Rolê histórico


RODA E FILMA: Bob Burnquinst, sob o olhar atento da equipe de Vida Sobre Rodas

Por Maria Clara Vergueiro

REUNIR BOB BURNQUIST, Sandro Dias, Lincoln Ueda e Cristiano Mateus numa sala de cinema significa fazer as contas de duas décadas de atitude contestadora, amizade, originalidade, aéreos, manobras e títulos mundiais. O saldo dessa soma de fatores – decisivos para fazer do skate o segundo esporte mais praticado no país hoje – foi traduzido para as telas no documentário Vida Sobre Rodas, dirigido por Daniel Baccaro e lançado no final do mês passado.

A história do skate no Brasil tem na cidade de Guaratinguetá (SP), à beira da rodovia Presidente Dutra, uma espécie de berço. Foi lá que se encontraram esses quatro ícones do skate nacional, em meados dos anos 1980. Por ali passaram também outras figuras lendárias, verdadeiros desbravadores abrindo no peito um caminho possível para se seguir sobre as quatro rodas. Numa das passagens do longa, o skatista norte-americano Cristian Hosoi lembra do impacto de ver em “Guará”, fora dos centros brasileiros, um campeonato com amadores alucinados para andar num bowl “em forma de feijão”, completamente extasiados diante da presença do ídolo Hosoi, que eles viam na capa de uma ou outra revista gringa.

Era época de atitude punk, de passar o skate na cara de quem não via com bons olhos os meninos de apelidos estranhos – Not Dead, Thronn, Léo Kakinho, Formiga, Mauro Mureta, Poisé – circulando pelas ruas das cidades com roupas e cabelos ainda menos convencionais. Era hora de sair com os carrinhos e lutar contra a proibição do skate pelo prefeito de São Paulo Janio Quadros, que alegava que os meninos “atropelavam mulheres e crianças” no Parque do Ibirapuera. O documentário aproveita os depoimentos de veteranos que protagonizaram essas e outras passagens para construir a trajetória que desemboca na explosão dos vôos dos quatro personagens principais do filme.


GRAVANDO: O diretor Daniel Bacaro levou seis anos para editar arquivos antigos e captar depoimentos e rolês dos principais nomes do skate no Brasil

Os empresários do skate das décadas de 1980 e 1990 atuaram na construção de um mercado improvisado. Ao apoiarem as primeiras viagens dos brasileiros para campeonatos internacionais, eles ajudaram a criar ídolos – mas também viram promessas que não se concretizaram. Lincoln Ueda foi o primeiro a escrever o nome do Brasil no placar de uma prova internacional. A quarta colocação era um feito tão impensável que foi comemorado como título. Poucos anos mais tarde, em 1995, Bob Burnquist foi o primeiro brasileiro a levar o título mundial. No filme, o skatista Tony Hawk comenta o fato dizendo que Bob “levou o skate para o seu limite e desenhou o que seria o estilo do século 21”. Em 2001, foi a vez de Sandro Dias, o Mineirinho, engrossar o time de elite dos brasileiros, sagrando-se campeão europeu. Quando tudo indicava que Cristiano Mateus seria o próximo brasileiro campeão do mundo, um acidente de carro o tirou das pistas. O impacto, entretanto, não foi suficiente para tirá-lo de cena, e Cris voltou depois de dois anos, para figurar entre os tops brasileiros.

Para chegar ao produto final, o diretor Daniel Baccaro passou seis anos captando entrevistas e editando o material registrado pelas câmeras VHS de pais dedicados como o de Lincoln Ueda, e as entrevistas e cenas de eventos históricos de programas como Grito da Rua. Baccaro também teve de conciliar as agendas dos ídolos brasileiros e norte-americanos. Cris Hosoi, Lance Mountain e Tony Hawk, três dos maiores nomes do skate nas últimas décadas, são testemunhas do talento brasileiro e servem de referência para mensurar a proporção das conquistas de Bob, Mineiro, Ueda e Cris. “Tem algo ali que os identifica com o jeito de se andar de skate no Brasil”, diz Hawk durante o filme. Vida Sobre Rodas mostra que o Brasil tem uma história própria para contar, com personagens originais, rivalidade, transgressão e ídolos que mudaram para sempre a maneira de rolar pelas pistas e ruas do mundo inteiro.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de dezembro de 2010)