A CHAVE PARA UMA BOA VIAGEM é um péssimo começo, evidentemente. Por isso as coisas pareciam que melhorariam para mim em Cuba depois da quarta noite na ilha, quando fui emboscado por dois jovens. Eles me pressionaram contra a porta da hospedaria, roubaram minha carteira e saíram correndo. Fui atrás deles. Ninguém tem armas em Havana, ou praticamente qualquer coisa mais afiada que uma faca de manteiga, então isso não foi tão estúpido quanto parece. Corri o mais rápido que pude, perseguindo-os pelo silencioso centro da cidade e gritando por socorro. Depois de um quarteirão tirei meus chinelos e comecei a ganhar terreno, mas era tarde demais. Os garotos pularam em seu veículo de fuga, uma Flying Pigeon (Pombo Voador), uma das 1,2 milhões de bicicletas importadas da China no início da década de 1990, como parte da iniciativa cubana para reduzir o consumo de combustíveis fósseis em prol de meios de transporte não-poluentes.
Uma Flying Pigeon pesa uns 20 quilos, mas estávamos descendo uma ladeira que passava ao lado da Universidade de Havana, e com um garoto pedalando e o outro na barra, eles sumiram guinchando noite adentro.
Nas duas semanas que se seguiram, a coisa foi ficando cada vez melhor. Fiz mergulho e estourei um tímpano. Um cara deixou um tanque de oxigênio cair em cima do meu pé. O arranhão de 10 centímetros no meu braço esquerdo, lembrança do roubo, ficou verde e cheio de pus. Fui mordido por um caranguejo, um enxame de mosquitos e uns vinte ácaros de praia. Apesar de ter vindo a Cuba para medir a situação do meio ambiente local no fim do reinado de Fidel, muitos dos ambientalistas que procurarei estavam na clandestinidade, na cadeia, ou no exílio. As pessoas ficavam cochichando que era tudo mentira. Fui ver como estava um velho amigo; tinha se tornado um alcoólatra. Era junho e até o tempo estava ruim: sem vento, úmido e violento.
Ah, Cuba, mi amor. Sonhos são duty-free, importados junto com nossa bagagem de mão; já o item de exportação local é a desilusão. Nós levamos o paraíso, Cuba fornece a música e os mojitos, o mergulho de primeira, os confusos exemplos morais, os ecossistemas incrivelmente intactos e – ai! – um roubo rápido e violento, tudo feito com equipamento de terceira. Essa era minha 13ª visita, a da sorte. A viagem pode ter começado com o pé esquerdo, mas o futuro é sempre glorioso em Cuba. Não importa o quanto me critiquem por isso, vou dizer mais uma vez: Tudo é esplêndido em Cuba. Não acredite no contrário, independente do que tenham lhe dito.
SÓ HA UM PAÍS no planeta que é verdadeiro, profundo e acidentalmente ecológico. Em 2006, a World Wildlife Fund (WWF) fez as contas do mundo inteiro, cruzando fatores sociais, como educação e expectativa de vida, com as marcas que cada população deixa na natureza e a biocapacidade do planeta. Os países pobres foram reunidos na coluna da esquerda, os subdesenvolvidos. Os ricos se acotovelaram na direita, os sobreconsumidores. Das 150 nações estudadas, só aqui, no rígido reino de doutor Castro, os seres humanos estavam se desenvolvendo numa taxa estatisticamente sustentável.
A WWF não foi a única a concluir que Cuba está fazendo alguma coisa direito. Uma lista da Organização das Nações Unidas (ONU) coloca Cuba entre um dos poucos países no Caribe que detiveram e até reverteram o desflorestamento, com 22% da ilha coberta com palmeiras, pinhos, árvores de mangues e ceibas. Fidel Castro apontou-se como o principal ecologista da ilha, intervindo em tudo desde o design de barcos pescadores de lagostas (adicionando tanques de água do mar para assegurar que os filhotes capturados possam ser devolvidos à água ainda vivos) até a reforma de usinas de açúcar (para funcionarem movidas com o bagaço que sobra da colheita de cana). Ordenou o plantio de 348 milhões de árvores na década de 1960 e, até 2007, Cuba dizia que plantaria mais 135 milhões. Na Eco-92, Fidel recebeu sonoros aplausos como um profeta da ética do baixo-consumo, enquanto George Bush pai era criticado por ter ignorado tanto ele como os tratados resultantes da conferência.
Desde então, a assembléia nacional de Cuba incorporou o desenvolvimento sustentável na constituição, reservou 20% do país para conservação e organizou um mutirão nacional para instalar lâmpadas fluorescentes e eliminar antigas geladeiras que consumiam muita energia. Quando Castro soube que a pescaria com lanças estava danificando o parque nacional Jardines de la Reina, um arquipélago de 2.150 quilômetros quadrados ao sul de Cuba, ele simplesmente a baniu – apesar de ser seu jeito favorito de relaxar.
Não há dúvida que algo genuinamente importante está agora em jogo em Cuba. Se você acha que conhece o Caribe, pense de novo.
Cuba é o Caribe: tem quase metade de suas terras (dez vezes mais que a Jamaica) e um terço da população (11 milhões de pessoas) desse mar. E, em uma região que sofre com o desenvolvimento, perda de habitat natural, pesca excessiva e padrões governamentais baixos, Cuba possui a maior biodiversidade do Caribe, sendo que, talvez, metade das suas 20.808 espécies terrestres conhecidas não é encontrada em qualquer outro lugar. Seus mares são incomparáveis: a costa norte se estende na forma de um arco de quase 1.600 quilômetros de extensão, com águas cristalinas, buracos azuis e cerca de mil ilhas de recife que mal foram contempladas desde que Hemingway enviou seus caçadores de submarinos alemães para seus canais no livro Ilha do Adeus. No sul a fossa Cayman joga nutrientes na plataforma continental de 110 quilômetros de largura. Cerca de 50% da costa sul de Cuba está coberta por saudáveis manguezais vermelhos e negros, a maior floresta desse tipo – e berçário de peixes – no Caribe. O pântano Zapata, com seus 5.700 quilômetros quadrados, é o maior pantanal do Caribe, lar de 900 espécies de plantas, e seus recifes estão intactos de um modo sem comparação na região.
Espere um minuto: Cuba? Desde minha primeira reportagem na ilha – isso há 15 anos – ouço com ceticismo declarações sobre as realizações ambientalistas de Cuba, que parecem desafiar a dura realidade que eu presenciava. Websites ambientalistas da Europa vangloriavam as fazendas de vento; eu encontrei praias na costa norte manchadas de alcatrão que vinha de uma indústria de petróleo de baixa tecnologia e mal-administrada. O chefe do Centro de Estudos Cubanos, em Nova York, contou que a jardinagem orgânica estava fazendo de Havana uma cidade ecológica; no interior, deparei-me com uma agricultura tosca controlada pelo estado que estava devastando o solo. A ONU deu status de biosfera a uma reserva animal na província de Pinar del Río ao redor de uma eco-vila chamada Las Terrazas; esta acabou se revelando como sendo basicamente umas cabanas de palha e uma lanchonete usada por ônibus de turismo.
Se o presente já é duvidoso, o futuro nem se fala. Após quase cinco décadas de Castro e um total de 12 anos de Bushes, a mudança de regime é a nova realidade. Agora com 81 anos, Fidel vive graças a aparelhos [esta reportagem foi produzida durante o período no qual Fidel esteve recluso da mídia]; seu irmão de 76 anos, Raúl, está na fila; e os candidatos a presidente dos EUA, de Barack Obama a John McCain, têm falado de forma cautelosa sobre um novo começo para Cuba. O fim do embargo norte-americano à ilha mandaria milhões de turistas dos Estados Unidos para o país caribenho, transformando as belas paisagens costeiras em – bem, imagine Ayn Rand com um misturador de cimento. Os cubanos atualmente sofrem com a falta de comida e dinheiro, mas continuam sob o controle do governo; um súbito colapso do sistema político do país soltaria o povo – e os investidores estrangeiros – para cima das florestas e mares.
Em Cuba você encontra um monte de lições fáceis, porém superficiais (Michael Moore, chame seu médico!), mas até um visitante calejado como eu tem que reconhecer que uma mistura peculiar de fatores cubanos – complete incompetência econômica, políticas ecológicas visionárias e uma pitada de brutalidade comunista – conspirou para levar esta grande ilha ao século 21 com recursos naturais como só se via no século 19. O sucesso trás consigo uma questão: será possível que Cuba, uma resposta deliberada ao consumismo predatório do american way of life (estilo de vida norte-americano), possa um dia nos apresentar algumas alternativas genuínas? Se o superpetroleiro América acertar um recife de coral, será que não precisamos de algumas lições rápidas de nosso vizinho sobre jardinagem urbana, estilo de vida de baixo impacto ambiental, e como colocar dois caras numa bicicleta?
ALÉM DE SER o pior divemaster que já encontrei, o guia que nos levou às águas profundas a oeste de Cuba também era um bobo. Um bobo é um apreciado tipo cubano, alguém deliberado, desafiador e divertidamente metido. Neste caso, o divemaster era um reclamão, que vivia rindo e evitando nossas perguntas, ignorava a palestra de segurança só para fumar um cigarro, não falava para onde estávamos indo e sobre a vida marinha que encontraríamos dizia “a gente discute os peixes depois”. Ele também ficava ridículo em sua pseudo-roupa de mergulho.
Mas a água… ah, a água. Os sedimentos dos rios fazem os mergulhos nas praias do leste cubano não muito impressionantes, mas aqui no oeste árido, de frente para Cozumel, num pequeno resort chamado María la Gorda, a corrente ascendente de água limpa do mar e vida marinha que vinha da fossa Cayman cria alguns dos melhores pontos de mergulho do Caribe. Cada ondulação na areia parecia ao alcance das mãos, apesar de estar a 10 metros de distância.
Logo me vi no meio de um monte de bolhas. Meu colete, o regulador e o regulador reserva estavam todos soltando jatos de ar. “Todo equipamento vaza em Cuba, sempre”, disse o mergulhador ao meu lado. Era um neozelandês loiro, na casa dos 20, chamado Ryan. Ele sugeriu que formássemos uma dupla – algo que o divemaster não se incomodou em fazer – e fomos para baixo, seguindo os outros mergulhadores na medida em que o banco de areia se transformava em um dos íngremes paredões de Cuba, os veriles, uma linha reta até o fundo do Caribe.
O divemaster nos levou até uma fenda estreita na areia, um crevasse no fundo do mar, e sem olhar para trás, ele e os outros entraram nela, com Ryan e eu por último. A descida era quase vertical e as paredes do cânion eram fechadas e cobertas com longas árvores de coral negro, um dos corais com crescimento, mas lento, sob maior risco de extinção no mundo. Ele tinha esquecido de mencionar que estávamos indo direto para uma das mais famosas formações de corais negros de Cuba, onde milhares de anos de devagar progresso agora estavam vulneráveis a qualquer malandro descontrolado com roupa de mergulho.
Essa antiga floresta era um ótimo argumento em favor das políticas conservacionistas de Cuba – o comércio mundial do coral negro sofre várias restrições graças ao tratado CITES da ONU, justamente por já ter sido devastado em lugares como as ilhas Cayman e Yucatán. Mas em Havana, encontrei pérolas do coral a venda na lojinha do hotel Havana Libre por um dólar. O governo de Cuba se permite fazer várias coisas – como prender golfinhos com redes e vendê-los para parques aquáticos na década de 1990 – que seriam condenadas se feitas pela iniciativa privada.
Consegui sair do cânion sem estragar nada, mas assim que cheguei ao mar aberto, minha orelha esquerda estourou. Engasguei com o susto e a dor e esqueci da minha flutuabilidade. Afundei 30 metros, sem ninguém comigo além de Ryan, que via tudo de longe. A dor estava me afastando de tudo – muito fundo, muito perigoso, respirando rápido demais (pânico!) – mas fechei os olhos e me forcei a corrigir minha profundidade, seguindo Ryan lentamente ao longo do paredão, passando por corais de três metros de comprimento, imensos peixes bodião roxos e peixes-anjos reais. Um polvo espiou de debaixo de uma rocha, enormes jarras de coral cobriam a parede, um recife saudável repleto de vida em um reino azul-esmeralda.
Quando voltamos ao barco, o divemaster já estava a bordo, fumando um cigarro. Nunca conversamos sobre os peixes e quando voltamos à terra firme e perguntei seu nome, ele saiu fora sem responder. Prestação de contas não é uma coisa muito cubana. E, como para enfatizar esse ponto, um tripulante descuidado derrubou um tanque de oxigênio no meu pé e ficou sorrindo desamparadamente enquanto eu xingava Deus e o mundo.
Fala-se muito sobre o que vai acontecer quando os turistas norte-americanos puderem visitar Cuba, mas os europeus e os canadenses já estão aqui, 2,3 milhões por ano, trazendo cerca de US$ 2 bilhões para a ilha, segundo a revista The Economist. Nos últimos dez anos, Cuba dobrou o número de quartos de hotel para 50 mil, ignorando preocupações ambientais no processo. Na península Varadero, duas horas a leste de Havana, reservas de coqueiros foram derrubadas para dar espaço a mais hotéis além dos que já havia no lugar.
Na costa norte, em 1988, o governo abriu uma estrada elevada de 27 quilômetros no meio das baías rasas da bela ilha de corais de Cayo Coco e depois construiu uma série de hotéis, com 3 mil quartos no total. Dezenas de espécies de pássaros e peixes sofreram graves danos; por toda Cuba, biólogos, arqueólogos, pescadores e dissidentes me disseram que Cayo Coco foi a gota d’água que criou o ativismo ecológico, a primeira vez que viram o meio ambiente como um problema político.Hoje a estrada possui postos de polícia que não deixam os cubanos comuns passarem, o exemplo definitivo o qual Frommer se refere como “pontos turísticos ao estilo apartheid”, onde os estrangeiros podem curtir a vida longe da realidade da ilha.
María la Gorda ficava isolada graças à geografia, ao preço e à política. Um hóspede cubano sequer vai ao pequeno resort, que fica numa praia bonita, com chalés confortáveis e ótimos pores-do-sol. Mas a comida era patética, um self-service de salada de salsicha, galinha a la desertor e peixe oleoso, que costuma ser reciclado para o café da manhã do dia seguinte. Isso é típico nos resorts cubanos, pelo menos na minha experiência, e explica porque Cuba tem uma das menores taxas de lucro do turismo internacional. Tudo, desde o alto custo da taxa de aterrissagem de aeronaves, uma das mais caras do mundo, até um peso (moeda cubana) especial para turistas (caro na ilha e inútil fora dela) faz de passeios fora da área dos resorts uma coisa difícil e devagar.
Ryan parecia desiludido. “Nós passamos quarto dias em Havana”, disse enquanto lavávamos nosso equipamento, “e foram quatro dias a mais do que gostaríamos”. Ele fez uma imitação dos vendedores de charuto e dos aspirantes a cafetão: “He-joe my fren’ my fren’ you wanna Habana cigar girlfren’ mulatta negra rubia.”. Ele e seus amigos gostaram de Viñales, a tranqüila região produtora de tabaco a oeste do país, mas aqui era o único lugar que poderiam amar de verdade. A água era mais quente que na Nova Zelândia, e não havia trambiqueiros, burocratas ou até mesmo cubanos sob as ondas.
O TURISMO EM CUBA é freqüentemente administrado pelos militares. María la Gorda é controlado pela Gaviota S.A., a maior agência de turismo de Cuba, que por sua vez é uma subsidiária das Forças Armadas Revolucionárias. O piloto de um helicóptero de passeio me contou que aprendeu a pilotar num navio de guerra soviético no Afeganistão; meus vôos domésticos foram todos em aviões da Gaviota, pintados de verde e amarelo tropical, mas listados nos aeroportos como aeronaves do exército. Por meio da Gaviota, os militares oferecem expedições de pesca, excursões de mergulho e viagens para fontes térmicas e, no país inteiro, táxis da TransGaviota te levam dos restaurantes Gaviota para os hotéis Gaviota, oferecendo a loção hidratante Gaviota.
No bar de um desses complexos militar-turísticos, o hotel Nacional, em Havana, deparei-me com Wayne Smith, um ex-diplomata de barba que foi o homem de Jimmy Carter em Havana, cuidando da Seção de Interesses dos EUA, o mais próximo de uma embaixada que os Estados Unidos têm por aqui. Ele estava sentado numa poltrona de vime na varanda de trás desse palácio de pedra. Músicos passavam por ali, como na época em que Al Capone, Winston Churchill e um monte de astros do cinema dormiam aqui.
Smith agora dirige o programa cubano para o Centro de Política Internacional de Washington. Ele conhece Castro há décadas. Por isso pergunto se El Comandante era realmente responsável pelo sucesso de Cuba na ecologia. “Quem sabe?”, respondeu. “Fidel é mergulhador. Mas é uma questão complicada. Cuba tem políticas duras em favor do meio ambiente, mas num nível institucional, quando é uma questão de desenvolvimento versus ecologia, há várias brechas por onde se pode esgueirar. O que lhe parece?”
O de sempre, respondo: declarações visionárias, seguido do mais puro caos. Ele resmunga em resposta. O meio ambiente em Cuba era igual àquele hotel: mais um museu que um refúgio; protegido e negligenciado, com o Estado tirando sua casquinha e proibindo cubanos de entrarem.
David Guggenheim, conselheiro do Harte Research Institute for Gulf of Mexico Studies (Intituto de Pesquisa Harte para Estudos sobre o Golfo do México), recentemente disse ao New York Times que mergulhar em Cuba era “como voltar cinqüenta anos no tempo” e foi o que pensei a respeito sobre a María la Gorda. Mas Smith não aceitava isso: na década de 1950, disse, “era impossível sair sem ver montes de barracudas, tubarões, nuvens de peixes”. Agora, continuou, “a maior parte disso já era. As pessoas precisam dos peixes, da proteína”.
Naquela noite, provei o gosto da política de sustentabilidade oceânica no La Divina Pastora, um restaurante numa antiga fortaleza espanhola de frente para o porto. Cuba emprega técnicas holísticas para criar uma população saudável de lagostas, com melhorias do habitat e limites de pesca impostos com uma dureza possível somente em ditaduras (a venda particular de lagosta é crime em Cuba; a polícia caça os pescadores ilegais de lagosta como se fossem traficantes de crack). Isso permite que Cuba exporte frutos do mar congelados para a Europa e resorts no Caribe, mas também beneficia os norte-americanos: como as larvas de lagosta são levadas pela corrente do Golfo, os cuidados cubanos acabam ajudando a restaurar o equilíbrio das águas dos Estados Unidos.
O restaurante era administrado pela Gaviota. Vestindo uma camisa havaiana, o chefe se apresentou como tenente-coronel das Forças Armadas Revolucionárias Gerardo Tur. A Gaviota, admitiu, tinha “uma relação próxima e bem direta” com as forças armadas. Ele mesmo tinha sido emprestado à linha de frente da luta do turismo e se gabava de ter “a melhor carta de vinhos de Cuba”. Eu não testei a afirmação, preferindo pedir um daiquiri, e então, sentado atrás de uma linha de nove canhões de ferro, comi lagosta fresquinha com maionese de lima.
Atrás de mim está El Morro, o farol/castelo,que é o mais famoso marco cubano. Seguindo a linha da costa dava para ver a Seção de Interesses dos EUA, iluminada por propagandas anti-Castro e cercada por outdoor de resposta que mostra Tio Sam levando um chute no traseiro por cubanas sensuais.
Às 9 da noite, o canhão do porto foi disparado, uma tradição que remonta séculos. Costumava dizer que o porto estava para ser fechado. Hoje em dia, é o tiro de largada para a noitada.
ALGUMAS MANHÃS DEPOIS, às 4h20 da madrugada, embarquei num avião turboélice da marca Ilyushin, tecnologia de ponta da década de 1960, para um vôo cheio de fumaça e trepidações até a província de Holguín, no leste. Uma banda de salsa barulhenta nos recebeu na chegada, às 7 da manhã, e os demais passageiros – turistas europeus – subiram num ônibus que os levaria aos resorts de praia locais, que dizem serem os mais luxuosos de Cuba. Em um estacionamento poeirento, negociei um lugar no banco da frente de um velho jipe Toyota que seguia para a baía de Moa, que dizem ser a mais poluída.
Também é uma das mais remotas. Por dez dólares – o triplo do que os cinco cubanos no banco de trás tinham pagado – sentei na frente para uma viagem de três horas para o leste. Subimos a Sierra del Cristal, um dos locais mais lindos de Cuba, cheio de pequenos riachos, bosques de palmeiras ocultos, e pequenos vales que se alternam com vastas paisagens. Há meros quatro anos, um fazendeiro encontrou um animal até então dado como extinto, o pequeno almiqui, no meio de sua colheita.
As montanhas dão espaço às planícies cobertas de fazendo onde o Fidel em pessoa cresceu. Agora o lugar estava mais para os Irmãos Marx do que para Karl Marx: fazendas abandonadas, árvores derrubadas, ranchos com mais vaqueiros que vacas e um haras que o motorista jurou ter apenas um cavalo. Um resumo do que é Cuba. Quando cheguei a Moa ao meio-dia, já havia trocado o Toyota por um Nash Rambler, um carro da década de 1950, com um porquinho amarrado no pára-choque. No banco de uma bicicleta transformada em riquixá, sai à procura dos ambientalistas clandestinos.
No começo as coisas foram devagar. A corrente dessa coisa de três rodas ficava saindo do lugar, e o “motorista” pedala para frente e para trás para recolocá-la no lugar. Fomos arrastando-nos pela rua principal de Moa de um modo muito simbólico (“Cuba é assim mesmo!”, gritou um bobo qualquer), até uma humilde casa de madeira quase caindo num riacho sujo, lar de Silverio Herrera Acosta, um fotógrafo asmático de 55 anos. Com ele estava Francisco Hernandez Gomez, um ativista de 36 anos e aparência jovem. Juntos, os dois formavam a totalidade de seu próprio movimento político, sem nem mesmo um telefone, mas sob risco de serem reprimidos e presos.
Apesar de seus avanços ecológicos, Cuba ainda é uma ditadura, e os poucos ambientalistas independentes da ilha são constantemente lembrados desse fato. Ecologistas de oposição e amadores que tentam se organizar ou protestar podem sofrer uma escalada de retaliações: congelamento de carreira e falta de promoções, seguido de sermões, depois ameaças, depois detenções informais e formais, podendo chegar a anos de cadeia. Os fundadores da Naturpaz, um pequeno grupo ilegal de Havana, foram presos várias vezes por divulgaram o estado dos córregos e ruas imundas de sua favela. A verdadeira política ambiental de Cuba, disse Silverio, é “calar a boca”. As iniciativas de conservação de Fidel são como “uma mulher que se maquia, mas não toma banho”.
Silverio e Francisco só se tornaram ativistas porque a Moa precisava: uma empresa norte-americana, a Freeport Sulphur, construiu uma refinaria lá na década de 1950, quando a região ainda era selvagem; agora Cuba opera três fundições construídas pelos soviéticos – coletivamente conhecidas como Complexo Che Guevara – e aluga a refinaria norte-americana para a Sherritt do Canadá, que diz fazer seu refino mais pesado em outros locais. Em um surto de planejamento central, a cidade de 65 mil operários foi construída diretamente na direção do vento, o que resultou, segundo Silverio, numa epidemia de asma e uma das mais altas taxas de câncer de pulmão de Cuba (“até os adolescentes ficam doentes”, denuncia). Passando o dedo por sua mesinha de centro de vidro, ele libera uma nuvem de sujeira negra. “Limpei isso ontem”, explica. “É resíduo de ácido clorídrico, soda cáustica, amônia e outras coisas”.
Francisco tentou resolver tudo pelos canais competentes. Escreveu uma carta; uma equipe do governo apareceu, deu uma olhada na poeira de níquel e depois nunca mais deu notícias. “Você pode protestar contra o governo”, conta Francisco, “mas é só para sua própria satisfação”.
Em 2006 ele começou a organizar uma pesquisa sobre as crianças com asma, mas a polícia bateu na sua porta quatro vezes, dizendo que parasse com aquilo. Naquele mês de junho, conta, foi atacado e espancado por simpatizantes do governo e, quando tentou dar início à pesquisa, foi convocado à delegacia, onde diz que foi chutado na cabeça, costas e rins. Quase um ano depois, ele levanta sua camiseta Puma e mostra uma enorme cicatriz pálida.
Francisco e eu estávamos atravessando uma esquina quando ele me jogou nos arbustos. Uma moto passou lentamente, com um motoqueiro de capacete laranja. “Esse é o cara que nos vigia”, explicou Francisco. “Não temos medo da cadeia”, acrescentou, com mais resignação do que audácia. “Se precisarmos ir, nós vamos”.
Em vez disso, fomos às refinarias. Alugamos um carro barulhento da década de 1950 e seguimos por uma região que parecia saída de um desenho do Papa-Léguas: terra vermelha, depósitos de enxofre amarelos e rodopiantes nuvens de vapor. As bermas de terra impediam que víssemos muita coisa, mas mais tarde, Eudel Cepero, um ambientalista cubano exilado que dá aulas na Universidade Internacional da Flórida, mostrou para mim as coordenadas no Google Earth. Do espaço vi uma paisagem coberta de minas com piscinões que lançavam colunas de gás no mar. Isso também faz parte do legado ambientalista de Castro.
Tinha que deixar Moa. Os três hotéis rejeitaram-me, os ônibus do dia já tinham partido e não havia carro para alugar. Ao cair da noite, Francisco foi comigo a pé até a estrada ao lado da cidade, onde esperei até às 23 horas com mais 30 pessoas no escuro, na esperança de pegar uma carona. Finalmente, o paciente Francisco sugere que eu dormisse ilegalmente na sua casa, apesar de que “o capitão vai mandar alguém para te dar um corretivo”.
Andamos de volta para a casa – emissão zero de carbono – e antes da meia-noite chegamos a casa de três cômodos que ele dividia com a esposa, o irmão, a sobrinha e a mãe. A mãe estava sentada na varanda da frente da casa numa cadeira enferrujada de dentista, fumando um charuto. Tomei um banho cubano – um balde de água, uma caneca e um pano – e me deitei na melhor cama da família, uma rede de cordas esticadas com molas quebradas. Mosquitos, brisas e finalmente chuva passavam pela parede de madeira.
Ah, que se danem os resorts: esta é a Cuba que eu amo, generosa e esforçada, cheia de princípios e venenos, de cabeça quente, pés descalços e teimosa, cheia de vida. Nem todo o cinismo (ou exatidão) do mundo pode superar a mistura romântica de genialidade e caos, mitologia e auto-contradição, que é Cuba.
Eu fico deitado no colchão de cordas de Francisco por mais de 1 hora, exausto demais para dormir, contando garrafas de vidro. Como todos os cubanos, sua família as lavava cuidadosamente e as reutilizava, e havia 42 acumuladas no canto. Cuba era mais uma sociedade pré-consumista que uma sustentável. Todo mundo vai a pé ou de bicicletas aos lugares. As lixeiras ficam vazias, pois praticamente tudo pode ser consertado, vendido, trocado ou transformado em ração para porcos. Papéis são recolhidos por idosos pagos pelo Estado. Tudo, desde legumes e ovos até pele de porco e peixe, vai sendo recolhido tão lento e sazonalmente, que até o consumidor mais dedicado de produtos locais sairia nadando até Key West, na Flórida (EUA), atrás de comida.
Somente a necessidade fazia de Cuba um país ambientalista, o que pode ser sua lição mais importante, de verdade. Nada de transporte. Nada de compras. Nada de propaganda. Nada de energia. Nada de desperdício, nada de gordura e nada de cartilagem. Nada de consumo excessivo e não muito consumo escasso também. Economia ausente é economia ecológica. Eventualmente, Francisco trouxe uma bebida que me derrubou. Era um copo de água com cheiro de enxofre.
FIDEL CASTRO PODE acabar no inferno por causa das coisas que fez, mas se ele entrar no paraíso, pode ser pelo que deixou de fazer – pelo que deixou de ser destruído, devastado, poluído ou pavimentado. Após essa visita de estourar os tímpanos ao María la Gorda, peguei meu carro alugado e fui ainda mais para o oeste, seguindo a última estrada de Cuba, longa e esburacada, até a ponta mais ocidental das Índias ocidentais, o cabo San Antonio, um dos últimos refúgios de um verdadeiro dinossauro, a Chelonia mydas, mais conhecida como tartaruga-verde.
O terreno era plano, miserável e duro, e somente pequenas iguanas – “cachorrinhos da praia”, na gíria cubana – moviam-se em meio aos arbustos. Após horas de procura, avistei não uma tartaruga, mas um cubano suburbano com roupa de mergulho e chapéu de caubói. Ele veio caminhando vagarosamente da praia, tão surpreso quanto eu por encontrar outra pessoa.
Rolando Díaz é um técnico de zoologia de 42 anos. O governo manda pesquisadores como ele e estudantes daUniversidade de Havana para acampar em turno de 15 dias para vigiar as oito praias onde as tartarugas procriam. Ele me mostrou seu acampamento: uma barraca da marca Eureka! na praia, um rádio AM e uma cisterna com água. “Estamos tentando salvar as tartarugas aqui”, me disse, “para que meus netos possam vê-las. Chegamos a ver 130 tartarugas nessa praiazinha, mas não há tantas este ano. Algo está errado. Normalmente elas já teriam chegado”.
A maior ameaça, contou, não é o desenvolvimento nem os predadores, mas simples cubanos. Uma vez, quando os técnicos deixaram passar um turno de quinze dias, moradores locais famintos comeram umas 70 tartarugas. “A gente vem de Havana e diz para as pessoas ‘não coma as tartarugas, elas estão acabando’”, explicou Rolando. “E elas respondem, ‘nós também’. A maioria das pessoas aqui vive de tartarugas. É difícil fazer conservação num país pobre. É difícil ser um ecologista em Cuba”. Seu salário mensal é de 350 pesos ou US$ 13. Seu irmão, chefe do programa das tartarugas, foi para uma conferência na Grécia e nunca mais voltou.
Naquela noite, fiz vigília com Ronaldo na praia. As fêmeas vêm à praia na maioria das noites durante o verão, arrastando suas carapaças atávicas até as árvores e escavando grandes buracos para enterrar seus cem ou mais ovos. Uma das mães apareceu na noite anterior e Rolando me mostrou a trilha de 1,20 metro na areia e o galho que usou para marcar o novo ninho. Além dos humanos, cães, porcos selvagens, gaivotas, ratos e até mesmo caranguejos costumam desenterrar os ovos.
À 1h30 da madrugada, o céu noturno se cobriu de nuvens, escondendo a luz da lua. As tartarugas preferem a escuridão total, mas ela fazia todas as pedras na praia parecerem carapaças e nuvens de mosquitos surgiram para me torturar. Antes de ir dormir, Rolando me alertou para não me deitar, mas eu acabei fazendo isso, e descobri o porquê do alerta: a areia estava infestada de jereres, pequenos ácaros que me picaram até o meu sangue estar escorrendo pelos tornozelos. Das 2h30 até às 3h30 tentei dormir num pedaço de madeira trazido pela maré, mas acabei acordando com um grito quando um caranguejo vermelho picou meu dedão.
Rolando saiu de sua barraca e ficamos sentados ouvindo o som das ondas. Ele tinha a eloqüência de alguém que esperava por uma conversa há 15 dias. O oceano era “meu amigo, o mar. Ele é lindo por cima e por baixo. Esse é o meu mundo, o lindo mar. Se eu pudesse nascer de novo, seria um peixe, uma baleia, até um tubarão. Eu amo todos eles”.
“Quanto os turistas pagariam por isso?”, pergunta Rolando. “Ter um caranguejo beliscando seu dedão? Cinqüenta dólares? Todo mundo quer um pouco de natureza. Eles viriam para ver as tartarugas e dormiriam em barracas.”
Depois de um tempo ele voltou para a Eureka!, mas eu fiquei lá, andando pela praia vazia, horas sem luz, tráfego, gente, barcos, ou qualquer coisa além do mar e seus mistérios, por cima e por baixo.
Não cheguei a ver nenhuma tartaruga. Às 5h15, quando o primeiro sinal de aurora surgiu no leste, voltei para meu carro alugado, me ajeitei como deu no banco da frente, e fui dormir. Tudo estará melhor amanhã.
Patrick Symmes é o autor do livro The Boys from Dolores: Fidel Castro’s Classmates from Revolution to Exile (Os Garotos de Dolores: Os Colegas de Classe de Fidel Castro da Revolução ao Exílio, em tradução livre e ainda não publicado no Brasil – disponível na amazon.com – no qual o autor entrevista vários ex-estudantes do colégio cubano las Dolores, menos Fidel e Raul Castro)
O Eixo da Ecologia
Como vai o ambiente em outros regimes inesperados
Líbia
Em setembro de 2007, o antigo estado pária anunciou planos para o maior empreendimento sustentável do mundo – quase 5.500 quilômetros quadrados de campos de golfe, hotéis e chácaras. O projeto, feito pelos arquitetos britânicos da empresa Foster & Partners [que fez o megaaeroporto de Pequim, na China], vem com todas as frases requeridas (carbono-neutro, energia renovável, conservação arqueológica), mas será construído em meio às montanhas costeiras que a WWF chama de “um dos dez últimos paraísos” do Mediterrâneo.
Coréia do Norte
Cinco décadas de impasse transformaram a fortificada Zona Desmilitarizada, na península coreana, num dos ecossistemas mais revitalizados do mundo, um refúgio para espécies raras, como o urso negro asiático e o lince eurasiano. Agora defensores internacionais, incluindo o magnata da comunicação Ted Turner, estão pressionando ambas as Coréias a declararem a faixa de terra de 250 x 4 km em parque da paz. A reclusa Coréia do Norte demonstrou pouco interesse, mas pode dar acesso à Fundação Internacional da Garça (savingcranes.org) para estudem o grou-do-pescoço-branco.
Irã
A busca incessante por poder nuclear freqüentemente empurra para o canto os esforços iranianos em busca de fontes alternativas de energia. Mas desde a criação da Organização pela Energia Renovável do Irã, em 1999, o país vem explorando opções ecológicas, como a energia eólica (com 500 fazendas de vento sendo construídas) e usinas de energia-solar (duas em obras). Essa nação rica em petróleo até se voltou para a energia geotérmica, com uma usina de 55 megawatts na montanha vulcânica de Sabalan. Em 2010, o Irã espera produzir mais de 700 megawatts com fontes renováveis. – Ryan Krogh
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de abril de 2008)
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