Texto e fotos por Giovanna Zilli
DO ALTO, O QUE PARECIAM NUVENS entre picos de montanhas eram, na verdade, geleiras. O avião se aproximava do arquipélago norueguês de Svalbard, 78º de latitude Ártico adentro, e a vista ficava cada vez mais impressionante. Logo estaríamos aterrissando na vila de Longyearbyen e prontos para subir a montanha Sarkofagen. O guia Jon Sandmo nos esperava no hotel, revólver na cintura, como é aconselhável em terras dominadas por ursos polares. Ainda que os animais evitem as áreas próximas ao povoado, várias pessoas sofreram ataques ao se aventurarem mais além, então é melhor não arriscar. Felizmente, a caça ou qualquer outra forma de agressão contra os ursos polares é proibida desde 1973, sendo que a arma só é usada como defesa pessoal e último recurso.
Iniciamos a caminhada rumo a Sarkofagen no meio da tarde, sob o sol de final de agosto, que continuaria brilhando por trás das montanhas até o dia seguinte. A noite interminável viria em alguns meses, com o inverno de -20°C e as cores brilhantes da aurora boreal. Jon nos assegurou que o espetáculo compensa as baixas temperaturas. Já para a nossa caminhada de 5 horas, os 3°C do verão eram ideal.
Sarkofagen é a montanha mais próxima do povoado de Longyearbyen e tem apenas 600 metros de altitude. Começamos a subida pelo lado menos inclinado, próximo à geleira de Lars. A grande quantidade de pedras soltas era a única e a maior dificuldade até então. Muitas delas continham fósseis vegetais de até 10 centímetros, com detalhes incríveis. Fiquei um tanto surpresa quando Jon disse que poderíamos levar um fóssil como lembrança. Preferi tirar uma foto.
O início do povoamento de Svalbard aconteceu há cerca de 100 anos, quando o carvão começou a ser explorado. Hoje isso ainda acontece, mas em outros pontos da ilha. Na metade do caminho rumo ao topo, Jon nos apontou as minas de carvão abandonadas nas encostas das montanhas vizinhas. Na companhia de um guia, algumas podem ser visitadas. Outras, atulhadas de gelo, chamam a atenção dos visitantes recém-chegados.
Longyearbyen ia ficando menor cada vez que parávamos para recuperar o fôlego. Não havia outros caminhantes nem ventava, e o silêncio era quebrado apenas pelo barulho das pedras sob nossos pés. Quando finalmente chegamos ao topo, o horizonte de céu azul e picos nevados se abriu ao nosso redor. A sensação de vácuo e liberdade ficou ainda maior ao vermos, lá embaixo, o povoado pequeninho no meio do vale.
Depois de um breve descanso, que merecia ser de horas só pela beleza da paisagem, seguimos em direção à geleira de Longyear. No caminho, Jon nos mostrou pegadas da raposa do ártico e algumas aves, como o galo silvestre, mas nem sinal do urso polar. Como era verão e não havia muita neve, ficou fácil identificar a geleira, depois de meia hora de descida. Ainda mais fascinante do que andar sobre ela, era saber que o gelo das camadas mais profundas havia se formado há milhares de anos. Como bom conhecedor do terreno, Jon seguia na frente evitando as áreas com rachaduras e gelo fino. Ele nos explicou que as temperaturas do verão criam pequenos riachos e cavernas nas camadas externas da geleira, portanto deveríamos ter cuidado, pois não seria divertido cair num buraco de gelo.
No final da geleira, voltamos a caminhar sobre os pedregulhos e encontramos ainda mais fósseis. Porém, na base da montanha, o solo era encharcado, onde cresciam muito musgo e as delicadas flores do algodão-do-ártico. Algumas renas pastavam tão freneticamente que nem sequer perceberam a nossa presença. Cheguei tão perto de uma delas que quase pude tocá-la. Com a escassez das pastagens durante o inverno, não surpreende que elas estivessem tão ocupadas estocando energia.
Caminhando de volta ao povoado, desviamos do trajeto que nos levaria ao hotel para ver o cemitério. Faz 70 anos que ninguém é enterrado lá, e em nenhum outro lugar da ilha, por uma única razão: o solo congelado não permite que os corpos se decomponham. Isso tem atraído a curiosidade mórbida de muita gente, além de algumas pesquisas científicas interessantes. Quando alguém morre na pequena Longyearbyen, o corpo é normalmente enterrado no continente. Entretanto, parece que Jon e os outros 2 mil habitantes da vila com maior latitude norte do planeta não se preocupam tanto com isso. Viver os desafios e curtir os privilégios que a natureza lhes oferece ao longo das estações é muito mais interessante.
FLORA GELADA: Vegetação rasteira típica do Ártico
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>> Há vôos quase diários até Longyearbyen da capital Oslo ou de Tromso pela SAS Scandinavian Airlines (sas.no). De Tromso a viagem dura 1h40 e custa cerca de R$ 720 (ida e volta, no verão). De Oslo são 3 horas e custa R$ 985 também na alta temporada. O aeroporto fica a 5 quilômetros do povoado.
>> Além de 50 quilômetros de ruas, não há estradas ligando Longyearbyen aos povoados menores da ilha. Para se aventurar além, a opção é barco, trenó ou moto de neve, que podem ser alugados no local.
>> Há opções de hospedagens para todos os gostos, de campings a hotéis mais luxuosos. Reserve com antecedência, especialmente nos meses de verão, por meio do site oficial de turismo (svalbard.net). O hotel Radisson Polar tem diárias de R$ 597 para o casal, com café da manhã. Já na pousada Mary-Ann’s Polarrigg, que no passado era moradia dos trabalhadores das minas, há quartos de casal por R$ 280.
>> Assim como o resto da Noruega, a culinária típica de Svalbard é rica em carnes e frutos do mar. A rena é a principal fonte de carne vermelha. Foca e baleia, cuja caça ainda é legalizada, são as opções exóticas e antiecológicas. A Brasseri Nansen tem vista maravilhosa e oferece os principais pratos da culinária local. Também no centro de Longyearbyen, o bar e restaurante Kroa é opção simples e barata. O Svalbard tem uma seleção de bebidas que inclui até mesmo a nossa caipirinha, e o Arctic Pub Invest oferece a terceira maior lista de licores da Europa (svalbard.net).
>> A companhia de um guia autorizado é fundamental, se você pensa em explorar Svalbard além Longyearbyen. O site de turismo traz informação sobre as operadoras, preços e roteiros de acordo com a estação. No verão, o ideal é combinar longas caminhadas com passeios de barco ou caiaque.
>> Outra opção de percurso é Dickson Land, que fica ao norte de Longyearbyen, do outro lado do fiorde. Em uma semana, você atravessa o fiorde de barco, caminha ao longo da costa, por meio de montanhas e geleiras, e visita a vila abandonada de Pyramiden. Huskies acompanham a expedição, para carregar o equipamento e manter guarda contra os ursos polares.
>> Outra expedição de 10 dias sai de Longyearbyen e chega ao povoado de Barentsburg, uma comunidade de 400 mineiros russos. Só que são 17 quilômetros de caminhada por dia.
>> Nos meses de inverno e escuridão, você pode optar por expedições em moto de neve, trenó de huskies e esquis. Independente da atividade escolhida, não há dúvida de que o maior espetáculo da estação é ver a aurora boreal.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de fevereiro de 2009)
OLHAR DE CIMA: O guia Jon no topo da Sarkofagen, a montanha mais próxima do povoado de Longyearbyen
FIM DA LINHA: Jon quase no cume do Sarkofagen, depois de 5 horas de caminhada sob 3ºC positivos