Pode ser que arda um pouco

Por Erick Hansen

NOS ÚLTIMOS QUATRO DIAS meu amigo Tim e eu estivemos vagando pelo centro do México experimentando tequilas. Visitamos destilarias e lojas de fábricas no planalto a 2.130 metros de altitude a leste de Guadalajara. Daqui para o oeste, pela La Ruta del Tequila, seguimos a “trilha da tequila” demarcada pelo governo, que circula um baixo vulcão enquanto atravessa diversos municípios onde a bebida é feita, incluindo El Arenal, Amatitán, Tequila e Magda¬lena. Na Ruta, a maior parte dos turistas é composta de casais mexicanos procurando as antigas locações de uma popular telenovela chamada Destilando Amor. Já o nosso objetivo é beber as melhores tequilas do mundo.

Hoje o dia é de preguiça e um pouco de ressaca – por isso, quando Tim e eu fomos de tarde até uma cantina entre Amatitán e Tequila, era só para ver o que estava rolando. O bar a céu aberto, à beira da estrada, chama-se Jarritos el Guero e serve uma margarita mexicana feita com toranjas, laranjas, lima, sal e um toque de Squirt. Quando estamos atravessando o pátio, uma voz vinda de trás nos chama – “Oi!”.

Cinco mulheres na casa dos vinte e poucos anos, todas usando camisas pólo amarelo-canário dos funcionários da fábrica e museu da Cuervo, na estrada perto dali, nos chamaram. As mulheres explicaram em inglês que reconheceram o cabelo espetado e o grande sorriso de Tim do dia anterior.

“Por que vocês vêm até aqui beber?”, pergunto. “Vocês não conseguem bebida de graça da Cuervo?”

“Sim”, explica uma das mulheres, “mas esta tequila é a melhor que há!”

Ela oferece sua caneca de barro e, realmente, a tequila lá dentro parece anormalmente suave e forte. Mas não dá para dizer mais que isso, já que o sabor foi encoberto pelo gosto de frutas cítricas. “O que é isso?”, pergunto.

Ela diz que é uma falsificação de alta qualidade chamada De la Sierra. Quem a faz, e onde, é um mistério. As mulheres nos dão várias respostas contraditórias – “É feita por traficantes de drogas”; “É feita naqueles morros ali”; “Não! Ali” – e vão embora antes de conseguirmos descobrir a verdade.

Não experimentamos de verdade essa tequila secreta. Não sabemos onde ela é destilada. Mas precisamos achar. O destino ou a sorte nos trouxeram até aqui. As meninas da Cuervo mostraram o caminho.

A TEQUILA É FEITA a partir de uma única espécie de agave, o Agave tequilana Weber, ou agave-azul, uma planta de suculentas folhas pontudas, parente dos lírios, que leva de sete a dez anos para amadurecer e cujo grande centro, quando cozido, fica com gosto forte de damasco.

Os parentes da tequila – o sotol, a raicilla, a bacanora, a mezcal com verme – são feitos em regiões diferentes, com espécies diferentes de agave. A tequila verdadeira vem somente de Jalisco – um estado mexicano pouco menor que Pernambuco – e de alguns povoados próximos.

As melhores tequilas são as tequilas para se beber em pequenas doses feitas com agave puro, como a Cuervo Tradicional. Os mexicanos as chamam de cien por ciento, diferente da mista, a tequila tequila, como a Cuervo Gold, que é apenas 51% agave, o mínimo permitido pela lei. O resto é açúcar, corante caramelo e outros aditivos.

As cien por ciento vêm em quatro tipos, dependendo da idade. A blanco é engarrafada quase que direto do tanque de destilação. A reposado fica em repouso por pelo menos dois meses em barris de madeira, para amenizar o sabor. As añejos, ou envelhecidas, ficam em repouso por pelo menos um ano. Desde 2006, existe o tipo chamado extra añejo, que é envelhecido por três anos ou mais. As blancos costumam ser usadas nas margaritas e as outras para beber em doses, mas todas são excelentes, tanto puras quanto misturadas.

Reza a lenda que a tequila primitiva foi descoberta por um índio ancestral, que se deparou com um coração de agave que tinha acabo de ser fermentado ao ser atingido por um raio (cara!). Seja quem for que tenha começado, a fabricação de tequila não é muito complexa. Cozinhe o agave para liberar seu açúcar, adicione levedura para transformar o açúcar em álcool, separe o álcool por meio de destilação e voilà: tequila básica. Muitos habitantes locais ainda fazem tequila caseira com essa técnica rudimentar.

É claro que o processo ficou mais sofisticado graças, em grande parte, às superpotências seculares da tequila: Cuervo, Sauza e Herradura. A Patrón, uma das dez maiores fabricantes com fábrica em Jalisco, foi fundada em 1989 por dois estadunidenses de Las Vegas (EUA) e é hoje a tequila mais popular do mundo para se tomar em doses. O sucesso dessa jovem estrela ianque causou ressentimento entre seus concorrentes mexicanos, mas não há como negar que ela apresentou milhões de pessoas ao prazer das doses de tequila. A Patrón vendeu 100 mil caixas em 2000; 1,6 milhão no ano passado.

Hoje em dia, é difícil encontrar uma cidade grande sem pelo menos uma cantina de alta classe com uma parede feita de garrafas de vidro artesanal. Uma tequila orgânica com certificado e tudo, a 4 Copas, chegou recentemente ao mercado. E, em 2006, uma garrafa de tequila que custava US$ 225 mil, chamada Pasión Azteca, foi vendida na Cidade do México, estabelecendo um novo recorde para a garrafa de bebida alcoólica mais cara já vendida no mundo. No mundo real, uma tequila das boas, mais em conta, custa entre US$ 30 e US$ 300.

O QUE NÃO QUER DIZER que a tequila tenha perdido completamente sua reputação como aguardente, a bebida para quem quer encher a cara rápido. Mas Tim e eu já passamos dessa fase (é, falou!), por isso organizamos nossa viagem mais como uma jornada de degustação de vinhos. Com a ajuda de nosso guia e motorista oficial David Ruiz – um homem de 58 anos cheios de contatos, que se aposentou do mundo da informática para guiar excursões personalizadas de degustação de tequila –, nós planejamos cuidadosamente os três primeiros dias e deixamos os dois e meios seguintes para fazer o follow-up. Tim, que é um importador de vinho de 32 anos do Colorado (EUA), seria nosso degustador profissional – pense nele como “O Nariz”.

Deixamos Guadalajara às 8h30 do primeiro dia, saímos da estrada 15 em Arenal para o começo da La Ruta, atravessamos um rio que estava verde por causa dos detritos da destilação e estacionamos em nossa primeira pequena destilaria, a fábrica de tequila Cascahuin, que havia começado há pouco tempo a produzir uma tequila de edição limitada chamada Revolución Oro, de US$ 700. Lá, vimos que o agave fermentado viajava para os tanques de destilação através de uma vala aberta numa calçada de concreto, de modo que não ficamos tempo o suficiente para experimentar a tal tequila. Grande erro. No começo da tarde já tínhamos percebido que muitas tequilas, algumas delas de ótima qualidade, são produzidas em condições que parecem bem nojentas. Decidimos passar mais tempo bebendo e menos tempo fuçando as fábricas.

Viramos dois bitolados, notando “lágrimas lentas”, “longa persistência”, “tons de âmbar” e “queimação intensa”. Especialistas dizem que as diferenças entre as tequilas de dose não são tão dramáticas quanto as de uísques single malt, mas nós encontramos sutilezas mais do que suficientes para nos mantermos interessados nelas – toques de açúcar mascavo, mel, pimenta, manteiga, repolho, batata-doce, banana assada, damasco, maçã, limão, pêra, menta, morango, coco e flores de maçã. Infelizmente, Tim me proibiu de usar a palavra ambrosia.

No segundo dia experimentamos 17 tequilas e acabamos concordando com os especialistas: as tequilas da Ruta têm um gosto de ervas, enquanto as dos planaltos são mais florais. Também desenvolvemos duas teorias. Primeiro, que as tequilas produzidas pelas grandes destilarias tendem a ser mais acessíveis, pois têm um gosto mais puro, enquanto os produtos dos pequenos fabricantes têm mais personalidade, com sabores mais variados. Segundo, que uma tequila envelhecida é a mais elevada forma de arte do mundo.

Chegamos a esta conclusão enquanto provávamos a tequila que acabou sendo nossa favorita: uma excelente extra añejo chamada D’Antaño de la Casa Siete Leguas. Em muitas tequilas envelhecidas, o sabor de agave desaparece debaixo do de carvalho doce, ou aparece de lugar nenhum, como se alguém dissesse que você tem que ver alguma coisa e, quando você se aproxima, te dá um tapa na cara. Mas essa tequila rara de cinco anos passou pelo caramelo, pêra, e banana, com um toque de agave apimentado, e depois voltou para o doce e desvaneceu-se.

Eu disse isso mesmo? Hum, acho que está na hora de largar minha taça e parar de fazer comparações.

NO TERCEIRO DIA saímos por nossa própria conta, rodeando o vulcão pelos campos de cana-de-açúcar, e chegamos tarde em Teuchitlán, a última parada na Ruta. Mas o povoado não tinha nenhuma destilaria, no final das contas.

Nós nos instalamos no que uma mulher em uma loja de esquina disse ser a única hospedaria da cidade – uma casa térrea pulguenta chamada, simplesmente, de Hotel. Fora, do lado de uma fila de carros estacionados perto da praça, uma dúzia de moradores locais serviam drinks de tequila tequila na caçamba de uma picape branca. Eles variavam de gordo a musculosos, com cabeças raspadas e barbinhas estilo bode. “Amigos”, gritaram, “querem um pouco de tequila?”

Tim e eu nos aproximamos com um pouco de timidez ianque, mas os caras eram na verdade dentistas, advogados e cientistas. Eles distribuíram copos de plásticos cheios até a metade com Squirt e El Jimador, a tequila mais vendida do México. Viramos vários goles da bebida misturada, chamada paloma (pomba), e a noite foi adquirindo uma lógica própria.

Fui apelidado de Salsicha, por causa daquele personagem do desenho animado Scooby-Doo. Acho que eles não entenderam como meu cabelo desgrenhado poderia estar na moda. Mais um gole.

Um 4×4 desceu pela rua quieta, repleto com cerca de uma dúzia de crianças, todas acenando para nós. Outro gole.

“Ranas del diablo!” gritou um de nossos cabróns. Era cerca de nove da noite, estávamos famintos, e eles insistiram que experimentássemos rãs apimentadas. A mulher na grelha perto dali ficou com pena da gente e nos ofereceu hambúrgueres. Gole.

Às 22h30 as garrafas de tequilas tinham secado e a festa estava para acabar. Então, do nada, apareceu um caubói: esporas, poncho, o pacote completo. Ele pulou da sela, sacou duas garrafas de tequila tequila de não tão boa qualidade e entregou a rédea para Tim, como se ele fosse um manobrista de cavalos. O bar estava aberto de novo. Gole. Gole.

“Vai dar uma volta, Salsicha”, gritou alguém. Os cavaleiros Salsicha e Tim se alternaram dando voltas ao redor da praça. Depois disso fomos para a cidade, para penetrar em festas de casamento.

Cerca de uma da madrugada, Tim e eu conseguimos chegar ao hotel. Foi a noite mais inesquecível de que eu me lembro mais ou menos.

NA MANHÃ SEGUINTE, quando notei que meus lençóis estavam cheios de manchas íntimas de outras pessoas, sai correndo da cama como se ela estivesse pegando fogo. Na maior ressaca, mas satisfeitos, voltamos para Tequila no encalço de destiladores que deixamos passar da primeira vez. Não tivemos sorte. E foi aí que nos deparamos com as mulheres da Cuervo.

Mais uma vez, a curiosidade venceu o conhecimento dos especialistas e saímos à caça de De la Sierra, subindo os 600 metros de um altiplano vermelho por uma estrada de terra, seguindo um mapa feito por Jesus, o proprietário da Jarritos el Guero. “Quando chegarem em El Salvador, pergunte por ela”, disse.

Depois de duas horas, a estrada nos deixaria em El Salvador, um povoado quase deserto de casas de tijolos de barro açoitadas pelo vento. Ninguém tinha ouvido falar do lugar – nem os dois homens na praça, nem os da cantina sombria, e nem a mulher solitária vendendo doces, que simplesmente olhava para o outro lado, como se fôssemos seqüestrar seu filho. Vagamos pelas ruas procurando alguém – qualquer pessoa – e nos sentindo perdidos.

“Você conhece a De la Sierra?”, perguntamos a um homem que parecia um Burt Reynolds barrigudo.

Quando ele disse não, perdemos a paciência e contamos nossa frustrante história – como conhecemos por acaso umas meninas da Cuervo, como viemos pra cá num carro caindo aos pedaços, etc. No final de nosso lamento, ele olha para nós, sorri, e nos guia por um quintal até a parte detrás de uma garagem, onde três barris empoeirados se encontram em um canto escuro. “Eu faço a De la Sierra”, anuncia, apresentando-se como Miguel.

Miguel é um plantador de abobrinhas. Mesmo com suas obrigações na fazenda, ele ainda produz cerca de 20 mil litros da tequila por ano. Ele vende o blanco para Jesus e fica com suas extra añejo para si, sua família e amigos. O custo de produção é de US$ 1 por litro e sim, ele admite, é ilegal. “Quer ver a destilaria?”, pergunta. Putz grila, é claro!

Subimos na caçamba de uma picape Toyota, deixamos a cidade por uma rua lateral e entramos nas fazendas. Não faço idéia de onde estávamos. Depois de meia hora, Miguel sai do carro para abrir uma passagem na cerca de arame farpado. Entramos num vale repleto de carvalhos brancos. E lá estava, ao lado de um córrego: a fábrica de “mé” de Miguel.

“É assim que se faz tequila da boa”, orgulha-se, apontado para um telhado improvisado sobre tonéis de insumo de agave e um barracão de tijolo soltando vapor. Um senhor de idade com uma jaqueta camuflada observa em silêncio enquanto inspecionamos a fornalha movida a propano, que tem um cano de exaustão improvisado. Experimentamos a água que sai de uma mangueira enfiada numa nascente próxima. Encaramos, impressionados, os agaves enormes, que crescem livres. Abrimos a pequena porta de ferro do forno cheio de fuligem e entramos.

Quando saímos, Miguel nos ofereceu uma amostra-grátis: duas garrafas pet, de três litros cada.

Quando a experimentamos no hotel naquela noite, a De la Sierra mostrou o delicado buquê de pêlo de cachorro molhado, o ativo sabor de salsichas cruas e a sutil queimação de pimenta malagueta em conserva no cloro. Tim dá a garrafa dele ao carinha da locadora de carros. Eu levo um pouco para casa, onde ela permanecerá intocada, devorando o plástico ao poucos.

Mas, naquele momento – perdidos em um lindo cânion, experimentando o valioso contrabando de um homem –, Tim e eu estamos convencidos de que a bebida mexicana ilegal de Miguel é a melhor tequila do mundo, uma loucura de tão boa.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2008)