capricharam na preleção dentro do bar, ao som de rock pesado, que combinava com a chuva que caia em Anchorage e devastava os marcadores de percurso. Quando a água deu uma trégua, a organização remarcou as trilhas, dividiu os ciclistas em grupos e deu a ordem para que pedalassem em três trajetos, dentro do Kincaid Park, uma linda área preservada do Alasca.

“Mesmo com os problemas climáticos de última hora, fizemos um dos melhores dias de pedal que o Kincaid Park já viu”, comemora Dejay Birtch, ciclista amadora norte-americana que coordenou a competição deste ano, o 13º SSWC da história. O encontro acontece desde 1995, sem regularidade definida, sempre movido a iniciativas independentes dos praticantes, com apoio e patrocínios eventuais. Os EUA já receberam seis mundiais, chegando a atrair lendas do ciclismo como Gary Fisher, um dos pioneiros do mountain bike, e a reunir mais de mil ciclistas, em 2009, em Durango, no Colorado. O País de Gales (2001), a Suécia (2006), a Escócia (2007), a Nova Zelândia (2010), a Irlanda (2011), a África do Sul (2012) e a Itália (2013) também já foram sedes. “O SSWC acaba sendo uma grande desculpa para a gente viajar o mundo e fazer novos amigos”, diz Dejay.



BIKE-ANARQUIA: Acima, fotos do mundial de single speed no Alasca
(FOTO: Chris Reichel e Devon Balet)

A norte-americana Shanna Powell viu de perto toda a zona deste ano. Em 2008, a ciclista amadora começou a vender componentes de bicicletas de marcha única, representando a marca Endless Bikes, e se apegou a esse novo estilo de pedalar. “Em 2009 eu experimentei o SSWC e nunca mais fui a mesma. Minha pesquisa sobre o evento me mostrou que era bom estar preparada para tudo. Descobri que era verdade e acabei amando essa mistura de besteirol com bicicleta”, diz Shanna. “Os adeptos das mountain bikes singlespeed são uma comunidade de gente boa. Uma galera que gosta de pedalar duro e se divertir de verdade. O SSWC é o encontro de uma tribo em busca de aventura e bons lugares para pedalar. É uma ótima chance de fazer grandes amigos”, completa.

De volta à bagunça no Alasca, um grupo de bikers arma uma rodinha e começa a entoar gritos de incentivo enquanto atira cervejas e solta bolhas de sabão em cima dos competidores. Dentro da roda, está rolando uma disputa para ver quem será o último a ficar de pé na bike sem pisar no chão. A poucos metros dali, um jogo de vôlei coloca frente a frente Japão e Eslovênia. Depois de boas atuações na bebedeira da noite anterior, na prova de bike e em outra porção de brincadeiras inúteis e divertidas, os representantes dos países estão competindo para ver onde será a sede de 2015. Por fim, os japoneses vencem, determinando o local do próximo ritual da tribo, com data a ser definida, entre setembro e outubro.



VALE TUDO: Brincadeiras e fantasias estranhas unem a divertida tribo dos single speeders
(FOTO: Chris Reichel)

Ah, sim! O Mundial de 2014 teve seus campeões (escolhidos aleatoriamente, é claro, dentre aqueles que se destacaram nos trajes, no pedal e na folia). Entre as mulheres, Sierra Van Der Meer e, entre os homens, Ryan Miller e um sujeito que se intitula Singhephile Danker, todos ciclistas amadores norte-americanos. Seus nomes foram anunciados no dia seguinte da prova, pelas mídias sociais, da seguinte forma: “Se pessoas como estas foram campeãs de alguma coisa, acreditem, qualquer um pode vencer”. O prêmio? Uma tatuagem com o logo da edição 2014 da prova. A prática é comum no mundial, sempre com um desenho único e exclusivo. A tattoo é feita na hora, por um profissional de qualidade e não há nenhuma chance de se recusar: se não quiser, é melhor nem se inscrever no evento.

Para quem se identificar, Dejay dá um aviso e faz o convite: “Não confunda o SSWC com uma competição de bike. O mundial é um encontro incrível que dá uma pitada de sabor a um brinquedo que temos usado desde a infância para escapar da realidade. Aqui o cara mais rápido não tem nada garantido. Aliás, ele só passou menos tempo do que os outros se divertindo em cima da sua bicicleta”.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de setembro de 2014)







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