A rainha da dor


A MELHOR: Rebecca Rusch, que já foi a melhor corredora de aventura do mundo e hoje é bicampeã de mountain bike endurance

Por Eleonora Audrá
Fotos por Cadu Maia

ELA JÁ FOI A MELHOR corredora de aventura do mundo. Entre 1999 e 2005, participou das principais provas da modalidade, conquistando, por exemplo, o Raid Gauloises do Quirguistão, em 2003, e sendo eleita uma das atletas femininas top 20 pela Outside norte-americana no mesmo ano. Depois da temporada de 2005, com o futuro incerto por causa da perda de um dos patrocinadores, a norte-americana Rebecca Rusch resolveu se arriscar nas provas de mountain bike e, em apenas três anos, conquistou duas vezes o título no mundial de 24 horas na categoria solo. Mesmo assim, ela ainda se considera uma aprendiz. “Eu nunca planejei ser atleta profissional, mas sou sortuda pelo que vivi. Tudo foi acontecendo, e atingi o sucesso em diferentes áreas”, conta a Queen of Pain (ou Rainha da Dor), apelido que ganhou por sua capacidade de suportar sofrimento físico por longas horas.

Graduada em marketing e negócios pela Universidade de Illinois (EUA), Rebecca hoje mora nas montanhas de Ketchum, no estado de Idaho. “Fui pra lá para treinar com um antigo companheiro de equipe. Gostei da atmosfera do lugar e das pessoas. Você encontra mulheres de 80 anos ainda competindo. Todos têm uma vida outdoor ativa. Eu nunca havia vivido em um lugar como esse.” Rebecca veio ao Brasil para disputar a prova mineira IronBiker, na qual terminou em quarto lugar na elite feminina. No papo a seguir, ela fala de suas estratégias, dos treinos e de algumas de suas conquistas na corrida de aventura e no mountain bike de endurance.

Go Outside: Por que você trocou as corridas de aventura pelo mountain bike?

Rebecca Rusch: Foi de repente. No final de 2005, perdemos nosso principal patrocinador, e fiquei pensando no que iria fazer. Uma amiga então me chamou para disputar o 24 horas de mountain bike, e eu topei. Fiz a prova com amigas de treinos e acabamos vencendo. As minhas voltas foram as mais rápidas, o que me surpreendeu, pois mountain bike era o meu ponto fraco nas corridas de aventura. A segunda prova foi o nacional [dos EUA] de 24 horas, a qual eu venci na categoria solo, ganhando dos homens, inclusive. Decidi então me inscrever em outra prova, e em mais outra. Eu sabia que, quanto mais longa a competição, melhores eram minhas chances por causa da minha experiência em provas de resistência. Fui seguindo a maré e hoje estou feliz, terminando meu terceiro ano no mountain bike.

Você está no Brasil na mesma época do mundial de corrida de aventura, e muitos dos seus amigos estarão na prova. Você não pensa em voltar? Este será o primeiro mundial no qual não vou competir, e sinto-me um pouco triste. Mas a Specialized, que me patrocina, me convidou para vir disputar o IronBiker e me pareceu uma boa oportunidade de ver o Brasil. Eu adoraria ficar para o mundial, mas tenho outro compromisso. Vou para casa e logo para o Equador a fim de participar de outra prova de mountain bike.

De que aspecto das corridas de aventura você mais sente falta?

Da camaradagem. Alguns de meus melhores amigos são meus antigos companheiros de equipe. Tenho saudade, mas sei que eles estarão sempre por perto. Também sinto falta das viagens, por isso tento viajar para as provas de mountain bike. Fui para a Costa Rica, para a África do Sul, e agora estou no Brasil. O mountain bike é um novo começo.

Qual é a sua melhor lembrança das corridas de aventura? Vencer o Raid Gauloises, no Quirguistão, foi um ponto alto para mim. Era a maior corrida de aventura do mundo na época, disputada num lugar maravilhoso, e a minha equipe foi fantástica. É raro ter provas em que tudo acontece de forma perfeita, como nessa. Foi o ápice de anos de dedicação. Outra lembrança boa é do Eco Challenge na Patagônia, em 1999, quando corri com uma equipe predominantemente de mulheres: Robyn Benincasa, Cathy Sassin e Ian Adamson. Pela primeira vez um time feminino conquistou uma boa colocação, um quarto lugar. Foi ali que percebi que poderia ser boa nesse esporte.

E qual foi o pior momento?

O Eco Challenge nas ilhas Fiji, em 2002, quando tivemos de abandonar a prova depois de seis dias e com 90% do percurso completo porque dois integrantes tiveram problemas de saúde. Foi uma frustração. Faltavam 12 horas, e a gente não podia prosseguir. É difícil bater nas costas do companheiro, dizer “está tudo bem” e ter de pegar um barco até a chegada. Mas, no fim, a amizade é o que conta. O mais importante são as experiências que vivemos.


PINGUE-PONGUE: Eleonora Audrá e Rebecca Rusch durante o bate-papo que rolou em São Paulo

Quais são as diferenças entre um esporte em equipe e um individual?

Eu gosto de ambos. No entanto, nas provas individuais é você e mais ninguém. Se você estiver em um dia ruim, se cair ou estragar tudo, se não planejar direito, é tudo culpa sua. Eu tenho uma equipe: mecânico, equipe de apoio, muita gente para compartilhar o espírito de aventura e comemorar na linha de chegada. Mas durante a prova cada pedalada depende apenas de mim. Em corridas de aventura, o estado psicológico é fator determinante.

E no mountain bike?

O mountain bike é ainda mais difícil psicologicamente. Você só tem as vozes na sua cabeça. Não há ninguém para motivá-lo, carregar o seu peso, abraçá-lo e dizer que tudo vai dar certo. Acho difícil me manter focada em provas individuais, especialmente nas de 24 horas. É muito tempo apenas pedalando. Você tem algum segredo para se manter concentrada por tanto tempo? Muitas vezes fico 6 horas sem sair da bike — só pego a comida e continuo pedalando. Estou sempre de olho no relógio, fazendo contas. Vejo meus tempos em cada volta, observo onde perco velocidade e tento me concentrar. Estou sempre em busca da volta perfeita. Além disso, como tem bastante gente no percurso, tento pedalar atrás de outras pessoas. Se vejo alguém na minha frente, tento encostar. As primeiras 2 horas são uma tortura. Mas depois a pedalada se transforma num movimento só e o corpo continua na ativa. Você não olha mais para o relógio e pedala como um zumbi. No final, é impressionante como 24 horas passam depressa.

Qual é o seu ponto forte no mountain bike?

Meus pontos fortes são a escalada — definitivamente sou melhor nas subidas do que nas descidas — e minha cabeça, justamente por causa das corridas de aventura. A cabeça toma conta das pernas e se torna um fator determinante. O bom é saber que no fim você vai dormir e tomar um banho. Qual é a sua principal virtude? Conseguir sempre continuar em frente. Mesmo quando estou devagar, sei que posso continuar. Conheço meu corpo, sei o que devo comer e consigo identificar meus limites. E isso não é só importante nas provas, mas também no meu dia-a-dia.

O que você faz quando não está competindo ou treinando?

Trabalho por meio período como bombeiro. Também dou aulas de esqui cross-country a mulheres e administro um pequeno negócio. As pessoas dizem que sou sortuda por competir de mountain bike e ser paga para isso, mas elas não sabem como dá trabalho. Gasto de 10 a 15 horas por semana com patrocinadores, escrevendo reportagens e artigos para o meu blog, visitando feiras e eventos de negócios.

O que você aprendeu nas corridas de aventura que a ajuda no trabalho como bombeiro?

Ter força, carregar peso, engatinhar em lugares pequenos. Ter sido guia de rafting também me ajuda nos resgates em águas brancas. Tenho um ótimo emprego, que me exige fisicamente e que sempre está mudando. É parecido com as corridas de aventura: preciso trabalhar em equipe em situações de perigo, tomar decisões em momentos de estresse e compartilhar tarefas com as minhas companheiras.

Como são seus treinos? Meus treinos estão agora totalmente voltados para o mountain bike. Não tenho remado ou corrido muito e não treino resistência porque já tenho endurance. Faço pedais de uma perna só: tiros curtos, a fim de trabalhar a minha velocidade. Ainda sou nova no ciclismo e tenho muito a aprender, e por isso disponho de um treinador específico. Eu diria que treino, em média, 20 horas por semana. No inverno, faço esqui cross-country, vou para a academia de escalada, mas não pedalo. Acho saudável quebrar a rotina.

E a sua nutrição?

Eu tento me alimentar de forma saudável e não tenho nenhuma neurose. Tomo vitaminas, procuro beber o máximo de água possível. Meu fraco é o queijo. Ainda bem que não moro na França!

Você tenta “destruir” as adversárias no começo ou faz a própria no seu próprio ritmo?

Se eu lhe contar, todos saberão do meu segredo [risos].Na verdade, tento fazer minha própria prova. Se você for rápido e tentar acompanhar uma adversária, pode colocar tudo a perder e quebrar. Tento ganhar uns minutos aqui, outros ali, que no fim fazem diferença. E, quando alguém está na minha frente e finalmente consigo passar, tento ultrapassá-la agressivamente e nunca mais vê-la de novo. É um jogo mental. Tento me lembrar de que a prova só termina quando alguém cruzar a linha de chegada. Já teve competição na qual eu estava 10 minutos atrás e no final terminei 1 hora na frente.

O que você faz depois de cada competição?

Depois de uma corrida de 24 horas, preciso de pelo menos uma semana para voltar a pedalar e recomeço devagar. Faço massagem, coloco os pés para cima e relaxo.

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Meu conselho é faça o que você ama que o resto se encaixa. E esteja rodeada de amigos que acreditam em você. No fim o que importa é estar ao ar livre, fazendo aquilo de que gosta.

Quais são seus planos para o futuro?

Não sou do tipo que faz planos. Quero continuar pedalando, competindo no mountain bike e defendendo meu título no 24 horas. Além disso, quero me divertir fazendo aquilo de que gosto, viajando para conhecer o mundo. Família, eu não sei. Tenho de pensar logo nesse assunto, não? Acho que começarei com um cachorro. Eu realmente quero um. Esse será o meu primeiro passo.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de novembro de 2008)







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