Por Michael Roberts
Não é assim que se começa uma discussão sobre macheza. Jack Johnson e eu estamos em um PT Cruiser conversível cor azul-marinho brilhante, dirigindo pelas ruas de Burbank, na Califórnia, em dia de céu sem nuvens de 21 graus no início de março. Todo mundo na estrada está usando óculos enormes. Ainda assim, mesmo com a capota levantada, sinto como se todos estivessem olhando para nós enquanto seguíamos para o escritório da Brushfire Records, a gravadora de Johnson. Em um sinal vermelho, dois carinhas jovens em uma picape passam pelo nosso carro e fazem uma careta. Se eles soubessem a discussão sobre energia masculina em que íamos mergulhar…
A culpa é de Robert Bly. Tinham me dito antes de eu vir para o sul da Califórnia que o novo álbum de Johnson, To the Sea, tinha forte influência do poeta e escritor, mais especificamente o best-seller de 1990, João de Ferro: um Livro Sobre Homens (editora Campus). O livro usa o conto dos Irmãos Grimm “João de Ferro” para explicar o estado infeliz do homem norte-americano, que Bly chama de indeciso, exageradamente gentil e triste. O conto “João de Ferro”, para simplificar bastante, é sobre um menino príncipe que liberta um Homem Selvagem (o tal João de Ferro) engaiolado no castelo real e foge com ele para a floresta para ser guiado por uma série de testes. Na visão de Bly, os homens modernos precisam desesperadamente de um pouco desse tipo de mentor.
O tecladista de Johnson e seu amigo de longa data Zach Gill mandou o livro para ele no ano passado, um pouco antes do pai de Johnson morrer de câncer e sua mulher dar à luz o terceiro filho do casal. “Foi na hora perfeita”, conta ele.
O fato do auge da fama de Bly ter sido há 20 anos não importa. Na década de 1990, a mistura de mitologia, literatura e psicologia pop do João de Ferro ajudou a inspirar muitos caras a reclamarem de volta sua masculinidade (nas palavras de seus fãs), ou simplesmente juntar uns grupos de auto-ajuda estilo New Age que ficam choramingando a respeito de seus pais (nas palavras dos críticos). Nos dias anteriores ao meu encontro com Johnson, debrucei-me sobre o livro e fiquei me perguntando: Jack Johnson + Poder do Homem Selvagem = o quê? Ao longo dos anos a imagem dele sempre foi de um cara sossegado. Um surfista-barra-astro do rock do Havaí de 35 anos que se sente mais confortável descalço na praia, que é onde se deve estar quando suas músicas acústicas relaxantes são tocadas. Um cara que escreveu um monte de canções de amor e leva a esposa com ele nas turnês. A encarnação da brisa de verão. Um cara sussa.
Até hoje ele tem se mantido firme nessa imagem. Nesta manhã, quando entrei no espaço alugado para sua banda ensaiar em Burbank, a turma estava bebendo – chá. E agora ele estava dirigindo meu Cruiser alugado para eu poder tomar notas – muita consideração. Enquanto seguimos pela estrada, Jack me confidenciou que quando começou a fazer shows ao vivo, ele ficava tão assustado que quase desmaiava. Só foi ficar mais confortável depois que ganhou fãs que “dançaram pela primeira vez ao som de ‘Better Together’ ou tocaram On & On durante o parto do filho”. É difícil imaginar Roger Daltrey (vocalista do The Who) tirando suas forças da trilha sonora para a primeira dança de alguém.
Ainda assim, tem alguma coisa em Jack Johnson que parece surpreendentemente – como eu vou explicar? – potente. Para começar, ele está diferente. Vestido com calças marrons, com braços fortes saltando de uma camiseta verde, ele está com o físico de um surfista, diferente do Johnson gordinho que conheci em sua turnê no verão de 2005. E definitivamente mais peludo também, com uma barba e uma cabeleira curtida ao sol, diferente do corte rente que vinha usando nos últimos vinte anos.
Ouvindo seu novo álbum, fica claro que o João de Ferro deu uma remexida nas coisas dentro da cabeça de Johnson. Várias músicas em To the Sea tiram símbolos direto da fábula, principalmente a faixa-título, que o coloca cantando do ponto de vista do Homem Selvagem (“Unlock the pain, and I’ll be here waiting” … “All your walls mean nothing to me. I know you’ll come back, to set us free”/ “Libere a dor, e vou estar esperando” … “Seus muros não significam nada para mim. Eu sei que você vai voltar, para nos libertar”). Então, enquanto seguimos por LA, pergunto a Johnson: qual é esse lance entre você e o João de Ferro? “Estou num ponto na minha vida em que já tive alguns filhos e perdi meu pai no verão passado”, responde ele. “É meu período de transição, onde parte de mim está tentando se segurar às pessoas que estou perdendo, e outra parte está se segurando nessas crianças que estão chegando ao mundo”. Ele encara o tráfego diante do carro. “Estou definitivamente me sentindo mais como um pai”.
UMA HORA DEPOIS, chegamos no QG da Brushfire, que ocupa uma casa velha em West Hollywood que mais parece com a casa de alguém, com uma cozinha bastante utilizada, alguns escritórios em salas que já foram quartos e frisos estilo antigo. Nos fundos fica o “Solar Powered Plastic Plant”, um pequeno estúdio onde Johnson gravou a maior parte do Sleep Through the Static, de 2008, e To the Sea, assim como muitos dos artistas emergentes de sua gravadora. Ficamos falando direto do João de Ferro, passando rápido pelo Papai Noel (um Homem Selvagem incompreendido, de acordo com alguns estudiosos), Admirável Mundo Novo (John o “Selvagem”, é um Homem Selvagem, óbvio) e Joseph Campbell (com quem Johnson aprendeu que a maioria dos mitos recicla os mesmo símbolos e temas universais).
Johnson me contou de um dia quando era garoto em que estava brincando diante da casa de sua família no North Shore de Oahu. Ele e um amigo estavam provocando o cachorro de Johnson com um biscoito de chocolate quando ele “viu um movimento”. Uma onda enorme estava passando por cima dos arbustos e entrava pelo quintal. Ele se virou para correr e viu sua mãe, que estava lavando a roupa no quintal, onde ficava a máquina de lavar. “Eu me lembro de ver o rosto dela se virando para ver a onda”, conta ele. “Parecia câmera lenta, a gente correndo e então a água passou por baixo da casa e pelos lados”. Eles chegaram no quintal de trás bem a tempo de ver uma canoa vir pelo lado da casa e se chocar em uma viga de suporte. “Ficamos parados ali enquanto a onda se dissipava”, continua Johnson. “Por um longo tempo eu me lembro de ir dormir pensando, será que vai vir uma onda e levar a casa embora?” Ele faz uma pausa e depois acrescenta: “Isso não tem muito a ver com nada, mas achei que devia contar, porque isso ficou comigo”.
Mas existe uma ligação. No mito do “João de Ferro”, o Homem Selvagem leva o príncipe pela floresta até a margem de sua fonte mágica. Ele diz ao príncipe para não tocar a água –ele ainda não está pronto –, mas o garoto não consegue resistir. Embora o príncipe tenha falhado no teste, a água o transforma e dá início à sua iniciação no mundo dos homens.
Crescendo no North Shore, Johnson também recebeu suas primeiras lições da água. Seu pai, Jeff, era um cara durão do mar, surfando nas grandes ondas e saindo o tempo todo para mergulhar, velejar e pescar. Criado em Manhattan Beach, na Califórnia, Jeff surfava desde pequeno e saiu da casa dos pais aos 18 para viver com um surfista havaiano mais velho que tinha vindo à Califórnia para ficar perto do Greg Noll e outros pioneiros das grandes ondas. Depois, Jeff foi estudar na UC Berkeley e se casou com sua namorada de infância, Patti, e juntos tiveram um filho (o irmão mais velho de Jack, o Trent). Aos 20 e poucos, Jeff consertou um barco velho e velejou sozinho pelo Pacífico até Maui, e sua jovem família foi encontrá-lo de avião. Os Johnsons fixaram residência no North Shore de Oahu, onde Jeff trabalhava como empreiteiro. Jack foi o terceiro filho, nascido dez anos depois de Trent e sete depois de Pete.
A capa do To the Sea é uma foto de Jeff construindo uma onda de madeira de 6 metros em Berkeley, onde artistas reciclavam madeira que aparecia boiando em todo tipo de criação. Ele terminou sua onda logo antes de içar velas para o Havaí. “Foi sua jornada pelo oceano – sua viagem heróica – que comecei a ver em proporções mitológicas”, explica Johnson. “Eu pensei nisso a minha vida inteira: quando jovem, ele embarcou num barco e velejou pelo oceano. É uma imagem bem forte para se ter do seu pai”.
Em outras palavras, na versão de Johnson do “João de Ferro”, seu próprio pai era o Homem Selvagem que servia de mentor. “Meu pai me levou até a beira d’água e disse: ‘Pode ir, tenha cuidado’”, conta Johnson. “Você precisa sentar lá e decidir quando está pronto”.
“Eu olhava pela janela e ficava vendo o que ele fazia naquelas ondas grandes”, lembra. “Quando criança eu pensava: ‘minha nossa, eu vou ter que fazer isso algum dia?’ E, aos poucos, eu ia para lá quando as ondas estavam na altura do joelho. Depois comecei a surfar com ondas na altura da cintura. De uma hora para outra, você estava surfando em ondas da sua altura. Chega um dia em que você dropa uma onda de 6 metros a meio quilômetro da praia e nem está com medo. Você percebe que acabou de superar um rito de passagem. Tornou-se poderoso em uma situação intensamente poderosa”.
AGORA ESTAMOS BEBENDO CERVEJA em uma mesinha na calçada em frente a uma lanchonete a umas poucas quadras da Brushfire. Na caminhada até lá, Johnson cantou um verso descartado da música “To the Sea,” fazendo várias mulheres caminhando na direção oposta sorrirem e depois darem olhadas de lado como se perguntassem, “Ei, esse não é…?” As palavras falavam mais sobre a história do “João de Ferro”, mas não se aplicavam à sua vida. Johnson não finge que entende a fábula inteira, ou mesmo uma parte do que Bly extrapolou a parir dela. Isso é parte da razão para Johnson colocar a música como a sétima faixa do álbum, e não a primeira, como tinha planejado a princípio. “É a primeira vez que reconto uma história que já existia”, justifica. “Não sei se vai funcionar”.
Os críticos provavelmente vão achar que não. Mas até aí, eles nunca pegam leve com Johnson, normalmente acusando-o de escrever letras fracas e música insípida. Uma crítica na Rolling Stone de Sleep Through the Static disse que a tentativa de Johnson escrever letras mais ambíguas “simplesmente não engrena” e a música “ganharia se fosse um pouco mais corajosa”. Um artigo no The New York Times sobre um show de 2005 no Central Park disse que “metade do show exalou um encanto do sono; a outra metade foi a mesma coisa, mas sem o encanto”. Nas palavras de Johnson: “Aquele foi um show ruim”.
Independente disso, To the Sea com certeza vai vender bastante. Johnson tem um histórico sem falhas de sucesso, vendendo mais de 18 milhões de cópias desde sua estreia em 2001 com o Brushfire Fairytales. Seus três álbuns mais recentes chegaram ao topo da lista dos mais vendidos do iTunes. E embora haja alguns sons novos em To the Sea – os vários teclados de Zach Gill são bastante usados em algumas faixas – ainda é a sonoridade conhecida do Johnson. O único risco real que ele está correndo é o de quebrar uma promessa de nove anos de não escrever músicas que tenham algo a ver com o mar. “Quando fiz meu primeiro disco e todo mundo dizia, ‘É aquele surfista’, isso me fez dizer, OK, eu nunca vou escrever uma música sobre a praia, ou sobre o oceano, nem sobre ondas, nem nada do tipo. E agora este disco tem o oceano, o mar, as marés, as ondas”. Ele dá uma risada. “Acho que senti que estava segurando essas palavras – aqui está tudo que tem a ver com o mar!”
É uma escolha que o deixa mais vulnerável que nunca a paródias. O programa de humor Saturday Night Live (SNL) já fez duas versões do “The Mellow Show with Jack Johnson” (O Show Maluco-Beleza do Jack Johnson”) com Andy Samberg imitando o Johnson como se ele fosse um chapadão tocador de violão que não para de rir numa praia com uma lagartixa de estimação que “pode tanto apertar quanto fumar um baseado” e uma marca de calçados chamada J.J. Casuals que tem tênis que parecem pés descalços.
Quando menciono as paródias do SNL Johnson sorri e diz que ele até falou com Samberg sobre fazer um curta em vídeo digital em que eles cometem um assalto a banco “estilo relax” (eles nunca conseguiram se organizar para fazer o filme). Na visão de Johnson, ter uma projeção bem estabelecida de si mesmo o ajuda a manter sua privacidade. “É muita sorte eu não morar em L.A.”, diz. Do Havaí, ele pode ver de longe “essa caricatura ser construída”. E, às vezes, admite, é bem fácil simplesmente entrar no papel quando se está na frente das câmeras.
Mas o problema é que Johnson não se encaixa mais nesse papel. Uma fase da vida dos homens que “João de Ferro” não menciona é o que acontece depois que seu Homem Selvagem vai embora. Quando Jeff Johnson morreu em agosto passado, centenas de surfistas do North Shore fizeram um tributo a ele com uma reunião na água. Nos fóruns online, velhos amigos escreveram histórias comoventes sobre suas aventuras com o “definitivo homem do mar”. Seus colegas de banda, conta Gill, não esperavam que voltassem ao estúdio de gravação tão rápido depois da morte de Jeff, mas em novembro Johnson chamou todo mundo até seu estúdio Mango Tree Studio, no Havaí. “Acho que trabalhar no álbum o ajudou a processar tudo”, acredita Gill. “Na vida das pessoas tem alguns marcos: perder sua virgindade, se casar, ter filhos”, continua Gill. “A última coisa é quando seus pais se vão. É como se fosse: ‘agora é com você. O que vai mostrar pra gente? O que vai fazer?’”
Jack Johnson tem sua resposta. Ele vai deixar o cabelo crescer. Vai cantar músicas sobre o mar. Vai levar seus filhos até a beira d’água. Ele vai ser um Homem Selvagem.
NOVE ANOS: Jack quebrou uma promessa e escreveu sobre o mar
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2010)