A mega teoria da evolução


BOB BURNQUIST: O skatista está prestes a dropar a megarrampa paulista
(Foto: Divulgação)

Por Josh Dean

O residente de 32 anos de Vista, Califórnia, é, em várias medidas tangíveis – especialmente as metafísicas –, provavelmente o melhor skatista do mundo, capaz de ganhar o ouro no halfpipe dos X Games ou produzir trechos de skate street para vídeos incríveis. Pode ser dar uma volta completa na parte interna de um cano de metal (que exige andar de skate de cabeça para baixo), ou andar de skate dentro de um cano com uma vão (que exige saltar de cabeça para baixo), ou realizar essas proezas – ou qualquer um dos seus truques – de switch (quer dizer, com a base invertida), ou, especialmente, fazendo as coisas que realiza na sua infame megarrampa, um colosso de 110 metros de comprimento e 23 metros de altura que impulsionou a prática do skate para um território aterrorizante desde que apareceu, em 2003.

Existem apenas três megarrampas na Terra. Uma está guardada e só aparece para os eventos de “big-air” dos X Grames, que Bob venceu nos últimos dois anos. A outra está no Brasil, onde Bob nasceu e viveu até os 18 anos. Ele construiu esta para uma competição que co-produziu, em 2008, pela sua produtora Zoobamboo Entertainment, baseada em Encinitas, na Califórnia, e que também venceu. O evento foi transmitido ao vivo pela Rede Globo, para milhões de espectadores. A terceira megarrampa está no quintal da casa do Bob.

Ele não inventou a megarrampa; os louros da criação pertencem a seu amigo Danny Way, skatista profissional que saltou a Grande Muralha da China alguns anos atrás. A megarrampa é uma traquitana difícil de se imaginar, até que você a tenha visto pessoalmente. Imagine uma rampa de esqui feita de madeira, que termina com o maior ejetor que se possa imaginar; tão alta e íngreme que um skatista profissional mediano treme nas bases só de chegar na borda.

O salto mais básico é mais ou menos assim: você se lança de uma plataforma mais ou menos da altura de um prédio de cinco andares, atinge a velocidade de 65 a 80 Km/h na descida de 55 metros, depois é ejetado por sobre um vão de 15 metros – há redes de proteção de circo, caso você cometa um erro – aterrissa numa rampa e sobe novamente num quarterpipe de 9 metros, que te impulsiona por mais 4 a 7 metros pelos ares. Você vai precisar pousar de volta na mesma face do quarterpipe quase vertical, e não no deck do quarterpipe, ou no piso reto rente ao chão, que quase certamente resultariam em lesões.

Pode ser que você se lembre de que este foi o destino do skatista australiano Jake Brown, que teve sua queda muito bem documentada nos X Games de 2007. O Jake vacilou um pouco ao aterrissar depois de mandar um 720 (seu primeiro em uma megarrampa), o que arruinou seu timing no quarterpipe. Quando ele se lançou no ar para cima do quarterpipe, um desequilíbrio fez com que se afastasse da rampa e caísse 14 metros direto na parte plana, num choque tão forte que lançou para longe seus dois tênis.

Bob, que esperava sua vez, pensou que seu amigo estava “morto, paralisado, despedaçado. Eu gritava desesperado”, diz. Jake ficou imóvel por oito minutos, depois, como por milagre, levantou-se e saiu andando (com um punho quebrado, uma concussão leve e fígado e pulmões contundidos). Isso fez Bob pensar: caramba, sou o próximo. Tá bom, Jake, esta é para você. Desceu a rampa e levou o ouro.

A esta altura, Bob consegue navegar a megarrampa facilmente, de frente ou de switch. Ele consegue girar (várias vezes) e aterrissar logo depois do vão, numa plataforma curta conhecida como manual pad, realizar uma pequena manobra e continuar em direção ao quarterpipe, onde pode ser que voe para cima e dê um grind na trave de futebol que, às vezes, coloca em cima do deck, só para se divertir. Ele consegue fazer um front flip por cima do vão, coisa que ninguém nunca tentou.

Tony Hawk diz que se sente “aliviado” pela megarrampa não existir na sua época de competições, e que ela “vem testando os limites humanos sobre o skate”. Sobre Bob, Tony diz: “Além de criar manobras que antes se pensava impossíveis, ele está pegando movimentos perigosos e realizando-os a alturas perigosas e por distâncias aterrorizantes”. Ele também é um caso único, pois “sua motivação é a evolução, e não a fama e a fortuna”.

Mas isto não quer dizer, claro, que Bob não vá participar de competições. Ele aparece nos eventos, principalmente porque os patrocinadores o encorajam, e a tendência é que ganhe. Até agora ele levou para casa 15 medalhas dos X Games (sendo seis de ouro), foi o skatista vertical do ano na Copa do Mundo de Skate, e mais uma vez é o favorito para o evento de big-air nos X Games de 2009. Mas o que realmente estimula Bob vai além: ele é um viciado em esporte com uma mente criativa, que está tratando sua atividade mais como uma mistura de problemas matemáticos e projetos artísticos. Burnquist acorda quase todos os dias com uma pergunta na cabeça: o que mais eu posso fazer?

Observa-lo é ver um cara que parece ter acabado de sair de uma aula de ioga. Ele é uma salsicha ambulante – 1,88 metro e 82 quilos com braços e pernas magrelos e cabelos curtíssimos. Danny Way, amigo íntimo de Bob e seu único real rival (ou talvez o único ser humano louco o suficiente para querer ser), diz que ele tem “genética de gato” e o chama de Gumby (personagem de massinha de modelar, fino e comprido). Parece que seus ossos foram substituídos por massa de biscoito macio.


CLÃ: Bob com a esposa Verônica, a filha do casal, Jasmyn (à esquerda) e Lotus (filha do primeiro casamento de Bob, com a skatista Jen O’Brien)
(Foto: Divulgação)

NUMA TARDE QUENTE de primavera visitei Bob em sua terra, no árido sopé das montanhas San Marcos, no North County de San Diego. Rancho Bob Burnquist, ou Rancho Burnquisto, como ficou conhecido, tem 48.500 metros quadrados e várias partes misturadas. A primeira coisa que se vê é a tradicional rampa vertical e bowl, onde ele grava seus filmes e treina para os eventos. Ao redor, estão o que ele chama de “monumentos”, as pouco utilizadas ou aposentadas rampas, feitas para truques que acontecem apenas uma vez, como o loop-de-loop ou o corkscrew (sacarrolhas). Não muito adiante está uma bela casa de alvenaria com duas cabanas ao lado, uma para seu escritório e academia, e outra para seus brinquedos, inclusive uma pilha de pranchas de surfe, inúmeros equipamentos de skydiving e, literalmente, centenas de pranchas de skate. Há uma pequena piscina e um quintal, uma horta de vegetais orgânicos, um campo para criação e, numa grande e maltratada área no fim da propriedade, a megarrampa.

O rancho é montanhoso e rico em vegetação. Não é fácil caminhar a pé, então Bob sobe em seu miniutilitário de dois lugares Yamaha Rhino. Há um sutil desleixo com o local – pedaços de velhas rampas e colchonetes de academia deteriorados estão jogados, juntamente com alguns cães inexplicáveis. Apenas um, chamado Dois, uma mistura de pastor australiano que exibe cicatrizes de 14 ferimentos de perfurações (trabalho dos coiotes locais), pertence ao Bob. “Também tem um gato por aqui”, ele diz.

Bob contorna uma pilha de esterco – presentinho de Rio, o cavalo da família – e segue em direção de algumas bananeiras, onde encontra sua esposa Verônica, 40, uma linda e loira fisioterapeuta brasileira. Os dois têm uma filha de nove anos, Jasmyn, e cada um tem uma filha de casamentos anteriores, a de Bob é Lótus, de 9 anos, cuja mãe é a skatista profissional Jen O’Brien.

No rancho, Bob recriou uma pequena fatia de São Paulo, onde foi criado numa família bilíngue de classe média, filho de pai americano e mãe brasileira. Na verdade, família inteira está aqui, apesar de seus pais serem divorciados. Tem a babá brasileira e uma cabana para seu pai, Dean. Sua irmã, Rebecca, mora numa casa na mesma estrada com a mãe, Dora, que pinta, esculpe e faz mosaicos (“Eu consigo morar com meu pai”, diz Bob, “mas minha mãe…”). O trabalho de Dora está espalhado por todo o rancho, incluindo várias pinturas enormes de Bob em ação, dominando a sala de estar.

Ele dá um beijo em Verônica e me pede para mudar para a caçamba empoeirada da Rhino, para dar lugar a ela, para que todos fôssemos visitar Rio e seus colegas de celeiro, duas cabras e uma galinha. Bob e Verônica falam rapidamente em português (ela ainda está aprendendo inglês) a respeito do sabão orgânico de óleo de moringa, produzido por uma mulher que aluga uma cabana na propriedade. “É um material incrível”, diz. “Quando arranquei meu siso, coloquei um pouco do pó e acordei muito melhor”.

Nada dessa cena – ou qualquer outra da vida de Bob, na verdade – é o que seria de se esperar de um skatista. O mesmo se pode dizer a respeito dos seus interesses em negócios fora do esporte, a maioria voltada para o guarda-chuva de um empreendimento amorfo chamado Burnquist Organics, que ele mesmo sofre para descrever. Isso incluiria o trabalho da fazenda, que parou comercialmente desde que fechou seu restaurante orgânico, o Melodia, mas ele está negociando o fornecimento de produtos para as lojas locais dos restaurantes mexicanos Chipotle. Ele planeja lançar uma linha de produtos orgânicos com uma barrinha energética este ano. Logo mais você irá encontrar um logo da Burnquist Organics em vários produtos aprovados pelo Bob, inclusive os primeiros óculos Oakley feitos a partir de materiais reciclados; um shape de skate feito de bambu (ainda em estágio de testes); um tênis para skate iPath todo de cânhamo; uma linha brasileira de algodão orgânico e cânhamo, a Hurley clothing; e uma prancha Keahana sem espuma.

No mundo adrenado dos X Games, onde os atletas tendem a ser tatuados, cafeinados e mais preocupados com seu estilo do que com sua pegada de carbono, Bob é uma anomalia. Seus projetos verdes, juntamente com suas tendências new age – ele segue o movimento não sectário do Espiritismo Cristão, e tende a fazer longos e precisos discursos a respeito dos “ritmos fluídicos” – levaram à percepção entre os fãs de que ele é vegetariano. Ele não é. Mas gosta de vitamina de frutas e dirige um Prius. Ele também recusa dólares de patrocínio de qualquer produto que não o deixe confortável, principalmente as bebidas energéticas – Red Bull, Monster Energy – que são fontes de renda onipresentes nos esportes de ação. “Eu odeio essas coisas”, ele diz. Em vez disso, ele gravita por negociações que satisfazem seu hippie interior: Stonyfield Farm, bebidas de açaí Sambazon e a Toyota, que em 2005 fez de Bob seu primeiro atleta especificamente ligado ao Prius (ele foi o primeiro atleta de esportes de ação da empresa).

Há vários outros atletas profissionais falando a respeito do aquecimento global e da sustentabilidade, mas poucos, se é que há algum, realmente conseguiram realizar mudanças verdadeiras em seu esporte. Bob foi co-fundador do Conselho Ambiental dos Esportes de Ação em 2001 e, em 2007, levou seu skate ao Capitólio para fazer lobby no congresso pelas mudanças climáticas – tornando-se, se você é fã dos recordes minuciosos, a primeira pessoa a andar de skate dentro daqueles corredores sagrados.

Naquele mesmo ano, ele juntou grandes marcas dos esportes de ação para a primeira conferência da indústria a respeito de como se tornar verdes. Foi por causa dele que os X Games passaram a usar madeira certificada em suas rampas, que foram doadas, depois do evento, para construir parques de skate em bairros abandonados como Compton. Seu projeto atual é o Desafio Bob Burnquist do Resfriamento Global, um programa de educação ambiental para estudantes de ensino fundamental e médio.


SOLTO NA VALA: Bob voa para sua segunda vitória na megarrampa montada em São Paulo, em setembro deste ano
(Foto: Divulgação)

Bob tem sorte por viver numa época em que um atleta pode transformar ativismo em dólares e não simplesmente em uma ou outra caixa de barrinhas energéticas. Ele pode falar por quinze minutos a respeito da hipocrisia de Kobe Bryant falando besteiras a respeito do fast food, enquanto reconhece “para mim é fácil dizer isto, porque eu tenho condições para ser seletivo”. Ele não me dá muitas informações a respeito das suas finanças, mas pode-se dizer que sua renda anual está certamente dentro dos seis dígitos.

Enquanto íamos com a Rhino de volta à arena vertical, Bob espiona Dora fora do seu estúdio. Pergunto a ela o que pensa a respeito da ideia de arte do seu filho – as rampas, saltos e acrobacias. “Eu acho loucura”, diz. “Eu não assisto, mas ouço, porque as pessoas me chamam”.

Bob não a avisou sobre o salto mais perigoso de todos, em 2006, quando ele voou de uma rampa construída na borda do Grand Canyon, deu um grind num trilho por sobre o precipício e então lançou-se num B.A.S.E. jump de 487 metros até o chão. Mas Dora é mãe. Ela sabia. “Foi horrível”, diz, mas ela está mais tonta do que preocupada. “Lótus tem medo até hoje”. “Ela não está assustada”, responde Bob me puxando para longe. “Claro que ela se preocupou. Ela dizia, ‘Meu papai gosta de saltar dos precipícios. Ele é doido’”.

Bob guarda um caderno de espiral com seus sonhos no escritório da sua casa. É cheio de ideias para rampas, arenas e piscinas, algumas com bizarras formas geométricas, feitas por ele e por Danny Way, que também é seu companheiro na banda de indie-rock Escalera (Danny na guitarra e Bob na bateria), e a única pessoa que consegue entender sua visão criativa. Tanto Bob quanto Danny operam por fora dos caminhos profissionais do skate street e vertical. A maioria dos profissionais são skatistas de street, porque é mais fácil de aprender; tudo que se necessita é um pouco de asfalto.

Os skatistas de vertical precisam de rampas caras, que significam patrocinadores, que significam pressão para vencer competições. Bob e Danny participam dessas competições de demonstrações, mas passam a maior parte do tempo desafiando um ao outro com saltos incríveis. Danny é famoso por seu salto da Grande Muralha da China, em 2005, e por dropar do topo de uma guitarra de 25 metros de altura no Hard Rock Cafe de Las Vegas um ano mais tarde. Em novembro passado, ele estabeleceu o recorde de velocidade de skate rebocado, atingindo 119 quilômetros por hora, puxado por um veículo pilotado pelo skatista profissional e astro da MTV Rob Dyrdek no deserto da Califórnia.

Antes de mais nada, foi a natureza improvisada do skate que atraiu Bob. Seu pai lhe deu seu primeiro skate aos 11 anos, quando uma asma severa o impediu de sobressair-se no futebol. Bob foi imediatamente atraído pela “coisa individual” do skate. “O que quer que eu fizesse, era por mérito meu – se eu caísse, era só minha culpa”, diz. O jovem Bob logo ficou obcecado; ganhava competições no Brasil no começo da adolescência, mas continuou no anonimato nos Estados Unidos até 1995, quando, com 18 anos, venceu o Slam City Jam, em Vancouver. Em 1997, ganhou sua primeira medalha nos X Games, um bronze na rampa vertical, e foi eleito o skatista do ano pela revista Thrasher. Ele se mudou para o rancho em 1999.


DE ROLÊ: Bob troca quatro rodinhas por duas rodonas
(Foto: Divulgação)

Bob se joga numa cadeira de escritório junto à mesa da cabana e me mostra seu notebook. Ele para nos primeiros rabiscos do truque do Grand Canyon, feitos em 1996. Era apenas uma vaga ideia quando o produtor da série Stunt Junkies, do Discovery Channel, o chamou. Bob explicou seu conceito e o produtor gritou “adorei!”. “Este ficou no papel por seis meses”, diz Bob. “Às vezes, ideias ficam aqui por dois anos”.

Ele vai virando as páginas, passa o rascunho de um salto sobre um Boeing 747 provido de trilhos, e um outro para um drop de 30,5 metros de uma estátua em São Paulo, que bateria a altura do drop de Danny no Hard Rock Café. “Estou convidando o Danny para vir comigo, então não é como se eu estivesse batendo seu recorde”, diz.

De acordo com Bob, ele tem a sorte de ter Danny por perto. Sem um competidor talentoso o suficiente para tentar atividades tão maníacas, seu espaço aéreo rarefeito poderia ficar muito solitário. “Quando eu faço as coisas, ligo para ele e digo, ‘cara, você não imagina o que acabei de fazer’”.

Ele muda agora para seu iMac e passa clipes do seu próximo papel no – três-anos-sendo-produzido – vídeo de Flip Extremely Sorry. Bob é obcecado por esse tipo de vídeo porque eles mantêm sua credibilidade no mundo do skate, que poderia vê-lo como um acrobata que tira uma grana nos X Games uma vez por ano e logo retira-se em seu rancho para ficar curtindo linhaça. Os trechos de filmes – gravados na megarrampa, ou em piscinas e parques de skate pelo mundo – são inacreditáveis até para os prós. Em uma sequência, ele se lança por sobre o vão de 15 metros, aterrissa no manual pad, dá um kickflip de 180 graus a 80 quilômetros por hora, daí dropa no quarterpipe – tudo sem perder o ritmo.

O skate de Bob é tão “técnico” – palavra usada muitas e muitas (e muitas) vezes para descrevê-lo – que, para mostrá-lo para uma pessoa de olho não treinado, como eu, tem que passar o filme em baixa velocidade. Chris Stiepock, gerente geral dos X Games, diz que as sutilezas de Bob, dando ênfase em dificuldades absurdas, são quase impossíveis de serem apreciadas por fãs ocasionais. Esta é uma das razões pelas quais talvez Bob nunca se torne tão conhecido quanto Tony Hawk. “Você veria uma corrida de Bob e não ficaria muito impressionado. Daí, vem alguém e diz, ‘E por falar nisso, ele acabou de fazer a mesma coisa de switch’. As coisas que ele consegue fazer, do ponto de vista técnico, são o que o torna espetacular”.

Bob passa para um vídeo do seu loop-com-vão no YouTube. Assistimos ao vídeo dele rolando na parte interna de um cano, saltando invertido por um vão na parte de cima para depois descer do outro lado. Na última contagem o vídeo tinha 1,6 milhão de visualizações. Mostro um comentário que diz: “Claramente, você é um idiota”. “Eu adoro os comentários”, diz, rindo. “São os melhores. Muitos deles – como no caso do Grand Canyon – dizem: ‘Bom. Mas por quê? Eu não vejo razão’. Mas alguém sempre responde por mim: ‘E por que não?’”.

Em um dia comum dá para ver alguns skatistas profissionais na megarrampa do Bob, ou, com a mesma frequência, tremendo à sua sombra. O North County é lar de muitas das maiores marcas dos esportes de ação – Hurley, DC Shoes, Quiksilver – e também dos maiores astros, dentre eles Way, Hawk, Shaun White, e dezenas de outros skatistas, ciclistas de BMX e estrelas do MotoCross, muitos deles que não conseguem resistir à atração gravitacional do monstro que espreita por trás da casa de Bob Burnquist. É como ter uma onda de Maverick no seu quintal.

A chegada da megarrampa foi um momento marcante na história do skate. Danny Way havia passado um ano construindo o colosso em segredo, com fundos da DC Shoes (co-fundada por seu irmão, Damon), num ponto remoto do deserto da Califórnia conhecido como Ponto X. Ele não havia contado a ninguém a respeito das suas intenções, e então introduziu a rampa ao mundo em 2003, no filme The DC Video. Stiepock lembra de estar nos X Games de inverno em Aspen, quando alguém irrompeu em seu escritório agarrando o DVD. “E lá estava ela, em toda sua glória”, lembra-se. “Foi um daqueles momentos em que você pensa: ‘Eu não acredito no que estou vendo’”.

Quando Bob viu as gravações, sua cabeça quase explodiu. Como foi explicado no filme de skate de 2005, The Reality of Bob Burnquist, ele não conseguia entender que seu amigo havia tramado o monstro em segredo, e que estava “só andando de skate sozinho”. Da maneira como Bob coloca, “Não que muitas pessoas teriam esse tipo de motivação”. Ele imediatamente ligou para o Danny e disse: “Eu tenho que descer essa coisa”. Logo foi para o deserto, tornou-se o segundo homem a dominar a mega e, no momento em que desceu à Terra – física e mentalmente – pensou, eu tenho que ter uma destas.


DUPLA: Bob e seu parceiro de desafios, Danny Way.

(Foto: Divulgação)

Hoje, a rampa protótipo está desmontada, e Danny e Bob juntos têm a sua própria “Mega Ramp LLC,” que detém o registro da marca e constrói rampas para vários eventos. Bob construiu sua versão para o rancho, em 2006, pelo preço declarado de US$ 280 mil (pagos em sua maior parte pela Oakley e pela Hurley), usando, basicamente, 400 folhas de compensado. Por causa da topografia, onde uma encosta de morro apoia a descida principal, dá para subir uns poucos degraus até o topo, enquanto a rampa dos X Games é acessada através do elevador do Staples Center. A do Bob é também a única megarrampa que fica montada entre uma competição e outra, tornando-se um destino frequente para equipes de filmagem, que devem bater à sua porta para pedir permissão de uso.

Recentemente, o astro do MotoCross Travis Pastrana fez um backflip (um looping) pilotando um Big Wheel (basicamente, um triciclo infantil com uma roda grande na frente) por sobre o vazio de 21 metros para seu programa na MTV, Nitro Circus. O skatista de street Pat Duffy teve uma experiência não tão agradável, em 2006. Duffy, um profissional muito conceituado, voou sobre o vão de 15 metros, mas perdeu o controle ao se aproximar do topo do quarterpipe. Ele voou pelos ares, correndo no ar feito um papa-léguas enquanto caía 9 metros até o deck no chão. Mais tarde, ele descreveria que seu fêmur “fez uma britadeira” na tíbia, quebrando o osso em três partes. Até aquele momento, diz Bob, “Skatistas de street me ligavam o tempo todo”. Um tempo depois, “as ligações simplesmente pararam”.

Mesmo assim, as pessoas continuaram curiosas. Enquanto eu estava no rancho, um amigo e profissional colega de Bob, Pierre-Luc Gagnon, ou PLG, aparece com carne nova: um skatista de street conhecido como Lizard King (O Rei Lagarto, ou Mike Plumb para seus parentes), que é magro, alto e abundantemente tatuado, com uma voz rascante de fumante e olhos esbugalhados de um homem que passa a vida a base de anfetaminas.

Bob os cumprimenta logo na entrada, e diz a PLG que leve Lizard para a rampa “só para ver onde é que ele está se metendo”. Alguns minutos mais tarde, Lizard King volta como se tivesse visto um fantasma. Ele anda de um lado para outro. “Eu nem estou olhando e já estou tendo um ataque cardíaco”, diz. “Exatamente – porque você sabe o que está por fazer”, diz Bob.

PLG e Bob discutem um truque no qual Bob está trabalhando; eu nem consigo seguir o jargão, mas Lizard King presta atenção em cada palavra. “Vocês estão totalmente loucos”, guincha. “Eu não consigo entender como vocês são os caras mais doces que já conheci, porque são loucos de hospício”. Lizard King agarra uma sacola de proteções da Mercedes de PLG e volta. “Nunca fiquei tão intimidado por uma coisa em toda minha vida”, diz, depois suspira. “Vou deixar você maluco,“ diz Bob. “Eu vou até lá com você”.

Então Bob, sem joelheiras ou capacete, faz o primeiro passo da dessensibilização da megarrampa: a aterrissagem de emergência. Ele rasga a descida, voa para cima e joga o skate sobre o vão, aterrissando no traseiro e escorregando até parar na transição. Daí, simplesmente por não poder deixar barato – karma ruim, cara – ele sobe na Rhino, volta para cima, desce de novo, salta, aterrissa e dá um grind na borda do quarterpipe, só por fazer. Quando ele está no ar, dá para escutar o chiado das rodas, girando tão rápido que parece que vão sair voando.

Lizard King quase tem um colapso. Lá está ele, aterrorizado, e Bob simplesmente desceu a rampa como se fosse a piscina do quintal, usando só jeans e camiseta. “Caramba, cara”, grita Lizard, chegando na beira. “Viva a vida”.

Sua primeira tentativa não é bonita, mas ele tem garra. Há muitos opas e uivos e “PQPs!” enquanto ele desce feito um foguete, é lançado e, no ar, deixa o skate cair e voa como alguém saltando de uma ponte para dentro de um lago. Ele aterrissa desengonçado, mas seguro, sobre as joelheiras e escorrega até a base do quarterpipe. “Bob, eu te amo!”, grita, enquanto Bob e eu caminhamos de volta à casa. “Esta foi a coisa mais divertida que já fiz na vida! Obrigado por ter construído isto!”

Mais ou menos uma hora mais tarde, o telefone de Bob vibra. É um torpedo do PLG: Lizard mandou bem. “Ele conseguiu a mentalidade certa”, diz Bob. “Ou a errada, dependendo do ponto de vista”.


X BOB: Bob no X-Games de 2008 em Los Angeles
(Foto: Divulgação)

O AMOR DE BOB POR VOAR não é específico para o skate. Ele teve brevê de piloto por vários anos, já fez mais de 500 saltos e 14 B.A.S.E. jumps e, recentemente, começou a experimentar o wingsuit, que é, basicamente, a anatomia do esquilo voador aplicado a humanos.

Você não precisa dizer ao Bob que ele é uma contradição ambulante (e saltante, rolante…). Mas ele sabe bem disso. “Eu salto de aviões, eu voo, eu viajo para andar de skate. Não tem como eu ser carbono neutro. Veja quanta madeira eu uso!”. Ele diz isso desde o seu Toyota Highlander híbrido, a caminho de um pequeno aeroporto onde vamos pegar um Cessna alugado para o voo da tarde. “O que eu faço é viver minha vida, cuidar dos meus assuntos, e tentar progredir”, adiciona. “Faço mais do que os caras medianos, mas certamente posso fazer ainda mais”.

Bob realiza a maioria dos seus voos saindo de uma pequena pista de pouso próxima à escola de Lótus. Embarcamos num antigo Cessna branco com listras azuis e ele dá a partida no velho pássaro. Ele usa um colete cheio de bolsos com uma lanterna, remédio para asma, barrinhas energéticas, mapas, sinalizadores e uma bolsa de hidratação – basicamente, tudo o que seria necessário para sobreviver em caso de um acidente na floresta. Viramos para a pista e, logo, decolamos. Abaixo de nós, uma área onde seriam construídas casas com empréstimos antes da crise; fantasmas de construções inacabadas assombram a paisagem. Algumas estão construídas pela metade, e pode-se ver linhas de estruturas lentamente sendo engolidas pela terra. Há muitas entradas vazias. “É bom para nós”, diz Bob. “Muitas piscinas”.

Dirigimo-nos para o sul e sobrevoamos o local do Point X, onde Danny desenhou a megarrampa, então Bob dá a volta e vira o avião em direção ao Pacífico, que brilha à distância. Ele aponta – uma visão a Deus sabe quantos quilômetros de distância – seu próprio monstro. “Megarrampa a 12 horas. Legal, né? Eu adoro sobrevoá-la”.

Enquanto sobrevoamos o rancho, Bob fala de algumas das suas últimas ideias. Pode ser que queira saltar de skate de um arranha-céu para outro, depois lançar-se do segundo num B.A.S.E. jump até a rua. Ele também imagina um lançamento em giro para a megarrampa e talvez até um loop duplo, como uma versão em tamanho real do que as crianças fazem para os carrinhos Hotwheels. Mas será que isto é possível? “Não sei. Acho que é”.

Essa mesma questão há muito é motivação para outros atletas não tão famosos, inclusive o esquiador Shane McConkey, que morreu nos Dolomitas italianos em março, enquanto filmava uma acrobacia combinando esqui e B.A.S.E. jump com wingsuit. “Todos nós sabemos aonde estamos nos metendo”, diz Bob quando se levanta o assunto. “Você vive com esse risco para poder se divertir tanto. Garanto que Shane experimentou sensações que nenhum outro ser humano irá experimentar. Isto é progredir. Podemos segurar a progressão, mas não podemos segurar a evolução. Nós vamos em frente, mas não sabemos como dizer não”.

Observando a suave pilotagem de Bob, fico surpreso de como ele me lembra Philippe Petit, o excêntrico acrobata francês que relaxadamente andou para frente e para trás entre as Torres Gêmeas, em 1974. Fisicamente, são análogos – ambos são Homens Plásticos – e compartilham de uma calma desconcertante, que Danny Way chama de “Modo Zen com rampa” de Bob.

Bob me diz que não assistiu Man on Wire, documentário a respeito da travessia das Torres Gêmeas realizada por Petit, então eu explico que o que me chamou mais atenção não foi a coragem ou compleição física do cara, mas o fato de que ele parou no meio do cabo de aço, centenas de metros por sobre Manhattan, saboreando o momento com um sorriso, como se não quisesse que acabasse. “É isso”, diz Bob. “É para isso que ele vive. Se eu tivesse tempo, eu daria um sorriso no meio do voo também”. Ele para um instante. “Na verdade, eu estou sorrindo. Mas você tem que apertar o botão do pause para ver”.


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de outubro de 2009)