Clássico do remo


NA TENSÃO: Canoas se alinham para a largada
(Foto: Frederico Balloni)

Por Camila Junqueira

NÃO ENTRO NUMA CANOA HAVAIANA pra treinar desde o começo de abril, quando vencemos a segunda etapa do Brasileiro na USP. Cinco meses sem segurar um remo e com as mãos macias outra vez, recebi um telefonema da Vivi (Viviane Matero), leme e capitã da equipe Matero/Atenah, me chamando pra última etapa do campeonato, no Rio.

— Mas Vivi, como assim? Faz um tempão que eu não remo! E as outras meninas?

— Dá tempo, Camis. Temos um mês pra encaixar a remada de novo. E nós também não remamos há um tempão. Vamos e ponto!

Somos mais de seis remadoras na equipe, entre experientes corredoras de aventura, multiesportistas e duas remadoras profissionais, e é comum nos revezarmos nas provas de acordo com o ponto forte e a disponibilidade de cada uma de nós. Mas dessa vez eu não tinha escapatória, as outras meninas não poderiam ir. Depois da Vivi praticamente decidir por mim (as capitãs são sempre mandonas?), comecei a ponderar. Primeiro: era mentira que o resto da equipe também não estava remando. Vivi tinha feito, em julho, a travessia dos mais de 51 quilômetros que separam as ilhas de Molokai e Oahu, no Havaí, de stand-up (mas, tudo bem, é stand-up, não havaiana. Ahã).

A Carmete (Carmen Lúcia da Silva) é uma das maiores remadoras oceânicas do Brasil, a experiência da nossa canoa em pessoa, mora em Angra dos Reis e praticamente vai de casa pro trabalho remando. A Carina (Carina Faggini) é professora de canoagem na Praia Grande, onde mora, rema todos os dias e, no mar, melhor ainda. A Shubi (Silvia Guimarães) não para nunca, tira o pé. A Camilinha (Camila Nicolau) vinha de uma temporada forte, com vitória no Brasília Multiesporte e na sua categoria no Ironman. Ou seja, nadando muito e remando nada. Mas ela tem um ritmo (é a nossa voga, que é quem dá o ritmo das remadas da canoa toda) e anos de canoagem nas costas que fazem a diferença – com 12 anos já era guia de rafting, competiu caiaque-pólo…


DEVER CUMPRIDO: Remadoras da equipe campeã relaxam depois da prova
(Foto: Frederico Balloni)

Beleza. Pondero outra vez, me faço de desentendida e me convenço de que as centenas de quilômetros que eu havia corrido nesses meses (para uma prova de 80 quilômetros na Espanha, em agosto) me garantiriam no endurance pra remar os 24 quilômetros da prova do Rio. E não falto a nenhum treino até o dia da largada, três a quatro vezes por semana fazendo muita força na raia da USP com as meninas da equipe aqui de São Paulo, Shubi, Vivi e Camilinha. E tudo isso sem deixar os treinos de bike, corrida e funcional. No final das contas, as competições e os treinos de outras modalidades são o que fazem a diferença na nossa equipe.

Assim fomos para o Circuito das Ilhas Cariocas – a quarta, última e mais disputada etapa do Campeonato Brasileiro –, com duas vitórias (nos 70 quilômetros da Volta à Ilha de Santo Amaro e nos sprints de mil metros na USP), um descarte (não fomos à terceira etapa em Cabo Frio) e a pressão da canoa do Clube Náutico de Cabo Frio na cola (a equipe tem uma vitória em casa e um segundo lugar na USP), nossas maiores adversárias. As ilhas cariocas que dão nome à prova são na verdade as Cagarras (o nome curioso vem do francês Cagades, e tem a ver com o tom branco causado pelo acúmulo do cálcio do cocô das aves nas rochas), um arquipélago de sete ilhas que fica a cinco quilômetros de Ipanema, em linha reta, e que promete ser o momento decisivo da etapa.

As 26 canoas foram se alinhando em frente ao forte de Copacabana para a largada dos 24 quilômetros da prova num sábado de céu nublado, chuva e mar agitado. Dia perfeito para fazer força! O visual e as praias da cidade maravilhosa nós aproveitaríamos depois, com a missão cumprida e um domingo de sol como prêmio. Esses minutos antes da largada são sempre uma tensão, mas dessa vez eu e a Camilinha aprontamos uma só para descontrair a equipe: empurrando a canoa pra dentro d’água bobeamos na hora de pular pra dentro. Ela, que deveria entrar no banco um, subiu no dois, e eu acabei atropelada pelos iacos. Levava o maior caldo enquanto minha canoa passava a arrebentação. Peguei carona com um jetski da organização para me juntar às meninas, ainda em tempo de recuperar a moral abalada pelo caldo e concentrar para a largada.


MOTOR A REMO: Sincronia e força fazendo a canoa andar
(Foto: Fábio Minduim)

Nossa estratégia era acelerar no começo para tentar abrir já antes da primeira bóia. Largamos forte em direção ao Leme, e não é que passamos o segundo, o terceiro, o quarto quilômetro, estamos quase na bóia, e ainda têm duas canoas femininas do nosso lado, e justo quem: a Clube Náutico e a Hui Hoe, ambas de Cabo Frio. Então, fizemos o que parecia impossível, colocamos ainda mais força na remada e entramos para contornar a primeira bóia na frente. Conseguimos, mas isso não significava nenhum refresco. “Agora vai, temos que abrir, vamos enfiar esse remo na água! Vaaaai!”, gritava Vivi, quando avistamos as Cagarras à nossa frente. Entramos então no trecho mais tenso da prova, com o mar grosso, a canoa batendo muito, água entrando e a pressão dos times de Cabo Frio, na nossa cola. Contornamos as Cagarras tão concentradas e fazendo tanta força que sentimos apenas o cheiro, descobrir mesmo de onde ele vinha, só depois.

Agora, tínhamos que manter o ritmo forte pra aumentar a vantagem aberta nessa reta até as ilhas. E aceleramos, surfando nas ondulações, aos comandos da Carmete até a bóia do Leblon. Mais um contorno e seguimos em direção a Ipanema com vento contra, margeamos a costa, fugindo de uma canoa masculina que ensaiava uma aproximação. Mais força para contornar o Arpoador e avistar o forte, sinal de que já estávamos bem perto da linha final. De volta à Copacabana, depois de 2 horas e 32 minutos de prova, cruzamos as bóias de chegada em primeiro!

Apenas quatro minutos depois chegava a canoa Hui Hoe, seguida muito de perto pela Clube Náutico, resultado que reafirma a rivalidade entre as fluminenses de Cabo Frio e nós, as quase 100% paulistas da Matero/Atenah. No final, mesmo com a terceira colocação nesta prova, a Clube Náutico ficou com o segundo lugar no Brasileiro e nós garantimos o tri-campeonato.

O ano que vem promete uma disputa ainda mais acirrada. As remadoras da Clube Náutico chegaram junto e estão mais fortes a cada prova. Elas fizeram no final de semana anterior ao do Circuito das Ilhas Cariocas a travessia do Rio de Janeiro a Arraial do Cabo. Remaram os cerca de 120 quilômetros em 16 horas de revezamento, com dois times de seis remadoras, um deles exatamente a canoa que competiu conosco. O que significa que estão treinando forte e ganhando experiência. Que venha o próximo campeonato então.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de novembro de 2009)