À PROVA DE TUDO
No ar ou no mar, o aventureiro Paul Gaiser já encarou a morte várias vezes. E, pasme, sempre voltou inteiro para contar a história
Depoimento dado a Mario Mele
ESTE SERÁ MEU ÚLTIMO ano nos esportes. Quando eu parar, vou plantar couve. É uma brincadeira que faço, porque sou engenheiro mecânico formado, mas não sei apertar um parafuso. Meu espírito irrequieto até que me ajudou a fazer algumas modificações técnicas dentro de algumas modalidades que pratiquei, mas toda a minha vida eu fui atleta. Fiz dinheiro e nome com isso. E também colecionei acidentes.
Fui um dos primeiros a voar de asa-delta no Brasil, em 1975. Em 1978, éramos 112 praticantes no país. Onze morreram nessa época, principalmente por falta de conhecimento de aerodinâmica e meteorologia. Ou seja, quase 10% da nossa turma. O excesso de entusiasmo e o equipamento, ainda pouco evoluído, colaboraram para esse índice sinistro.
Eu dava aulas de voo no morro do Assalto, em Jacarepaguá, no Rio, e certa vez um aluno me pediu para testar um modelo. Vi que a asa-delta dele não tinha hang loop, aquela fita que se conecta ao piloto. Improvisei uma cordinha e testei com uns puxões. Ela ficou firme – até eu decolar. Assim que levantei voo, o nó se desfez, e eu fiquei pendurado no trapézio, sem nenhum controle da asa. Conforme eu ia me afastando da encosta da montanha, tive que pensar rápido: “Quanto mais tempo eu demorar para me soltar, mais alto será o tombo”. Despenquei de uns 15 metros. Por sorte, caí na parte mais inclinada da montanha, bati no chão e rolei uns 30 metros. Consegui me erguer e ficar de pé, no meio de uma nuvem de poeira, mas logo caí de novo, todo ensanguentado. Desmaiei e só acordei no hospital. Por sorte, não quebrei nada.
No começo dos anos 80, eu trouxe os primeiros ultraleves para o Brasil, e passei a pilotá-los também. Num desses voos, acompanhado pelo fotógrafo Antonio Ribeiro, um problema com o combustível me obrigou a fazer um pouso de emergência dentro do autódromo de Jacarepaguá. Ainda deu tempo de falar: “Antonio, nós vamos sair vivos desta”. O ultraleve capotou logo depois da aterrissagem. As peças que iam quebrando amorteciam o impacto. O ultraleve ficou destruído, e o mais difícil foi nos desvencilharmos dos cabos de aço da estrutura, que estava toda retorcida. Mas nossos corpos ficaram intactos.
Conheci a motonáutica offshore, um esporte de embarcações de alta velocidade, em 1989. Na época, eu tinha me separado da primeira esposa, e o Tulio Rodrigues, grande campeão, achou que eu estava triste e me levou para São Paulo para conhecer a modalidade. Foi a primeira vez que experimentei um barquinho daqueles. Na mesma hora gostei da brincadeira e comecei a praticar. Nesse esporte, para variar, eu não consegui escapar dos acidentes. Inclusive do mais sério da minha vida.
Tinha chovido muito no dia anterior a uma etapa do mundial em Viena, na Áustria. Outra cidade, também às margens do Danúbio, abriu uma comporta e liberou muita sujeira no rio. Lembro-me que larguei em 12º naquele dia. Estava indo bem. Já no 5º lugar, entrei em uma curva a 215 km/h e acertei em cheio um tronco que boiava. Veja só a força da batida: consegui quebrar até o cockpit, considerado inquebrável. Meu capacete também se partiu, e os fragmentos feriram meu rosto violentamente. Felizmente, fui socorrido logo por um helicóptero e estava na mesa de cirurgia 15 minutos depois. Por sorte, fui operado por um dos melhores médicos de reconstrução de face do mundo.
Acordei do coma depois de três dias e vi o estrago no meu rosto: inchado, com mais que o dobro do tamanho. Quebrei todos os ossos da face e fiquei hospitalizado duas semanas em Viena. De volta ao Brasil, dei sequência ao tratamento com o ortopedista Leonardo Metsavaht, que ficou admirado com o trabalho feito pelo médico austríaco. Meu rosto foi inteiramente reconstruído com acrílico.
Como não me recordo do momento exato do acidente, o grande trauma foi assistir ao vídeo depois. Na hora do resgate, algumas pessoas que estavam próximas levam as mãos à cabeça, como querendo dizer: “Nossa! Esse não sobrevive”. Aprendi que há duas coisas que fazem qualquer pessoa se recuperar: uma é nunca parar de sonhar e a outra é ter amigos de verdade por perto.
ACHO QUE VI UM URSO… DE NOVO
O geólogo Robert Miller estava esperando ser apanhado por um helicóptero no Alasca quando foi atacado por um urso feroz – duas vezes
Depoimento dado a Michael Webster
ELE TINHA UNS OLHINHOS QUE PARECIAM CONTAS DE VIDRO. Nunca vou esquecer aqueles olhos. Ele não rosnou nem uma vez, nem se ergueu nas patas traseiras. Tudo que aquele urso queria era acabar comigo.
Foi incrível a velocidade com que ele atravessou os quase 10 metros que nos separavam. Eu tinha um Magnum 357 e atirei na direção de seu peito quando ele estava a apenas 1 metro de mim, mas acho que o tiro passou entre as pernas. Assim que disparei, me virei e deitei com o rosto voltado para baixo, tentando manter minha cabeça longe dele.
Onde moro, em Anchorage, no Alasca, eu havia participado de um curso sobre como resistir a um ataque de ursos. Acredito sinceramente que aquelas informações todas me ajudaram a manter o estresse sob controle: deite-se de barriga para baixo, com os pés levemente separados para que o urso não possa virar você; proteja o pescoço com uma das mãos. Pude ouvir minhas calças sendo rasgadas. Dava para sentir minha carne sendo cortada. Mas aí tudo acabou. Cinco segundos de mastigada dá para aguentar. Não senti dor nenhuma.
O urso começou a se afastar, já que eu havia sido neutralizado – em outras palavras, não estava me movendo. Mas não esperei o suficiente antes de me virar e sentar. Quando vi, ele estava mostrando os dentes e as garras enquanto avançava pela tundra para me pegar. Parecia muito maior. Era a coisa mais assustadora que alguém pode imaginar.
Ainda estava com minha arma. Mirei com cuidado e atirei. Não sei se o acertei. Atirei de novo. Não me lembro de mais nada até ele me balançar pelo cotovelo direito. O bicho destroçou uma parte do meu úmero. Detonou minha orelha. Fiquei com uns buracos no rosto, que escondo sob a barba, onde ele me enganchou e depois puxou. Ah, o urso me acertou no peito também. Ao mesmo tempo que fazia isso, pisava no meu joelho. Existem quatro ligamentos no joelho humano. Ele arrebentou todos.
Não consegui abrir meus olhos dessa segunda vez, não iria aguentar mais um ataque. Por isso fiquei lá deitado uns cinco minutos, esperando até ter certeza de que ele já tinha ido embora, antes de olhar ao redor e me sentar. Minhas calças estavam encharcadas de sangue. Peguei o rádio no meu bolso e chamei o helicóptero, dizendo apenas “mayday, mayday”, mas não obtive resposta.
Fiquei lá uns 20 minutos até que ouvi uns ruídos vindos do aparelho. Tentei de novo: “Mayday, Mayday, um urso me pegou”. O piloto respondeu: “Já estou indo”. Ele sobrevoou em círculos para se assegurar de que não havia nenhum urso ali e depois chamou outro geólogo, que também serve de médico na região.
Não senti muita dor até ter tempo suficiente para pensar nisso. Minha artéria femoral estava exposta quando o médico chegou. Ele limpou os ferimentos e, caramba, como isso doía. Ao borrifar água com uma seringa nos machucados, parecia que ele jogava fogo e eletricidade em mim. Fui colocado no helicóptero, que me levou de volta ao acampamento. Menos de uma hora depois, o helicóptero de emergência chegou de Anchorage para me levar embora.
Como sou uma pessoa muito ativa, o processo de recuperação está sendo um saco. Os médicos esperam que eu fique 100% logo mais. Pelas minhas contas, conseguirei chegar a uns 98%. O que não é tão mal assim.
UM CORPO QUE CAI
O carioca André Edwald tinha tudo e mais um pouco para ser recordista em skysurf. Até que, a 5 mil pés do chão, ele despencou de cabeça. Quando acordou, era outra pessoa
Depoimento dado a Maria Clara Vergueiro
COMECEI EM 1996 FAZENDO salto duplo, em Campinas. Eu tinha servido o Exército e me sentia muito preparado para me inscrever em um curso para aprender a saltar solo. Minha mãe tinha medo, era contra, mas pintou um convite e eu fui ver como era. Fiz o primeiro salto em Resende, no Rio, naquele mesmo ano. Não dá para explicar em poucas palavras a indescritível sensação de um salto sozinho. Éramos eu e dois paraquedistas experientes, um de cada lado, só acompanhando meu vôo. ]
Quando eu estava com 350 saltos, amigos do skysurf começaram a me incentivar a usar uma prancha presa nos pés durante a queda. É como pegar uma onda imaginária no ar, a uma velocidade de uns 300 km/h.
Comecei a gostar da ideia e depois de fazer alguns saltos de skysurf eu já tinha um novo plano. Queria saltar com a prancha, pousar numa montanha de neve, tirar o paraquedas e descer fazendo snow. Com isso na cabeça, e para melhorar meu desempenho com a prancha, fui para Eloy, em Orlando, nos Estados Unidos, para fazer um curso de skysurf de 40 saltos. Eu tinha só quatro saltos com prancha quando fui fazer o curso. Estava curtindo muito a experiência. No meu penúltimo salto, no último dia de viagem, saí do avião e fui fazendo manobras até chegar aos 5 mil pés, altitude em que eu precisava abrir o paraquedas. No momento de acioná-lo, o corpo tem de se inclinar para frente, mas eu estava tão empolgado com as manobras que assumi uma posição errada. O paraquedas principal não abriu perfeitamente e então tentei o reserva. Incrivelmente, este também não funcionou. Comecei a rodar no céu e a cair muito rápido, sem controle, até parar no telhado de uma casa, onde fiquei preso no forro.
O que se seguiu foi surreal. O dono da casa pensou que tivesse acontecido uma explosão de gás na cozinha e chamou a emergência. Quando me acharam ali, eu estava respirando com muita dificuldade. Se demorassem mais dez minutos, teria morrido. Fizeram uma traqueostomia, no telhado mesmo, e me levaram de helicóptero para Orlando.
Fiquei 21 dias em coma no hospital e depois mais dois meses em tratamento. Voltei para o Brasil ainda inconsciente, mas já fora do coma. Os médicos disseram que eu nunca mais voltaria a falar ou andar. Acredite se quiser: não quebrei nenhum osso do meu corpo. Porém o impacto da queda lesionou o tálamo esquerdo do meu cérebro, a região que comanda as funções do lado direito do corpo, como memória e fala. Eu não me lembro de nada do acidente, de um dia antes até um mês e meio depois. Tudo o que sei sobre isso foi o que me contaram. Por isso não tenho grandes traumas.
Assim que cheguei ao Brasil, fiz todos os tipos de terapias possíveis: fisioterapia, hidroterapia, fono, acupuntura e psicoterapia. Minha recuperação foi surpreendente. Dois meses depois, eu já estava subindo de bike a Vista Chinesa, no Rio. Fiz também um salto duplo, que repeti uma vez mais e depois parei. Não tenho mais vontade de me arriscar.
Minha sensação é de que passei a vida me preparando para esse episódio. Na época do curso de skisurf, eu treinava também para o EcoChallenge. Estava no auge da minha forma física. Se não tivesse rolado o acidente, teria outra vida. Talvez tivesse me transformado em um nome de destaque do skysurf no Brasil. Sempre haverá em mim uma eterna nostalgia.
Por outro lado, há aspectos da minha personalidade que são bem melhores hoje. Tenho uma filha linda. Pedalo, corro, nado, pratico lutas. Muita gente me considerava, naquela época, um cara meio arrogante. Eu tinha tudo mesmo: era bonitão, me formei em direito, advoguei em um dos maiores escritórios do Rio. Hoje eu sou uma pessoa mais humilde, pois aprendi na marra a apreciar novos valores. Mudei não apenas a postura, mas meu jeito de encarar vida.
QUANDO O BURACO É MAIS EMBAIXO
O escalador curitibano Irivan Gustavo Burda só queria escalar sua montanha preferida. Até que uma greta traiçoeira cortou seu barato
Depoimento dado a Gustavo Ceratti
APAIXONEI-ME PELO MAKALU EM 2002. Localizada na fronteira entre o Nepal e a China, a 8.463 metros de altitude, é a quinta maior montanha do mundo – e também uma das mais difíceis de ser escalada. Caí de amores por ela quando subi o Lhotse, o quarto pico mais alto do planeta (8.516 metros), de onde pude apreciar toda sua beleza, desde a base até o topo. Cinco anos depois, tive a chance de desbravá-la, quando me lancei em uma expedição pelo Makalu com mais três pessoas: um sherpa, um cozinheiro e o alpinista paranaense Waldemar Niclevicz.
No começo da jornada, montamos as tendas no campo 1. O terreno era complicadíssimo, resultado de uma mistura perigosa de gelo, neve e pedras, por isso só conseguimos chegar ao campo 2 em nossa quarta tentativa. Tínhamos energia e empolgação de sobra para chegar ao cume, mas o clima não estava a nosso favor. Decidimos voltar ao campo base para esperar por dias mais propícios. Como éramos a única expedição no Makalu naquela temporada, resolvemos guardar parte do equipamento no campo 1, assim não teríamos que carregar cadeirinhas, cordas, grampos e estacas de lá para cá durante nosso penoso processo de aclimatação. Foi uma ótima estratégia, pois pudemos retornar para o campo base levando apenas uma piqueta nas mãos.
Mas o destino decidiu nos pregar uma peça. Em uma parte plana do glaciar onde caminhávamos, nosso sherpa andava na minha frente e, depois dele, vinha o Waldemar. Eu seguia os passos dos dois quando, de repente, o chão se abriu debaixo de mim. Foi como se uma placa de vidro tivesse estourado sob meus pés.
Caí em uma greta até então completamente tapada pela neve. Ainda bem que meu reflexo foi rápido: levei apenas alguns segundos para me dar conta de que despencava em uma gigantesca cratera, e fiz uma força desgraçada, com os pés e as costas pressionando as paredes da greta, como se estivesse subindo uma chaminé, até conseguir parar a queda. Minha sorte foi que o buraco tinha o tamanho exato do meu corpo quando sentado com as pernas esticadas.
Devo ter caído uns cinco metros antes de me travar naquela incômoda posição. A greta era tão grande que eu não conseguia ver o fundo. De onde eu estava, podia enxergar uma ponte de gelo uns 30 metros para baixo. Era azul, muito azul, e acho que cruzava o glaciar de ponta a ponta. Fora isso, só havia um imenso vazio aterrador. Em um momento de muita adrenalina, pulei para uma ponte menor que ficava ali perto. Não me pergunte como fiz aquilo. Só sei que me joguei com todas as forças que tinha, esperando que meus companheiros notassem meu sumiço. Porém, quando eles perceberam a enrascada e vieram em meu socorro, constataram que não tinham uma só corda que pudesse me resgatar. Todo nosso equipamento estava no maldito campo 1, já bem longe de onde eu tinha desabado. Jamais poderíamos imaginar que corríamos tanto risco logo naquele trecho, tão perto do campo base.
Foi aí que o sherpa apontou para a fita que prendia a mochila a sua testa – na tradição local, quase nenhum deles carrega equipamentos nos ombros, pois preferem sustentar o peso com a cabeça. Felizmente, o Waldemar possuía uma fita tubular, que emendou com a do sherpa e jogou até mim após colocar um mosquetão na ponta. Eu escalei em chaminé até alcançá-la, passei-a por baixo da alça da minha mochila e dei-lhe um nó cego.
Dentro da greta, havia milhares de estalactites. Um cenário lindíssimo de se apreciar se eu não estive em situação tão absurda. Não me lembro direito o que houve, mas derrubei um desses blocos de gelo na minha própria cabeça. Devo ter encostado sem querer em uma das estalactites. Com o impacto, o gelo cortou meu rosto inteiro, abrindo meu nariz, testa e boca. Perdi os sentidos na hora, caindo novamente. Mas o Waldemar e o sherpa me seguraram pela alça da mochila. Puxaram-me tão rápido que eu saí do buraco quase sem perceber. Se por acaso a alça da mochila tivesse arrebentado, eu não estaria aqui para contar essa história.
Voltei ao campo base com uma dor insuportável nos pés, provocada por pressionar as pernas contra a parede de gelo. Mas não desisti de chegar ao ponto mais alto do Makalu. Uma semana depois do acidente, lá estávamos nós de novo tentando realizar nosso sonho, agora sem a ajuda do sherpa. Dessa vez, chegamos até o campo 3, o último antes do cume. Mas um mar de neve que cobria a montanha acabou com nossa alegria, depois de tanto esforço e sobressaltos. Vai entender os mistérios de uma montanha…
TINHA UMA ONDA NO MEIO DO CAMINHO
Depoimento dado a Matt Higgins
EU TINHA 16 ANOS E ESTAVA SOZINHA no sul do oceano Índico, exatamente a meio caminho de me tornar a pessoa mais jovem a fazer uma viagem solo ao redor do mundo. Meu irmão Zac batera o recorde no ano anterior, quando tinha 17. E, se ele conseguiu tal proeza, eu também conseguiria.
Quando se está tão ao sul desse oceano, é de se esperar que o tempo ruim dê as caras uma hora ou outra. Mas meu iate de 40 pés, o Wild Eyes, estava agüentando bem as ondas.
Cerca de três semanas depois de deixar a Cidade do Cabo, na África do Sul, veio a esperada tempestade. Paredões gigantes de água apareceram o dia todo. O barco foi derrubado quatro vezes, mas, graças a sua pesada quilha, acabou se endireitando sozinho. A noite cai muito cedo quando se está nessa região; às 4 da tarde, já estava escuro. Uma hora e meia depois, a tempestade tinha amansado um pouco, e aproveitei para ligar para casa. Eu havia tido alguns problemas com o motor, e meu pai me ajudou a consertá-lo. Então a ligação caiu de repente. Coloquei meu telefone numa bancada e, enquanto estava fechando a tampa que protege o motor, fui atingida por uma onda enorme.
Voei pela cabine e bati a cabeça. Perdi a consciência por um momento. Quando recuperei os sentidos, me vi sentada no teto, cercada por 50 centímetros de água. Estava escuro como breu. Objetos caíam de todos os lados. Depois de 20 segundos, o barco voltou aos poucos à posição normal.
O mastro tinha sido arrancado. Deu para sentir que ele não estava mais lá assim que o barco se endireitou. Quando se perde um mastro, a primeira coisa que se pensa é: “Ok, vou fazer uma gambiarra”. Cortei algumas cordas que estavam bloqueando uma porta e fui ver se o casco tinha sido danificado. O mastro de madeira estava balançando na água; a retranca (uma das partes que compõe o triângulo que dá sustentação à vela), também feita de madeira, tinha se partido ao meio. Não sobrara nada para eu criar minha gambiarra. Vestida com jeans e camiseta, sentei na parte de fora do convés por alguns minutos, pensando no que poderia fazer. Ondas caíam sobre o barco sem parar. Eu tremia de frio e medo.
Lá dentro, meus dois telefones por satélite tinham sido molhados e entrado em curto. Eu sabia que acionar meu dispositivo de emergência iria desencadear uma baita trabalheira para o pessoal de casa. Permaneci sentada, encharcada, ainda tonta e enjoada da queda, pensando no que aconteceria se eu apertasse aquele botão. Finalmente apertei. Foi como admitir minha própria derrota. Acionei também um sinalizador de emergência especial, para que soubessem que não se tratava de um acidente grave.
Minha preocupação mais urgente era o mastro, ainda pendurado ao barco por cordas, que poderia fazer um buraco na lateral do casco. Sabia que, se eu tentasse cortar as cordas tonta como eu ainda estava, havia grande chance de eu acabar na água. Deixei o plano de lado, pelo menos durante aquela noite.
Não consegui dormir. Tinha um pesadelo atrás do outro. Pela manhã, a retranca tinha começado a fazer um buraco no compartimento de água. Achei minha serra e engatinhei até o convés. Não havia muito onde se segurar, e o barco estava balançando para burro. Eu me amarrei em uma alça que achei pelo caminho e comecei a serrar. Sempre que avistava uma onda grande se aproximando, eu me desamarrava e voltava correndo para a cabine.
Eu serrava e rezava. Dez segundos depois de começar a rezar, um grande avião passou no céu. Corri para a cabine e liguei o rádio. A voz estava falhando muito, mas deu para entender que chamavam “Wild Eyes, Wild Eyes.” Até que respondi: “Aqui é o Wild Eyes”. Foi quando soube que o barco de resgate estava a 24 horas de distância.
Terminei de cortar as cordas que prendiam o mastro. Quando a retranca deslizou para a água, ela arrebentou a antena de comunicação VHF. Vinte e quatro horas depois, liguei o rádio, esperando o barco de emergência me chamar. Três horas depois, nada. Estava começando a ficar preocupada quando outro avião passou. Dava para ouvir eles me chamando, só que não podiam me escutar. Comecei a disparar sinalizadores.
O barco de resgate apareceu do nada. Pensei: “Minha nossa, de onde veio isso?”. Era um barco de pesca francês. Eles se aproximaram e baixaram um bote salva-vidas na água. Embarquei nele, que me levou até a embarcação. Havia uma escada comprida que eu supostamente deveria escalar, mas quando eu estava prestes a subir nela surgiu uma onda tão grande que o bote foi levantado até a altura dos tripulantes, que aproveitaram para me puxar a bordo.
Um dia vou velejar ao redor mundo, solo, sem paradas e sem ajuda. Não preciso fazer isso já. Por enquanto vou terminar a escolar e descolar uma carteira de motorista, essas coisas normais.
Preciso me manter ocupada. Sonho acordada quando deveria estar fazendo trabalhos para a escola. Sempre que fico entediada, começo a pensar no barco.
MANOBRA DO DESTINO
Kevin Pearce era o maior rival de Shaun White nas Olimpíadas de Inverno. Um acidente durante os treinos o tirou da disputa e redefiniu para ele o sentido de vencer na vida
Depoimento dado a Maria Clara Vergueiro
MEU ÚNICO PENSAMENTO NO ANO DE 2009 era ganhar a medalha de ouro de snowboard nas Olimpíadas de Inverno. Para isso estava me dedicando como nunca. Treinava todos os dias, não desgrudava da rampa de snow, tentava mil manobras diferentes. Além do primeiro lugar, outro objetivo poderoso me dava energia: queria vencer Shaun White [maior nome do esporte atualmente]. Naquele momento, não ser o primeiro significava, para mim, estar em último. Não queria ser o segundo ou o terceiro. Queria ganhar. Sentia que estava no auge da minha forma física, dando o máximo de mim nos treinos. Tinha certeza de que derrotaria meu maior adversário.
Só que aí veio o fatídico dia de 31 de dezembro. Não me recordo de nada do que se passou, e os médicos dizem que provavelmente eu nunca mais vou me lembrar. O que ficou na minha memória foi apenas a noite anterior ao acidente, em que comemorei num bar o aniversário de 21 anos do meu amigo Jack Mitrani, snowboarder com eu. Sei também que aquela semana foi ótima: estava feliz, focado, tinha tudo preparado para o campeonato mundial dali a algumas semanas. Mas então caí durante um treino na rampa. Não tenho ideia do que aconteceu e é ainda estranho ouvir os relatos das pessoas sobre o que rolou comigo. Minha família me descreveu a chegada ao hospital e me contou que a certa altura eu tinha uns 20 tubos espalhados pelo corpo para me manter vivo.
Existem imagens gravadas daquele treino, mas eu preferi não assistir. Se eu não estivesse de capacete, certamente teria morrido. Dizem que eu estava no meio de uma manobra quando bati a cabeça um pouco acima dos olhos na borda do pipe. A queda em si não foi nada fora do comum, só que bati a cabeça de um jeito tal que lesionou gravemente o cérebro.
Sinto que tive azar, num primeiro momento, e depois sorte, no segundo, por ter sobrevivido. Acho louco pensar que tudo pode mudar tão rápido na nossa vida, em uma questão de segundos. Eu estava tão seguro, mas de repente algo saiu errado.
Fiquei duas semanas em coma e outra inconsciente. Passei um mês e meio no hospital e dois meses e meio num centro de reabilitação. Por causa da lesão cerebral, minha percepção de tempo ficou alterada. Cada semana parecia um mês, o que me fez sentir como se meses tivessem passado desde o acidente. A parte boa é que, na minha recuperação, eu estava em um dos melhores centros de tratamento do mundo. Dou muito valor à equipe que cuidou de mim. Precisei reaprender a falar e a andar, fiz trabalhos específicos para recuperar a coordenação e os movimentos. No fim das contas, foi desafiador. Eu precisava daquilo para voltar a ser o que era e, por isso, canalizei toda a minha determinação e o meu foco naqueles exercícios.
Ainda tenho que trabalhar a memória, o equilíbrio e a visão, que ficou bem comprometida em um dos olhos, obrigando-me a usar uns óculos de lente enorme. Tudo evolui devagar e depende de persistência e paciência. Na última semana recuperei a carteira de motorista, o que me dá mais autonomia. Este mês, volto para minha casa na Califórnia, depois de um tempão com meus pais, em Vermont. Nunca vou esquecer do carinho com que minha família e amigos me receberam e cuidaram.
Em janeiro eu fui assistir, pela primeira vez depois do acidente, a uma competição de snowboard, durante os X Games. Foi maravilhoso voltar a me envolver de alguma maneira nas competições e estar cercado de amigos. Todo mundo me apoiou muito ao longo do último ano e foi sensacional poder retribuir e torcer, depois de ter tido todos eles torcendo por mim por tantos meses.
Eu ainda tenho este ano de recuperação pela frente, mas talvez em 2012 eu seja capaz de fazer snowboard de novo. Provavelmente nunca mais poderei competir, nunca mais voltarei a ser um atleta profissional do nível que era. Isso pega forte em mim. Mas prefiro pensar em todas as outras coisas que ainda poderei fazer. Competir sempre será algo perigoso, e não quero correr esse risco de novo. Minha maior oportunidade foi ter conseguido sobreviver. E essa, eu não posso desperdiçar.
NAS MÃOS DE DEUS
Durante as enchentes que devastaram a região de Nova Friburgo em janeiro, o tenente Francisco Leal viu-se diante do maior desafio de sua carreira
Depoimento dado a Mario Mele
MEU NOME É FRANCISCO RISSO SCHUENCK LEAL, tenho 25 anos e sou 2º Tenente do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro. Estou há cinco anos na corporação e atualmente sirvo no 6º Grupamento de Bombeiros Militar (GBM), em Nova Friburgo. No último dia 11 de janeiro, nossa equipe estava de plantão no quartel e recebeu diversas solicitações rotineiras, como um pedido de socorro em acidente de trânsito.
Por volta das 4 da tarde, no entanto, fomos acionados para atender uma ocorrência grave: um prédio residencial de três andares, onde moravam cerca de dez famílias, tinha desabado. Resgatamos duas pessoas, e os trabalhos de ajuda e remoção dos escombros se estenderiam por toda a tarde e noite. Choveu naquele dia e no anterior, mas o problema ali era outro. Aquela era uma construção irregular que provavelmente sofrera um colapso em sua estrutura, não necessariamente causado pelo mau tempo.
Lá pelas 9 da noite, enquanto nossa equipe continuava os trabalhos no edifício, a chuva voltou forte. Duas horas depois, a Seção de Controle Operacional, que recebe os chamados de emergência, entrou em contato comigo, informando que diversos pontos da cidade haviam inundado e que pessoas estavam completamente ilhadas, precisando de ajuda. Desloquei-me com uma das equipes para atender a esses chamados.
Devido ao excesso de ligações, em pouco tempo já não havia mais grupos de resgate disponíveis. Além disso, ruas e avenidas da cidade inteira se transformaram em verdadeiros rios. Quase todos os acessos estavam comprometidos. Era perigoso até para quem estava a pé. Socorremos uma senhora, de aproximadamente 70 anos, que estava sozinha em casa, com a água batendo na altura do peito.
A energia elétrica acabou em Nova Friburgo e a rede de telecomunicações também ficou inoperante. Tentávamos retornar ao quartel quando encontramos uma barreira: um barranco deslizou e levou um galpão e parte de uma residência. O soldado Victor Lembo e o sargento Marcos Antonio Verly, que moravam nas proximidades e estavam de folga naquele dia, haviam se juntado a outros moradores para tentar retirar um homem e seu filho, um bebê de sete meses, debaixo dos escombros. Para ajudar na situação, estacionamos nossa viatura apontando os faróis para a cena. Decidimos que tentaríamos chegar às vítimas por duas vias de acesso. Cada grupo iria por um lado da casa. Cortamos uma grade e entramos na residência. Chovia incessantemente, com raios e trovões, e nossa equipe retirava os escombros e procurava manter comunicação com as vítimas para acalmá-las. De repente ouvimos um estrondo. Alguém gritou: “Tá caindo, tá caindo!”.
Instintivamente, em meio aos berros, corremos para a rua, tentando escapar da avalanche de lama e entulho que vinha em nossa direção. Foi aterrorizante. Não consigo descrever o barulho e o tremor causados pela massa de terra que descia arrastando tudo o que encontrava pela frente. Pensei que fosse o fim do mundo. Se não tivéssemos cortado aquela grade, provavelmente não teríamos escapado.
Rapidamente localizamos dois colegas, presos nos destroços, e começamos a chamar pelos outros que tinham entrado pelo outro lado da casa. Não tivemos respostas de Lembo, Verly e do soldado Flávio Freitas. Com o tornozelo machucado, rastejei e ajudei a retirar o cabo Ronald Lopes, que estava muito ferido e ainda em área de risco.
Minutos depois, escutamos novamente o mesmo barulho. Outro deslizamento deixou parte de nossa viatura soterrada. Seria uma imprudência permanecermos ali e, portanto, ordenamos imediatamente a evacuação total da área. Junto com os moradores, nos protegemos no coreto de uma praça e somente horas mais tarde soubemos das proporções do desastre sofrido pela região serrana do Rio de Janeiro, o maior da história do Brasil decorrente de causas naturais.
Mesmo machucado, continuei trabalhando nas buscas por sobreviventes. O pai e o bebê de sete meses conseguiram ser resgatados com vida. Meus companheiros Lembo, Verly e Freitas não tiveram a mesma sorte. Encontramos seus corpos alguns dias depois. Foi pelas mãos de Deus que sobrevivi.
OVOS FRITOS
Porque às vezes seu pior inimigo é você mesmo
Por Bob Shacochis
ESTA É UMA HISTÓRIA CURTA, absurdamente cruel, que termina com um terrível uivo. Seu palco é uma floresta sombria na península de Kamchatka, no extremo oriente da Rússia, um local inóspito conhecido por seus vulcões ativos, mosquitos que formam imensos enxames e, o mais assustador, os ursos. A história inclui um astronauta, uma penca de ursos cinzentos mais numerosos que em qualquer outro lugar do planeta, uma esposa que se diverte com a zica alheia e o horror inimaginável que caiu sobre este pobre narrador.
Vamos por partes: eu vim a Kamchatka para entrar em contato com a máfia russa, que, dona de um espírito extremamente empreendedor, havia começado a roubar rios inteiros, pescando salmão selvagem com redes e enviando caviar ilegal a Moscou. Minha mulher tinha vindo comigo, pois estava obcecada em capturar uma das lendárias trutas gigantes de Kamchatka, que podem chegar a mais de 10 quilos.
Tínhamos um dia livre antes de nossa expedição se lançar nas terras selvagens. Subimos na picape de nosso guia e viajamos uma hora para o norte, da capital, Petropavlosk, até um parque nacional na base de um vulcão que parecia o monte Fuji. A estrada terminou em um grupo de casas de campo perto de um rio agitado. A sede do parque, claramente marcada em nosso mapa, não existia na vida real, e o parque em si, do lado oposto do rio, se resumia a uma vasta e densa floresta de coníferas onde só se podia chegar atravessando uma ponte suspensa.
“Vamos dar uma caminhada”, sugeri. Minha mulher concordou. Já nosso guia, Rinat, rejeitou totalmente a ideia. “Com certeza seremos devorados por ursos”, declarou, sentando-se na picape à espera do eventual resgate de nossos corpos semidevorados. Como esta história também conta com a participação especial de uma latinha de spray de pimenta enfiada no bolso esquerdo da minha calça, achei que não seria irracional nutrir uma certa despreocupação em relação aos ursos.
Minha esposa e eu atravessamos a ponte e seguimos por uma estradinha rústica que levava às profundezas da floresta. Continuamos caminhando na mata, curtindo a solidão, até que uma van azul enferrujada da época da União Soviética parou do nosso lado. O motorista, um homem magro de cabelos loiros, balançou sua cabeça para nós, fazendo cara feia, e disse alguma coisa em russo. Sua esposa e filho adolescente concordaram com expressão séria.
“Não entendo russo”, eu disse, e o homem passou a falar em inglês. “Estão loucos? Os ursos vão devorar vocês. Não se pode andar por aqui sem uma arma grande.” “Está tudo bem”, respondi. “Tenho um spray de pimenta.” Ele riu e acrescentou: “Para quê? Para fazer o urso chorar antes de te comer?”
Dez minutos depois, topamos com eles mais uma vez, estacionados em uma clareira, cada um com uma carabina e um balde. Novamente o motorista nos deu um sermão. Até que, suspirando, afirmou: “Ok, já que estão aqui, venham com a gente”. Estavam a caminho de uma campina para apanhar frutinhas. “Deste lugar dá para se ter uma excelente vista do vulcão”, disse o motorista. Perguntei como aprendera inglês, e ele revelou que era um astronauta em férias com a família.
Seguimos com eles até um rio agitado com uma árvore caída servindo de ponte. O tronco tinha o tamanho exato para se passar andando cuidadosamente em fila única. Minha esposa olhou as corredeiras abaixo e disse que não atravessaria o rio conosco. O astronauta insistiu: “Não desistam, lá do alto dá para ver o vulcão”. Falei para minha esposa que voltaria logo e acompanhei o russo. “Só mais dez minutos”, disse ele. De repente saquei que eu não podia abandonar minha esposa no meio do nada, por isso decidi voltar correndo pelo mesmo caminho.
Assim que dei alguns passos no tronco para cruzar o rio, perdi o equilíbrio e, por instinto, me abaixei um pouco para não cair. Tenho uma imagem visual permanente do que aconteceu em seguida – minha esposa esperando do outro lado, sua expressão divertida se transformando em espanto enquanto me observava, equilibrado sobre o tronco, puxando um objeto do bolso que parecia uma granada e jogando-o nas corredeiras.
Ao me agachar para recuperar o equilíbrio, acionei sem querer a latinha de spray de pimenta, e o pino do aerossol ficou travado na posição aberta, mirando direto para minha virilha. Imagine um pequeno motor a jato nas suas calças. Agora imagine esse motor a jato, de pimenta, em velocidade máxima. Como suportar um ferimento tão sério e potencialmente fatal, como aliviar o sofrimento? Só as enfermeiras mais bondosas e abnegadas saberiam como.
Quando finalmente parei de uivar, minha esposa estava tendo dificuldade em ficar séria, observando-me caminhar com as pernas abertas, como um pato. Talvez assistir a um cara flagelar seu próprio saco seja divertido para as mulheres. Senti como se tivesse cavalgado pelado um rinoceronte por 50 quilômetros. Para piorar, minha esposa ficou me lembrando que o cheiro do spray de pimenta é atraente para os ursos, como se fosse uma iguaria mexicana – só que, nesse caso, seriam “ovos fritos” picantes e ultra bem-passados.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2011)
Ilustrações Rodrigo Yokota
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