Vôo triplo


NOVATO: Em sua primeira temporada no Nordeste, Rafael Saladini, o Sardinha, bateu o recorde sul-americano e na sequência a marca mundial em companhia de Frank Brown e Marcelo Pietro

Por Fernanda Franco

“A SENSAÇÃO É ESPIRITUAL. Quando você está voando, está em contato com a Terra, com a vida. Você interage com as nuvens, com os pássaros e sente o poder da natureza. É poesia pura.” Frank Brown, 37, mesmo voando de parapente há 26 anos, não se cansa de descrever com paixão a sensação de percorrer os céus com a força do vento. Agora ele tem mais um ótimo motivo para lembrar que definitivamente escolheu o caminho certo: com Marcelo Pietro, o Cecéu, 32, e Rafael Saladini, 25, ele fez um vôo de 10 horas e juntos quebraram o recorde mundial de distância em vôo livre. Os três voaram, cada um em seu parapente, por 461 quilômetros sem colocar o pé no chão, decolando de Quixadá, no Ceará, e pousando no campinho de futebol do vilarejo de Santana Velha, no Maranhão. Claro que, quando baixaram as velas, o trio teve que explicar para as crianças que eles haviam vindo do Ceará sem absolutamente nenhum motor. E brindaram com um refrigerante dois litros a façanha conjunta, inédita no parapente.

A conquista de uma marca dessas começa muito antes da decolagem. Cecéu e Rafael passaram este ano cerca de um mês na região de Quixadá na chamada temporada dos ventos, entre setembro e começo de novembro, antes da chegada de Frank e do recorde conjunto. Distante 160 quilômetros de Fortaleza, a cidade é considerada o Havaí dos ventos por reunir todas as características necessárias para o vôo livre: clima desértico, vento muito forte, sol e relevo plano com exceção do morro usado para as decolagens. “Nessa época é quando o sol passa mais vertical em relação à Terra e portanto aquece mais o solo. O relevo, quando quente, esquenta o ar, que fica mais leve e sobe, nos levando junto. Assim as térmicas ficam mais fortes”, explica Cecéu.

Além de se adaptar ao relevo e às condições de vento e clima do local, eles já vinham desenvolvendo há tempos o chamado vôo de endurance – era preciso aprimorar as técnicas para ficar muito tempo no ar e para se manter com energia suficiente. Alimentação, hidratação, logística de resgate e também a difícil técnica de “tirar a água do joelho” sentado na selete (a cadeirinha do parapente) foram melhoradas através de tentativas de erro e acerto. “Hoje em dia voamos com dois reservatórios de água, sendo um deles com maltodextrina. Levamos alimentos energéticos como sachês de gel de carboidrato e adaptamos uma espécie de sonda para poder fazer xixi. Vamos molhando o sertão”, brinca o estrategista do trio, Cecéu, com relação às mudanças de hábitos adotadas pelos pilotos para um vôo de longa duração e alta performance.

Outro fator – talvez o mais importante – aperfeiçoado foi o horário da decolagem. Até três anos atrás, pairava o mito de que as decolagens só podiam ser realizadas a partir das dez da manhã, quando o solo já estaria bem quente. Essa crença, porém, limitava o tempo de vôo útil a cerca de oito horas. Contrariando todas os dogmas do esporte, eles passaram a decolar mais cedo, por volta das sete da manhã, quando o sol ainda não esquentou tanto o solo. “É preciso técnica para conseguir se manter no ar nesse horário, mas é possível. E isso aumentou em três horas o tempo útil de vôo por dia”, confidencia Rafael.


TRINCA DE ASES: Rafael, Cecéu e Frank voaram juntos por 461 quilômetros e são os novos donos do recorde mundial de parapente

Já no seu segundo dia da temporada no sertão, Rafael conseguiu a proeza de voar por 397 quilômetros num vôo solo, batendo o recorde brasileiro e sul-americano, como uma espécie de prévia do que viria pela frente “Eu não acreditei que conseguiria logo de cara e não estava com várias coisas preparadas”, conta o mais novato dos três no esporte. Alguns dias depois foi a vez de Cecéu voar por 414 quilômetros, ultrapassando pela primeira vez a barreira dos 400 km no Brasil, e ficando muito perto da marca de 423 quilômetros que o canadense Will Gadd estabeleceu no Texas em 2001.

Sentindo que poderiam melhorar ainda mais suas marcas e fazer o melhor vôo já realizado no Brasil nessa temporada, religiosamente os dois pulavam da cama muito cedo para às 7 da matina decolarem da rampa de Quixadá. Depois de analisarem as previsões de vento, nebulosidade e temperatura da rota, voavam de olho nas médias de velocidade registradas pelo GPS. Percorriam cerca de 120 quilômetros para então decidir se continuariam ou abortariam o vôo. “Se a média de velocidade não estivesse em cerca de 45 a 50 km/h, pousávamos. Quando víamos que não iria dar para bater as marcas, era hora de abortar o vôo para se poupar para o dia seguinte. Porque depois de pousar você ainda tem que voltar tudo de carro, pelas estradas de terra do sertão. É muito cansativo”, conta Ceceú.

Depois de três semanas decolando praticamente todos os dias, Cecéu e Rafael já estavam com o sertão na palma da mão. Quando Frank chegou, 20 dias depois, eles fizeram uma reunião e decidiram arriscar a tentativa em trio. “Por mim, pousamos os três juntos”, sentenciou Frank. Mesmo assim, eles não tinham idéia de como aquilo funcionaria no ar.

No dia seguinte, 14 de novembro, os três decolaram às 7:20 da manhã para o maior vôo da vida de cada um deles, mas dessa vez juntos. Deixando o lado competitivo e individual do esporte na rampa, eles voaram conectados por um rádio e pelo desejo conjunto de colocar o Brasil no lugar mais alto do céu. A grande sacada foi eles se espalharem pelo ar para acharem três vezes mais rápido as áreas de melhor térmica. “Sozinho, você demora mais tempo para encontrar o melhor ponto da bolha”, conta Cecéu.

As características específicas de cada um também foram determinantes para o sucesso do trio. “Frank é muito experiente e conhece tudo de metereologia e do relevo da região. O Cecéu é o cabeça do grupo, um cara que faz do vôo uma ciência cheia de procedimentos. E eu, como o mais novo e ansioso do trio, muitas vezes tomava a decisão de seguir em frente na rota, mantendo a velocidade que precisávamos”, analisa Rafael. Eles atravessaram quase o Ceará inteiro, passaram pelo Piauí , cruzaram o delta do Parnaíba e pousaram no Maranhão. “Quando cruzamos a linha imaginária do recorde, foi aquela gritaria no ar”, lembra Frank.

Donos de trajetórias diferentes dentro do esporte, a conquista tem para cada um deles valores próprios. Mas colocar o Brasil no topo do mundo do parapente e ter a certeza que realizaram em conjunto um feito que provavelmente jamais ninguém conseguirá fazer sozinho sela para sempre a trajetória de vida de Cecéu, Frank e Rafael.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de dezembro de 2007)