Por Piti Vieira
CHRIS CARMICHAEL É UM MECÂNICO DOS BONS. Sua especialidade? Regular e turbinar motores privilegiados como os que movem o überciclista Lance Armstrong e o ultramaratonista Dean Karnazes, os dois atletas mais famosos treinados por ele. Um dos responsáveis pelas sete vitórias de Lance Armstrong no Tour de France e pelo treinamento de Dean Karnazes no desafio Endurance 50 – quando Dean correu 50 maratonas em 50 dias consecutivos – Carmichael, um também ex-ciclista profissional, treinou por oito anos a equipe norte-americana de ciclismo, preparou duas equipes olímpicas e deu oito medalhas mundiais para os Estados Unidos. Em 1990, abriu a assessoria esportiva Carmichael Training System (CTS), uma das mais respeitadas do mundo, por onde passam atletas de elite e também amadores do ciclismo, corrida, triathlon e corrida de aventura.
Aos 48 anos, o vegetariano Carmichael não está treinando nenhum atleta de ponta no momento. Lance foi o último a quem se dedicou em tempo integral. “Ano passado trabalhei com Craig Alexander, australiano que ficou em segundo no Ironman do Havaí em 2007. Haverá outros, mas Lance me cansou. Estou de férias”, ri. Hoje, ele distribui seu tempo entre a coordenação dos 150 treinadores da CTS, reuniões e palestras pelo mundo – como as que veio fazer nos dias 12 e 13 de dezembro em São Paulo, a convite de Go Outside.
No primeiro, ele falou sobre os detalhes do treinamento de Lance. No segundo, sobre a preparação de Dean Karnazes para o Endurance 50. Entre uma palestra e outra, Carmichael pulou cedo da cama para encarar um pedal de mountain bike numa manhã fria, com um time de corredores de aventura e integrantes da equipe da revista. Foi depois desse pedal que sentamos à frente de um belo almoço para bater o papo a seguir.
Go Outside: Qual a sua filosofia em termos de treinamento para atletas?
Chris Carmichael: A filosofia da CTS é a mesma para todos os atletas com que trabalhamos: foco no desenvolvimento aeróbico. Qualquer esporte que dure menos de um minuto é um esporte de explosão. Qualquer esporte que dure mais de um minuto é um esporte de resistência. Quanto mais tempo um atleta puder utilizar o seu sistema aeróbico durante uma competição, maior a chance de um melhor desempenho. Com Lance, fazíamos treinos de velocidade, mas também treinos longos no limite do limiar aeróbio. Lance pedalava no limiar máximo da sua freqüência aeróbia por duas horas – cerca de 250 quilômetros – por dia. Para um atleta de resistência, a melhor coisa é focar na melhora desse limiar de lactato, que é a fronteira entre o sistema aeróbico e o anaeróbico.
Em sua palestra você ressaltou a importância dos exames fisiológicos, uma ferramenta que ainda não é muito utilizada por aqui. Isso afeta a performance?
É bom ter a informação científica fornecida pelos exames fisiológicos, mas mais importante ainda é medir o desempenho. Se você for disputar uma prova de triathlon daqui a quatro meses, nos próximos meses precisará testar de alguma forma se seu corpo está se adaptando fisiologicamente ao treinamento. Se você treinar duro, mas não der a si próprio tempo de recuperação suficiente para se adaptar ao treinamento, você não ficará mais forte.
Muitas vezes, o treinamento a distância é feito de uma forma fria, sem troca de informações entre atleta e treinador. Isso compromete os resultados?
Na ciência do esporte sabemos o que funciona e o que não funciona. Mas o que determina se você vai ter uma boa corrida não é apenas ciência, não é apenas corpo. O que motiva um atleta? O que influencia sua performance? Isso tudo é desconhecido e é aí que entra a capacidade do treinador de ser mais do que treinador – ser um coach, como dizemos em inglês, aquele cara capaz de guiar e motivar um atleta e ajudá-lo a ter uma melhor performance. Isso é uma arte, enquanto a parte fisiológica do treinamento é uma ciência. Para equilibrar esses dois lados, aluno e treinador devem estar em contato constante, mesmo que virtualmente. Lance e Dean possuíam a motivação e a determinação. Coube a mim, como couch, descobrir como ativar isso.
Qual a próxima fronteira no treinamento?
A individualização de todos os aspectos que influenciam o desempenho – como roupas, biomecânica, nutrição. Alguns ciclistas apresentam um melhor desempenho numa cadência mais alta, outros não. Alguns atletas podem ingerir maior quantidade de carboidratos sem ter desconforto estomacal, outros não conseguem. Lance Armstrong, por exemplo, tinha uma curvatura na coluna que atrapalhava sua aerodinâmica. Quando percebemos isso, desenvolvemos um capacete que faz o ar passar por cima dessa corcunda, melhorando o tempo dele nos contra-relógios.
Qual distância você acha que um corredor como Dean Karnazes pode chegar a percorrer?
Sem parar? Duzentos quilômetros. Dean é sensacional. Ele não tem um organismo excepcionalmente dotado, seus níveis de Vo2 máximo [capacidade de absorver oxigênio] são até baixos para um atleta. Mas a biomecânica dele é perfeita. Ele corre essas distâncias inacreditáveis há anos e nunca teve uma lesão sequer.
O que faz com que o homem baixe cada vez mais os recordes?
O desejo de fazer algo que ninguém tenha feito, com certeza. E daqui a 100 anos essa vontade será a mesma. O treinamento continuará a ser melhorado, a nutrição e a tecnologia também. Atletas vão exigir cada vez mais dos seus corpos e recordes serão quebrados. A tecnologia tem um papel importantíssimo nisso. Usando os testes em túnel de vento, descobrimos que 100 gramas de arrasto ou resistência aerodinâmica representam 15 watts a mais que o ciclista tem que produzir para pedalar a 40 km/h. Num pedal de 40 quilômetros, isso pode representar uma economia de 20 segundos. Ferramentas como o túnel de vento, o medidor de potência, os testes fisiológicos e as câmeras hiperbáricas, que simulam altitude, trarão ganhos cada vez maiores de performance.
Você acha que passar por problemas graves, como o câncer enfrentado por Lance Armstrong, faz um atleta ficar mais forte?
Quando Lance melhorou e voltou a competir profissionalmente, acho que pensou: “Vou viver cada dia no seu máximo, porque talvez este pode ser o meu último.” Nós todos vivemos com a expectativa que estaremos vivos amanhã, na próxima semana e nos próximos anos. Mas alguém que lutou contra o câncer compreende que não há garantia do amanhã. Portanto, quando supera o trauma, decide viver cada dia na sua plenitude. Isso é o que o guia.
Um programa de treinamento deve ter metas específicas ou existe espaço para imprevistos?
O planejamento do treinamento é feito em blocos de mais ou menos dois meses. Nos treinos do Lance, por exemplo, em março e abril buscávamos trabalhar certo tipo de energia. Em maio e junho, buscávamos bater metas específicas e alcançar o pico indo para o Tour de France. Programamos o treinamento, mas temos de ser rápidos para alterá-lo de acordo com a progressão do atleta.
Você trabalhou com Lance por um bom tempo. Ele ainda te surpreendia quando estava competindo?
Trabalho com atletas de alto nível, de uma variedade de esportes, e todos admiram muito Lance. Uma vez estávamos em Santa Barbara (Califórnia) para duas semanas de treino. Um dia Lance disse que precisava cancelar a sessão do próximo dia porque o presidente Bush o tinha convidado para abrir as cerimônias do Winter Games (Jogos de Inverno). Esqueçam que é o Bush, tá? O que importa é que isso demonstra o valor que ele agregou ao ciclismo e a ele mesmo como atleta. Além de seu excepcional potencial físico, Lance tinha um comprometimento e um respeito enorme pela equipe que o cercava. Certa vez, ele sofreu uma queda no fim da reta de uma etapa de montanha que era crucial que ele vencesse. Mas conseguiu subir na bike, e num espaço de oito quilômetros, atacar e ultrapassar Jan Ullrich, ganhando os 40 segundos de que precisava para vencer o Tour de France de 2003. Quando perguntei a ele de onde ele tirou forças para aquele sprint, ele me disse: “Se eu não fizesse isso, como eu ia olhar no rosto da equipe que trabalhou tanto por mim?”.
Quais sacrifícios um atleta tem que fazer se quiser ter sucesso na carreira?
Prefiro pensar que eles não estão se sacrificando, mas fazendo o que querem para ter sucesso. Não adianta restringir a vida do atleta. É preciso convencê-lo de que a jornada dele no esporte é a coisa mais importante da vida no momento. Muito poucas pessoas têm a chance de ser um atleta de sucesso. Quem tem esse privilégio precisa valorizá-lo. Lance, por exemplo, tem um “motor” diferenciado. Seu Vo2 máximo é altíssimo e mantém-se igual ao nível do mar e em grandes altitudes, algo que até hoje impressiona os fisiologistas. Lance sabia disso e levava o treino com um profissionalismo e seriedade impressionantes. Era a prioridade da vida dele.
Foi divulgada recentemente uma receita de hidratação revolucionária desenvolvida por um nutricionista holandês, Jeukendrup, e adotada pela equipe Rabobank no Tour de France. O que você acha dela?
É uma descoberta muito importante para o esporte. Existem diferentes tipos de açúcares. Frutose, glicose e sacarose são as principais. Frutose e sacarose não são absorvidas tão rapidamente pelo organismo como a glicose. O que a pesquisa descobriu é que combinando glicose com frutose em proporção de dois para um você aumenta a absorção de 60 gramas para 80 gramas de carboidrato por hora.
Você desenvolveu um sistema de treinamento para ser escutado no tocador de mp3 que combina exercícios com música. Ouvir música ajuda ou interfere no desempenho?
A maioria das pessoas quer saber o que fazer em cima da bike sem precisar tirar do bolso um papel com instruções de treino. E elas querem ouvir música enquanto pedalam. Basicamente o sistema (um conjunto de exercícios que correspondem a sete etapas-chave do Tour) mostra quanto tempo cada etapa deve ter, quantos minutos faltam para entrar em um determinado intervalo e quando levantar do selim para um sprint. Combinamos o treino com músicas originais para que o ciclista não tenha que montar a própria playlist. Está tudo disponível no site da CTS para download.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de janeiro de 2008)
TRUPE: Da esq. para a dir., Amendoim, Rafael Campos, Mario Roma, André Iervolino, Chris, Caco e Zé Pupo
PEDALA CHRIS: O norte-americano ( na frente, à esquerda) dando um rolê com bikers brasileiros em trilhas perto da rodovia dos Bandeirantes, em São Paulo