A canoa não virou


EXPEDIÇÃO: Toda a bagagem dos seis dias de expedição precisou ser acomodada no estreito casco da OC1

Por Fernanda Franco
Fotos por Ale Socci

A IDÉIA DA TRAVESSIA nasceu do objetivo de promover a canoa havaiana e divulgar a assessoria esportiva da qual João Castro e Felipe Fuentes fazem parte, a Aksa. Mas o desafio pessoal de vencer a distância de 300 quilômetros remando foi o que tornou a idéia estimulante o suficiente para a dupla ter a coragem de se lançar ao mar no último dia 30 de novembro. João Castro, de 42 anos, biólogo e esportista com história no surf, na canoagem oceânica, no mergulho e, há quatro anos, nas corridas de aventura conta que eles optaram por essa direção e distância – de Santos a Paraty – por causa dos ventos e das correntes desfavoráveis. Já Felipe Fuentes – 25 anos, profissional de educação física e corredor de aventura também há quatro – só tinha remado canoa havaiana uma vez na vida. “Aceitei o convite do João por que gosto de provas longas. Sou capaz de vencer dificuldades e levo isso para outros setores da vida”. Foi justamente essa paixão por longas distâncias, adquirida em provas expedicionárias, que deu à dupla a química necessária para os seis dias em alto mar, com direito a uma forte ressaca no meio do caminho.

A preparação começou três meses antes e focou principalmente os treinamentos cardiorrespiratórios e a preparação dos equipamentos e objetos que eles poderiam levar no minúsculo barco. Sem compartimento interno de carga, tudo o que eles carregariam deveria ser preso na parte externa do frágil casco da embarcação.

Como o objetivo era chegar a Paraty no dia da largada da última etapa da corrida Adventure Camp, em 7 de dezembro, inicialmente a viagem começaria no dia 1º do mesmo mês, uma segunda-feira. Mas com a previsão de uma ressaca que assolaria aquela região litorânea, a dupla adiantou a partida em um dia. Assim, no domingo, João e Felipe partiram da Ponta da Praia, em Santos, com o primeiro objetivo de chegar à praia de Camburi (São Sebastião, SP) depois de 90 quilômetros.

Só que a previsão não se confirmou, e a força de uma corrente contra e a presença de um vento leste, também contrário, atrapalharam os planos da dupla. Para piorar, a ama (braço lateral que dá estabilidade) da canoa de Felipe quebrou durante um caldo na entrada na praia de São Pedro, ainda no Guarujá (SP), onde eles precisaram fazer uma rápida parada. Resultado: eles terminaram o primeiro dia em Bertioga (SP), a 50 quilômetros do planejado, com água dentro de um dos barcos por causa da avaria.

NO DIA SEGUINTE, depois de escoarem a água e remendarem a canoa com SilverTape, eles rumaram sentido Camburi. Ao pararem na praia de Boracéia à espera da maré favorável, a dupla encontrou por acaso Everdan Riesco, experiente remador de canoas havaianas, que sentenciou: “Esta travessia é inédita e muito importante para o esporte no Brasil. Eu já quis fazer, mas nunca tomei a atitude. Se vocês conseguirem remar 30 quilômetros por dia, sintam-se satisfeitos.” As palavras caíram como espinafre no muque dos marinheiros, e não haveria alternativa se não chegar a Paraty.

No final do segundo dia, depois de 52 quilômetros, o mar estava todo arrepiado na chegada a Camburizinho (praia anexa a Camburi) – sinal de que a ressaca prevista realmente estava chegando. Para acompanhar a previsão do tempo, João havia levado um celular com acesso à internet, além de se abastecer de informações nos locais onde aportavam para dormir. O celular permitiu contato com remadores experientes, como o paulista Christian Fuchs, colaborador da Go Outside, que já percorreu o trecho na direção inversa, de caiaque oceânico. Além do caiaque oceânico ser muito mais estável que a canoa havaiana, tanto os ventos quanto as correntes são favoráveis no sentido Paraty – Santos. Outra ferramenta importante de segurança foi o Spot, um rastreador via satélite que a dupla levou consigo e que transmitia em tempo real a posição deles para um site na internet – se eles começassem a fugir da rota, receberiam uma mensagem via telefone.

O terceiro dia seria a travessia do canal de São Sebastião, que separa o continente da Ilhabela, mas antes disso uma corrente muito forte brecou a dupla por quase 2 horas em frente à praia de Maresias (São Sebastião). “Remamos com muita força para não sermos arrastados para trás, e mesmo nessa situação crítica não entramos em desespero”, conta João. Para compensar, o temido canal seria vencido facilmente depois com a ajuda da maré vazante, apesar da tempestade anunciada pelas “nuvens claras e escuras que flutuavam umas na direção das outras”, como descreve João. E assim, ao chegar a Martins de Sá, em Caraguatatuba (SP), a exausta dupla já havia percorrido praticamente metade de viagem (144 quilômetros) e compensado o atraso do primeiro dia.

No dia seguinte, depois de três dias de movimentos repetitivos remando e driblando a instabilidade do estreito barco em mares agitados, dores até então desconhecidas incomodavam bastante a dupla. “Nos primeiros 20 minutos de remada no quarto dia, eu sentia o glúteo e a perna esquerdas adormecidas, e precisava me ajeitar no barco toda vez que eu mudava o lado da remada”, conta Felipe, referindo-se ao esforço que o remador precisa fazer para manter maior parte do peso do lado do iako (hastes de suportes das amas), evitando que a canoa vire. “Descobri que é inviável remar sem um banco sob medida”, explica João, lembrando o desconforto de manter o peso do corpo apoiado nas nádegas por cerca de 10 horas por dia.

Partindo às 8h15 de Martins de Sá com destino a praia de Itaguá, em Ubatuba (SP), já sobre um mar mais agitado, eles abortaram a missão antes de entrarem na baía que leva a Itaguá. Por indicação de pescadores, para ganharem tempo, eles foram direto para a Almada, completando 205 quilômetros remados.

Como eles supunham que o dia seguinte seria o pico da ressaca, depois de dormir a quarta noite amparados por uma família pescadores, os dois resolveram passar o dia descansando o corpo e observando a agitação do mar da Almada junto com seu Gile e seus filhos. No fim de tarde, seguiram para a praia de Picinguaba (Ubatuba), adiantando 8 quilômetros do próximo trecho e dormindo por lá.


SINTONIA: João e Felipe com suas canoas

QUANDO ACORDARAM, João e Felipe logo se deram conta que Netuno havia decidido mostrar seu mau humor justo naquele dia, quando eles teriam que cruzar a Ponta da Juatinga – uma península já em mares fluminenses apelidada de Cabo Horn Brasileiro, por causa da forte e constante batedeira. Mal eles saíram de Picinguaba, já perceberam que teriam muito trabalho. As bóias registravam ondas de 5 metros, que estouravam com força no costão do lado esquerdo, e na volta provocavam uma ondulação lateral que praticamente impedia a remada.

Ao partirem em direção ao alto mar para escaparem das ondas laterais, eles encontraram ondas de proa tão fortes, que foi preciso se afastar da costa cerca de 1 quilômetro. “Nos distanciamos mais do que eu previa. Não enxergávamos um barco no mar. Éramos nós dois, as canoas e o marzão”, conta João. O fato de estarem descansados foi fundamental. Remando longe da costa, João percebeu que não seria possível visualizar a praia de Laranjeiras, e muito menos atracar as canoas na praia em lugar seguro. A única alternativa era seguir adiante. “Acelerei e o Felipe acompanhou. Decidi seguir em frente, mas poderia não ter dado certo”, confessa. Por incrível que pareça, na passagem pela Ponta da Juatinga o mar estava mais calmo, e o pior tinha ficado para trás. A partir daí, eles já remavam em águas abrigadas e comemoravam a calmaria.

Depois de cruzarem o cabo da Juatinga, eles pararam na vila do Pouso da Cajaíba para pedir informações e comprar comida e bebida – afinal, a remada do dia havia se mostrado além das provisões – antes de chegarem à vila de Paraty-Mirim (RJ), onde descansariam para completar o restante da travessia no dia seguinte. Mas como não havia local para pernoitar, eles acabaram seguindo até Paraty.

Aportaram no destino final ainda na noite de sexta-feira, às 23h30, sem platéia, e com um total de 293 quilômetros acumulados de remo. Cansados, doloridos e com fome, a dupla chegou a perder a sintonia um pouco antes do fim. “Tivemos uma discussão rápida, mas voltamos a conversar”, conta Felipe. “Remamos neste dia mais quietos e calados, mas era sinal da tensão que nos rondava. As marolas estavam realmente grandes e várias vezes eu perdia o Felipe de vista”, conta João.

Para Felipe, um temor o rondou em todos os dias. “Meu único medo era de tubarão. Vimos algumas barbatanas no primeiro dia, e eu não sabia do que eram. Já tinha virado cinco vezes até então, mas aos poucos aprendi que não é preciso se desesperar”, confessa. No caso de João, as angústias foram emocionais. Filho de um remador e nadador de competição que foi morto num acidente de lancha construída por ele mesmo, João cresceu aprendendo as dicas de mar do seu caseiro, o senhor Egílio, ou Gilico. “Meu pai pediu que ele me ensinasse tudo do mar. Nessa travessia, eu tinha uma cobrança individual de não falhar, de não tomar decisões erradas. Em todas as saídas a cada manhã, minhas preces eram para eles dois. Pedia proteção e sabedoria nos momentos de aperto”, conta João, emocionado.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de janeiro de 2009)