Comendo asfalto


NO GÁS: Roberto Grecco deu 65 voltas (585 km) para garantir o quinto lugar na categoria solo

Por Mario Mele

ERAM SEIS HORAS DA MANHÃ quando as primeiras equipes chegaram e se acomodaram nos boxes pré-montados na avenida principal da praia de Ponta Negra, em Manaus (AM). Dali a três horas, nessa área nobre da capital amazonense, seria dada a largada para a primeira edição da Amazon Distance, uma maratona ciclística programada para durar 24 horas.

O sol mal tinha aparecido e, empolgado, o locutor de uma rádio local lembrava os ouvintes de que naquele sábado, três de novembro, o calor prometia castigar. “Nem rastro de nuvens há no céu de Manaus”, comemorava. Mas, para os 78 ciclistas inscritos nas categorias solo, quarteto e sexteto da Amazon Distance, sol forte significava uma batalha a mais – e das mais duras. Às 9h09min, quando um oficial do exército ergueu o fuzil e metralhou o céu com balas de festim, dando sinal verde à prova, o relógio-termômetro da avenida já acusava 30ºC. Àquela hora, ainda com a temperatura subindo, era difícil ver fora das sombras um ser vivo que não fosse ciclista.

Na categoria solo, dos 12 ciclistas que tentaram a façanha de dar o maior número de voltas no circuito de 9 quilômetros, oito mantiveram a pedalada até os minutos finais das 24 horas de prova. O que menos tempo permaneceu em cima da bike foi Antonio Moura. Mesmo assim, nas 12h e 55min de participação, ele rodou 396 km e terminou em oitavo. Pelas parciais das 44 voltas que completou, deu para concluir que ele estava ali para acelerar o ritmo da prova – ser um “coelho”, como costuma-se dizer de quem puxa os outros competidores.

Outro que parecia querer levantar vôo era João Paulo Oliveira, ciclista local de Manaus que desde a infância é chamado de “Ciará” (e não Ceará, segundo o próprio). Pela velocidade que ele imprimiu no começo, dava para pensar facilmente que se tratava de mais um coelho. Mas o tempo passou e Ciará, que inicialmente dava pinta de inexperiente em provas de longa duração, tornou-se o campeão da prova após 20 horas ininterruptas de pedal. “Quis largar veloz, dar uma volta em cima do segundo colocado o quanto antes e administrar a diferença até o final”, disse ele, que pensou em desistir antes da metade da prova em razão de uma forte dor nas costas. “É nessas horas que conta muito estar ao lado de amigos e familiares. Foram eles que não me deixaram parar”, disse depois de completar 74 voltas (666 km).

Ciará não admitiu, mas certamente agradeceu aos céus quando os organizadores, em decisão unânime, decidiram encerrar a prova faltando ainda quatro horas para o término previsto. O motivo foi um motorista imprudente que perdeu a direção na manhã do domingo e levou, no capô do carro, um cone e alguns metros de fita que isolavam a pista destinada aos ciclistas. Por falta de segurança, os organizadores preferiram não arriscar.

O final antecipado pode não ter sido bom negócio para o vice-líder Wagner Comodoro, que apesar se estar uma volta atrás de Ciará, tinha conseguido abrir uma diferença de quase 30 km em relação ao terceiro colocado, o ciclista Fernando Sales. Portanto, àquela altura, era mais provável que Wagner planejasse um ataque ao líder do que permitir uma aproximação de Fernando. Mas ele próprio confessou que seria uma injustiça desmerecer a vitória de Ciará, que estava muito bem adaptado ao clima abafado de Manaus.

Wagner também teve bons motivos para comemorar o vice-campeonato. A luta que ele travou contra a desidratação pode ser contabilizada pelo déficit na geladeira de seu boxe: durante as 20 horas, o ciclista consumiu 60 litros de água e 25 latinhas de coca-cola. “Parecia que ninguém estava acreditando que seria uma prova de 24 horas. O ritmo se manteve forte até quando a temperatura beirou os 40ºC. Minha velocidade máxima foi de 63,4 km/h”, contou. A parada mais longa dele durou dez minutos – e isso só aconteceu às três da manhã do domingo.

Os ciclistas santistas Cláudio Clarindo e Julio Paterlini, os únicos sul-americanos a completarem a dura RAAM [Race Across America, prova de 4.900 km que corta os Estados Unidos do Pacífico ao Atlântico] também pedalaram na Amazon Distance. Paterlini integrou o sexteto vencedor da Sundown, enquanto que Clarindo competiu na solo, onde foi o sétimo a chegar. “Não sei se foi uma escolha certa eu ter feito esta prova. Foi bem entre a RAAM e o Desafio 24h de Fortaleza, onde estarei daqui a 15 dias, brigando pelo tricampeonato”, avaliou. Mesmo nitidamente desanimado, Clarindo girou a catraca até o último segundo de prova. [em tempo: duas semanas depois, em Fortaleza, ele chegou em 3º]

Entre os quartetos, quem levou a melhor foi a equipe Fernando Motta Office Bike, que foi penalizada em uma volta, mas correu atrás do prejuízo. O quarteto da Sundown, que contava com os experientes sprinters Jean Coloca e Francisco Chamorro, ficou satisfeito com o segundo andar do pódio, já que a outra metade do time foi derrubada por um incontrolável mal-estar e, por um bom tempo, Jean e Francisco tiveram que segurar a onda da equipe sozinhos. Atrás deles chegaram os amazonenses da Sprint Bike.

DEPOIS DA AMAZON DISTANCE, OS MARATONISTAS DO PEDAL ainda se encontraram em mais duas provas este ano. Uma foi o Desafio 24 horas de Fortaleza, que, ao contrário do Amazon Distance, é realizado num circuito inteiramente desnivelado e com uma subida íngreme de 200 metros logo no trecho inicial, boa para travar as pernas. Em 2007, o campeão foi o mineiro Rogério Pacheco. Outra é a 800K Sundown Road Distance, que rola dias 8 e 9 de dezembro por rodovias paulistas. Diferente das duas anteriores e como o nome já diz, a 800K tem distância (e não tempo) definida. Variações à parte, a realidade é que as longas quilometragens reúnem, a cada ano, um número maior de ciclistas nos asfaltos e trilhas brasileiros.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de dezembro de 2007)