Correr é fácil


INCANSÁVEL: Dean Karnazes 10 minutos após ter corrido 24 horas sem parar na esteira do Mercovida, em Porto Alegre (RS)

Por Andrea Estevam
Fotos por Eduardo Liotti

DEAN KARNAZES PASSOU AS ÚLTIMAS 16 HORAS enfurnado num avião, voando de sua cidade-base, San Francisco (na Califórnia, EUA) até Porto Alegre. Não conseguiu pegar no sono; nunca consegue quando voa. E olha que ele passa mais tempo viajando – entre competições e sessões de autógrafos e feiras e eventos dos patrocinadores – do que em casa. Também não conseguiu ficar muito tempo sentado na poltrona: suas pernas, cansadas por terem corrido durante 48 horas ininterruptas apenas dois dias antes, pediam sangue. Então Dean se levantava e andava pelo corredor do vôo adormecido. As 48 horas haviam sido uma tentativa frustrada de quebra de recorde mundial. Segundo ele, o recorde não rolou porque as condições não eram ideais. “Corri o tempo todo ao redor da Times Square, em Nova York.

Tinha muita gente, virou mais uma exibição. Pra quebrar o recorde, eu teria de estar numa sala com alguns poucos amigos, sem dar entrevistas ou lidar com o público, e focar na corrida”, diz Dean. De Nova York ele voou a Portugal para uma sessão de autógrafos de seu segundo livro, 50/50. De Portugal, embarcou para a capital gaúcha, onde daria uma palestra e tentaria bater o recorde mundial das 24 horas em esteira. Assim que ele finalizasse a corrida, voltaria a San Francisco para ver os filhos e a esposa, e na mesma semana decolaria para compromissos na Austrália e Nova Zelândia. Mais uma vez, suas pernas estariam cansadas e ele não conseguiria dormir no vôo. No entanto, mais uma vez ele demonstraria um sorriso e um bom humor quase irritante. “Amo minha vida.

Meu sonho é fazer com que mais e mais gente corra.

Quero promover a corrida como forma de saúde e superação de limites e não vejo outra maneira de fazer isso sem ser viajando, conhecendo pessoas, me expondo”, explica. Pouco mais de duas horas depois de desembarcar no Brasil, Dean encontrou-se comigo e com Paulo Ayres, o organizador do Mercovida — feira de esporte e saúde da qual Dean era convidado de honra e onde ia palestrar — para almoçar. A primeira impressão que tive do ultramaratonista mais famoso do mundo é que ele encolheu. Nas fotos e nos vídeos ele parece ser bem maior do que é ao vivo, com seu pouco mais de 1,70 metro de altura e a estrutura física de um guepardo: magro e forte, com músculos insistindo em se mostrar mesmo quando relaxados. Dentro do short largo de corrida, ele parece ser ainda menor. O sol descoloriu seus cabelos, e Dean não aparenta os 44 anos que tem. E em nenhum momento ele pára de sorrir.

O PRATO DE DEAN KARNAZES na véspera de ele correr 24 horas seguidas numa esteira tinha metade do que eu ia comer para só vê-lo suar: dois filés de peixe grelhado, uma porção de legumes cozidos, salada. Nada de carboidratos. “Não como açúcar nem nenhuma massa refinada. Elas me deixam letárgico”, explicou. No supermercado, aonde fomos comprar os suprimentos para a maratona de esteira, ele escolheu banana, água-de-coco, isotônicos, maçã, pêssego, barras de carboidrato e de proteína. De volta ao hotel (detalhe: ainda sem dormir), Dean só teve tempo de pegar seu computador e ir para o local da feira, onde atendeu jornalistas por 2 horas e depois falou por outra hora para o público da palestra, contando sua experiência como ultramaratonista num relato cheio de piadinhas. “Por que eu corro? Por causa da comida grátis nos postos de apoio.” “Como eu corro tanto? Colocando um pé na frente do outro e movendo os braços assim [imita o movimento de corrida].

Para uma corrida de 100 quilômetros, o que muda é que ficarei fazendo isso por mais tempo.” Entre as tiradas de sarro, Dean deixa escapar idéias mais sérias. “Nós, humanos, nem sempre agimos racionalmente. Mergulhamos com tubarões, pulamos de bunge jump. Somos atraídos por essas coisas, mesmo indo contra nosso instinto de preservação. Não entendemos o que nos leva a isso — mas não entender é parte do tempero da vida.” A maioria das pessoas que estavam ali já sabia da trajetória de “Karno”, como Dean também é conhecido. A história de como saiu correndo (destreinado e bêbado de tequila) por 30 milhas (48 quilômetros) na noite em que completou 30 anos já é quase folclórica. Naquela madrugada, ele descobriu seu talento para quilometragens superlativas e a partir daí foi aumentando astronomicamente as distâncias que se propunha a correr.

De lá pra cá, chegou a percorrer 800 quilômetros sem parar; completou mais de um punhado de corridas de 24 horas; escreveu o best-seller O Ultramaratonista (lançado no Brasil em 2007); venceu a Badwater, considerada uma das ultras mais difíceis do mundo; e, mais recentemente, correu 50 maratonas em 50 dias nos 50 estados norte-americanos (o Desafio 50/50), terminando a última delas em 3h30min, ao lado de Lance Armstrong — experiência que virou um livro e um filme. O que muita gente não sabe é que para fazer tudo isso ele tem cada vez menos tempo para correr e pedalar por prazer, nas trilhas ao redor de sua casa, ou para praticar windsurf e relembrar os tempos em que foi atleta profissional dessa modalidade. “É muito estranho me ver na TV, no cinema. E é inacreditável quantos fãs eu tenho, inclusive no Brasil. Passo de 4 a 5 horas por dia tentando responder a todos os e-mails que recebo. As pessoas me escrevem dividindo histórias incríveis, então me sinto na obrigação de dar um retorno a elas.” E é nas viagens insones de avião que ele bota esse trabalho em dia.


PÉ ANTE PÉ: Dean e a esteira sem fim, cerca de 10 horas após o começo do desafio

DEAN NÃO TEM CARRO. Ele corre ou usa a bike como meio de transporte. “Fizeram um estudo nos Estados Unidos e descobriram que 40% das viagens de carro são de menos de 4 quilômetros. Não é muito longe; daria facilmente para essas pessoas correrem essa distância. E assim tiraríamos quase metade dos carros da rua”, defende. A doutrina do “você também pode” de Dean começa em sua casa: os dois filhos dele correm. A filha enfrentou sua primeira prova de 10 quilômetros quando completou 10 anos, em 2007.

Dean correu ao lado dela. “Foi a prova mais legal que eu já fiz na vida”, ele conta. Mas e a responsabilidade de incentivar gregos e troianos, indiscriminadamente, a desafiarem seus próprios limites, alardeando que todos podem ser super (se não ultra) corredores? Pergunto a ele se por acaso os médicos esportivos ainda não diagnosticaram uma certa “síndrome Karnazes”: filas de neocorredores lesionados nas portas dos consultórios ortopédicos, procurando ajuda com os livros de Dean embaixo do braço. “Não me preocupo porque o corpo sabe se proteger. Se a pessoa tenta ir longe demais, o corpo pára. Não há atalhos: é preciso se comprometer e se sacrificar, senão não vai conseguir. E isso não acontece só na corrida, mas em todas as áreas da vida”, defende.

O limite físico de Dean ele próprio já descobriu: “Foi quando eu corri 560 quilômetros. Na terceira noite sem dormir, estava alucinando de sono e a dor era insuportável. Minhas pernas, minha cabeça, tudo doía – até a ponta do meu nariz. Mas, inexplicavelmente, fiz os últimos 10 quilômetros em 38 minutos. Não sentia mais dor alguma, o que prova que a mente controla tudo. Hoje só paro uma prova se perceber que vou fazer mal ao meu corpo. Bolhas e cãimbras? Eu passo correndo por cima delas”, ri.

Um corpo quase incansável e uma mente capaz de fazer esse corpo seguir adiante – com os dois elementos, Dean é um espécime humano de endurance invejável. Essa habilidade não aparece só nas ultramaratonas: ele já encarou triathlons e chegou em terceiro lugar no último X Terra que disputou. “Acho que posso chegar a ser ainda melhor pedalando do que correndo. Sou muito musculoso para um corredor. Talvez eu dê uma chance para as provas de bike de longa distância, mas por enquanto meu foco é a corrida. A bike exige muito tempo de dedicação, são 2 horas só para aquecer. Uma corrida de 2 horas já é um ótimo treino.” Além do volume de treino, Dean se preocupa com o perigo da velocidade que as duas rodas proporcionam. “Fiz uma prova de 24 horas de bike e gostei. Mas é bem mais perigoso. Se você está correndo há 20 horas e cai de sono, só rala os joelhos e as mãos. Se dorme em cima da bike, pode se quebrar inteiro”, compara.

CHEGO DESCANSADA AO LOCAL DA FEIRA, onde Dean já corre há 2 horas e meia. Faltam só 21 e meia para ele terminar. A esteira se move a pouco mais de 8 km/h, em ritmo de trote. No painel há uma garrafa de Gatorade, alguns sachês de carboidrato em gel, uma toalha. Ao seu lado, no chão, estão as frutas, a água com gás e a água-de-coco, e pares de tênis enfileirados. “É para eu trocar conforme meus pés forem inchando”, ele me explica. Ao redor, outras seis esteiras são palco de uma disputa paralela em que equipes se revezam durante 24 horas, fazendo companhia a Dean.

A esperança de quebrar o recorde já está esmorecida. “Estou cansado e ainda meio desidratado do vôo. O ambiente aqui está quente, e estou dando várias entrevistas enquanto corro. Para completar, meu estômago está meio esquisito”, diz. Mais tarde, seu estômago “viraria” de vez e ele precisaria de remédios para controlar a situação. Quilometragem final: pouco mais de 180 quilômetros (o recorde anterior era de 247,68). A perspectiva de não conseguir realizar algo que se propôs não abala Dean.

Enquanto muitos de nós preferimos nem tentar quando achamos que podemos falhar, Karno gosta de se expor a esse risco. “Se errar, aprendo. Se você não se forçar, não sabe quanto pode ir. Eu comemoro o fracasso”, afirma. Nessa busca pelo limite, Dean admite que neste ano deu uma exagerada. Ele se meteu a correr todas as etapas do circuito Four Deserts, com ultramaratonas disputadas em quatro desertos pelo mundo: Atacama (Chile), Gobi (China), Sahara (África) e Antártica. Dean venceu no Atacama, mas ficou com o quarto lugar em Gobi. Entre as duas provas, disputou mais uma vez a Badwater, com outro quarto lugar. “Nunca alguém fez as quatro etapas num mesmo ano. Estou aprendendo do jeito mais difícil, que é muita coisa. Agora só penso em terminar as quatro”, diz.

“No ano que vem farei menos provas para ir melhor nelas. Quero fazer a Jungle Marathon, em outubro, no Brasil. Agora já sei o caminho para o seu país”, brinca. Mas até quando ele vai continuar nessa rotina insana, que no fim das contas o afasta do prazer puro de correr? “Estou ficando mais velho e mais lento, mas minha endurance está cada vez melhor. Quero continuar explorando meus limites para ver até onde chego. Se acordar um dia e não gostar mais de correr, eu paro. Senão, minha linha de chegada é um caixão de madeira.”


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de novembro de 2008)