Por Laís Duarte TEM GENTE QUE ESCOLHE passar a vida em frente às câmeras, gente que sonha com o sucesso e com a luz brilhante do flash cegando os olhos. E há os que optem por estar atrás delas e direcionar a lente para onde bem entendem. Para quem veio ao mundo disposto a ser fotógrafo, o olhar é a ferramenta de trabalho que garante o pão de cada dia. Mas Adriano Gambarini sempre dependeu dos pés, mais do que dos olhos, para fazer sua arte.
Com um ano de idade Adriano já estava no carro dos pais, a caminho de um acampamento qualquer. Filho de um dentista com vocação para viajante e uma dona de casa, o mais novo de quatro irmãos cresceu entre as ruas de São Paulo e a praia de Itapuã, na Bahia. Quando chegavam as férias escolares, a família Gambarini entrava no carro e só parava 2 mil quilômetros depois. Em uma dessas viagens, quando ainda era pequeno, Adriano lembra-se de ver os andarilhos na rodovia e imaginar-se como eles. “Aos meus olhos, eles passeavam o tempo todo, sem se preocupar com a escola, professores, trabalho ou qualquer das chatices de ser adulto”, conta Adriano. Assim Adriano decidiu que queria mesmo era andar por onde o coração mandasse.
O grande motor dos passeios dos Gambarini, seu Antônio, faleceu quando Adriano tinha 14 anos. A perda do pai foi um baque de proporções continentais. Seria natural que o garoto fincasse raízes e agarrasse a barra da saia da mãe para aquietar a dor da perda. Mas, disposto a honrar a herança estradeira deixada pelo pai, Adriano partiu com o irmão Luciano, então com 18 anos, para Caravelas, na Bahia. Durante dois meses eles seguiram a pé de praia em praia, de vila em vila, dormindo em barracas e comendo o que a população local oferecia.
A generosidade dos anfitriões levou os irmãos a Abrolhos, o maior banco de corais do Atlântico sul, de carona com os pescadores da redondeza. Saíram às 3 horas da manhã, num pequeno barco. Na falta de mapas, quem já conhecia o caminho guiava-se pelas estrelas. De volta ao continente, Adriano e o irmão percorrem todo o litoral baiano sem dinheiro no bolso. No caminho, imprimiam lembranças na retina e nos filmes. “Naquela época era Luciano, meu irmão mais velho, quem clicava as paisagens. Eu relatava as aventuras em longos diários de bordo”, lembra.
Aos 17 anos, a peregrinação recomeçou – só que na direção oposta. De ônibus, a pé e de carona, a dupla de irmãos chegou a Mostardas, cidade no litoral gaúcho, distante 205 quilômetros de Porto Alegre. Mochilas nas costas, os dois deram a partida para a caminhada Brasil acima. Confiante no calor do verão tropical, Adriano nem se preocupou em levar um agasalho. Mas o Rio Grande do Sul nunca foi Salvador e o viajante ainda tem arrepios quando lembra das noites geladas em solo gaúcho, sem muito orgulho do recorde de sete dias sem banho.
Adriano gostava de bater perna em cima da terra, e também debaixo dela. Quando descobriu o prazer de explorar cavernas, gostou tanto do silêncio misterioso que se inscreveu no vestibular para o Instituto de Geologia da Universidade de São Paulo. E foi por causa das cavernas que ele se tornou fotógrafo.
NÃO FOI DA NOITE PARA O DIA. No segundo ano da faculdade, Adriano se envolveu com um grupo que mapeava grutas Brasil afora. Passou a trabalhar com geocronologia, o levantamento da idade das rochas. Para registrar as expedições terra adentro, passou a fotografar. Sem curso especial nem equipamentos adequados, ele experimentou pela primeira vez brincar com luz e sombra. Apaixonou-se e pôs-se a estudar o assunto. Porém, a grande lição não saiu dos manuais fotográficos, nem dos cursos. Veio dos livros de arte que ele colecionava nas prateleiras de casa. Estudando a obra de Salvador Dali, Michelangelo e Leonardo Da Vinci, ele encontrou a perspectiva, a linha de fuga e passou a aplicar a técnica dos mestres em sua fotografia.
Por andar bem e adaptar-se facilmente à estrada, Adriano foi convidado para acompanhar um grupo de jornalistas em uma travessia a pé pelo litoral baiano. Em terreno conhecido, ele transferiu para a película a poesia que via desde criança. Foram as primeiras fotos que publicou. Logo em seguida, abandonou a geologia – já que nunca teve vocação para trabalhar com extração de minérios e petróleo – e fez da fotografia profissão.
No início da década de 1990, Adriano percorreu a pé boa parte do litoral nordestino, retratando gentes, bichos, mazelas, paisagens e culturas de um Brasil imenso e plural. Cortou todo o país e viu de onças pantaneiras a macacos-da-noite no Amazonas, de ninhos do raro pato-mergulhão em Minas Gerais ao Uiraçú em Roraima. Até que resolveu “esticar as pernas” em outras terras.
Com o pouco dinheiro que tinha, embarcou para a França, onde arrumou um emprego na colheita de cerejas em Tournon, no sul do país. Calejou as mãos na lavoura e escalando os montes Pirineus, na fronteira entre França e Espanha.
Nos últimos 14 anos, viajou de avião, de barco, de bicicleta – e a pé, é claro. Viveu um tempo na Grécia, onde mergulhou, fez amigos, fotografou. No Quirguistão, experimentou o leite fermentado de égua que sustenta as mais tradicionais comunidades nômades do país. Do Laos, viu as plantações de arroz. Da Noruega, os fiordes. Registrou a cultura secular das mulheres-girafas da Tailândia. Sentiu o frio da Rússia e o calor de Cuba. Retratou a Europa em preto-e-branco e as cores da Ásia. Com suas pernas foi às geleiras da Antártica, à Terra do Fogo, aos Andes e à Rota da Seda, ligação histórica entre o Ocidente e o Oriente na antiguidade. Andou por 17 países, sem cansaço nem pressa.
EM 15 ANOS DEDICADOS À IMAGEM, Adriano fotografou lobos, aves, répteis e animais ameaçados de extinção em vários cantos do planeta. Nesses “encontros”, sempre respeitou o espaço dos bichos, mas admite: quando a convivência com os animais é muito estreita, impossível não levar uns sustos.
Com frequência, ele retrata biólogos do Instituto Pró-carnívoros que pesquisam onças em todo território nacional. Em uma das expedições, no Mato Grosso do Sul, uma onça-parda foi capturada. Cientistas colheram amostras de sangue e urina, colocaram um colar com radio-transmissor no pescoço do felino para monitorar seus passos. O fotógrafo registrou tudo. “Mas tenho mania de achar que a melhor foto é sempre a que está por vir, então decidi esperar a onça voltar da anestesia. Posicionei a câmera a 2 metros dela. Quando ela acordou, se assustou comigo e partiu para cima de mim”, diz Adriano. Sorte que a anestesia ainda não tinha ido embora por completo. Três passos e alguns rugidos depois, dona onça despencou no chão, ainda grogue.
Adriano escapou da fera, mas não ficou imune a inimigos bem menores. Nas cavernas, ao descer de rapel por um abismo de 270 metros, contraiu histoplasmose, infecção causada por um fungo presente nas fezes de morcegos. Trouxe amebas de Rondônia e feridas causadas por insetos da Amazônia. “Precisei trabalhar coberto dos pés à cabeça, apenas com os olhos à mostra, com ares de guerilheiro, para escapar das picadas das abelhas no meio da floresta”, lembra. O fotógrafo teve diarréia na China e atrofia muscular por conta dos mergulhos em águas profundas em Bonito, no Mato Grosso do Sul. Passou por maus bocados ao ficar preso debaixo d’água em um mergulho em caverna na Chapada Diamantina, Bahia. Ao desembarcar no Camboja, sem encontrar viva alma que falasse inglês ou francês, Adriano teve o passaporte retido. Esperou, sem nenhuma explicação, sozinho em uma sala fechada, por horas a fio. Os funcionários da imigração depois contaram que há muitos casos de falsificação de passaportes brasileiros. Eles precisavam checar enquanto cozinhavam em banho-maria a angústia do visitante.
“Apesar de situações como essa, não temo a solidão”, afirma. Às vésperas de completar 40 anos, Adriano não tem emprego fixo, salário, esposa, filhos ou cachorro para alimentar. Não nasceu em berço de ouro, mas precisa de pouco para viver. Tem prêmios no Brasil e no exterior, e fotos publicadas em sete livros que, como ele, cortaram continentes. “Por andar só nesse mundo, sou recebido com mais carinho, mais hospitalidade. Comprovei com meus próprios pés que existe solidariedade em qualquer confim do planeta, do sertão de Alagoas ao litoral tailandês. O que muda é a língua”, afirma. Depois de quase 39 anos andando pelo mundo, Adriano não tem grandes angústias – só sonhos.
PÉ NA ESTRADA
Em 15 anos de fotografia, Adriano Gambarini já perdeu a conta de quantas vezes apertou o disparador da máquina. Ele resguarda com cuidados especiais um dos mais amplos e vastos arquivos fotográficos do país, com mais de 55 mil imagens. A seguir, alguns lugares e cliques de que ele jamais vai se esquecer:
– O mais silencioso: Laos.
– O mais difícil: caminhar 120 quilômetros pela Patagônia sem calçado apropriado.
– O mais emocionante: ver de cima a Antártida gelada em mais de 5 horas de sobrevôo de helicóptero.
– Próxima parada: ilha da Páscoa, Chile.
– Foto preferida: a da caverna Toca da Boa Vista, a maior do Brasil. Com essa imagem ganhou prêmio na Espanha em que concorriam fotógrafos de nove países
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de junho de 2009)
INSTANTES: Adriano em uma das dezenas de viagens que fez à Amazônia, trabalhando todo coberto para se proteger das abelhas e vespas
Fotos Adriano Gambarini
ATLAS: gruta de Mimoso, em Bonito (MS), uma das mais fantásticas para mergulho em cavernas, segundo Adriano
CULTURA: As mulheres-girafa da Tailândia
BELEZAS NATURAIS: Cachoeira no Laos