Por Marlin Novak SEMPRE TIVE DIFICULDADE, assim como muitos praticantes de ioga que enxergam, de fazer asanas (posturas) de equilíbrio com os olhos fechados. Para entender o que eu digo, faça o teste: fique de pé, com as costas eretas e as mãos ao longo do corpo; de olhos abertos, fixe seu olhar num ponto a sua frente e, devagar, vá levantando um dos pés do chão, pra frente e até onde conseguir, sem perder o foco do ponto; depois de se sentir perfeitamente equilibrado apenas em uma das pernas, feche os olhos e… sinta seu mundo desabar, ou melhor, a perna que te apoiava tremer feito bambu ao vento.
Se a visão é tão importante para o equilíbrio, imagine então pessoas com deficiência visual tentando executar essas posturas. É esse trabalho que vem sendo desenvolvido pelo professor de yoga Luiz Albertini, 40 anos. “A ioga ajuda a despertar o equilíbrio verdadeiro: o equilíbrio interno”, explica o iogue de 40 anos, fluminense de Friburgo que há 18 anos mora em São Paulo (SP). “As pessoas que enxergam têm a tendência de se agarrarem a algum objeto quando vão cair ou precisam de apoio, sempre com a ajuda dos olhos. E quando este indivíduo fica cego? Como sobreviver sem tais referências? Além de outros benefícios também acessíveis aos que veem, a ioga ajuda os deficientes visuais a se adaptar a sua nova realidade, criando novas referências que lhe outorguem autonomia”, diz Luiz.
“Percebi que a questão da percepção do próprio corpo é o mais importante para esses alunos”. Um exemplo: o deficiente está caminhando quando de repente esbarra em algum objeto e cai. “A ioga desenvolve a coordenação motora, a psicomotora e a percepção de si próprio para que, quando isto aconteça, ele consiga retomar mais rápido o equilíbrio”, assegura Albertini. “O indivíduo vai ter um andar mais definido, objetivo e seguro”.
O ex-paisagista que abandonou a profissão para se dedicar exclusivamente à modalidade treina yoga há 27 anos, tendo se formado por várias escolas, sem seguir nenhuma linha. “Pego o que cada uma oferece de bom, pois no fundo são todas hatha ioga”, diz, referindo-se ao conjunto de técnicas mais disseminadas no ocidente: as posturas (asanas), as respirações (pranayanas), os exercícios de concentração e outras técnicas auxiliares.
Em parceria com a LaraMara Associação Brasileira de Assistência ao Deficiente Visual – instituição paulista que atende 8.500 deficientes de todo o Brasil, e aonde Luiz é voluntário há quatro anos –, ele escreveu um livro sobre a prática para quem pouco ou nada vê. O Visão Interior – Yoga para Deficiente Visual é uma cartilha com poucas páginas (“pois quando se transcreve para o braile o número de folhas triplica”), que sintetiza a parte filosófica e prática da modalidade. Quando pronto – Albertini e a LaraMara buscam um patrocinador para publicá-lo – o livro terá, em uma mesma página, o texto em letras grandes para os que veem pouco, e em braile para os que vivem na completa escuridão.
“As pessoas podem se tornar deficientes visuais por problemas hereditários, por consequência da diabete, pressão ocular, etc. Existem diversos níveis de deficiência: há desde aquele que só enxerga vultos e o que não enxerga à noite, por exemplo, até o que não vê nada”, explica o professor.
Um dos capítulos mais interessantes é o que ensina ao leitor exercícios de percepções: emocional, vibracional (por exemplo, sentir as cores quentes e frias por meio das mãos), corporal (se conscientizar das partes de seu corpo), mental (exercícios de memorização, por exemplo), telepático e espiritual (capacidade de evitar pensamentos ruins). “Se somos capazes de expandir as percepções além dos cinco sentidos, é porque elas possuem outras funções úteis ao nosso ser para o caminho da espiritualidade”, narra Albertini.
O iogue conta que uma de suas alunas começou a participar das aulas ainda com alguma visão, mas sabendo que fatalmente ficaria cega por conta da diabete. “Primeiro ela aprendeu a dominar a respiração e, consequentemente, a se sentir mais calma para entender e questionar o que estava acontecendo”, descreve. “Depois, o trabalho de percepção do corpo a ajudou a se adaptar mais rápido ao processo de andar com a bengala”.
Outra característica desenvolvida por meio da ioga – fundamental a todos em tempos de excesso de informação, porém essencial aos deficientes visuais – é a concentração, principalmente nos sons à sua volta. Por isto, em uma aula para quem não vê – eu a fiz, mas de olhos abertos na maior parte do tempo, por causa da minha incapacidade de tê-los fechados – os alunos necessitam de um senso auditivo mais aguçado para entender o que o professor solicita. “Os que perderam a visão mais recentemente geralmente têm pouca concentração. Com o tempo, eles aprendem a ouvir mais e a interpretar melhor”, conta Albertini.
E há alguma restrição quanto às posturas em uma aula como essa? De acordo com Albertini, para responder essa pergunta é necessário entender que a ioga é um termo genérico para uma fórmula espiritual oriental, adaptável a todos os sujeitos, e que pode ser executada a qualquer momento, independente das limitações físicas. “A ioga tem a função de purificar o indivíduo, aproximando-o das virtudes internas adormecidas, que todos temos dentro de nós”, diz Albertini. Por isto, pouco importa se a pessoa consegue se contorcer de forma perfeita ou não – no caso de uma aula com cegos, o colega do lado está se lixando se você faz a postura de forma certa ou errada. Isso torna a aula mais introspectiva, como a atividade requer. E a evolução vem de uma forma progressiva, sem o tempero da competição. “O que vale é se a pessoa está concentrada em sua respiração e em si de uma forma geral. Se sim, ela está praticando ioga”, concretiza Albertini.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de junho de 2009)
Ilustração Simon Fernandes