Corte de mestre


ENCURRALADO: James dando duro durante as filmagens de 127 Horas
(Foto: Chuck Zlotnick)

Por Aron Ralston

ESTA É UMA DAQUELAS PERGUNTAS CLÁSSICAS que sempre aparecem em jantares ou festinhas entre amigos: que ator interpretaria você num filme sobre a sua vida? Só que eu nunca pensei que um dia fosse me ver sentado num sofá, ao lado de James Franco, numa suíte do hotel Four Seasons em Los Angeles, mostrando a ele como cortar fora o próprio braço.

Em janeiro de 2010, fui apresentado a James pelo britânico Danny Boyle – o diretor de Trainspotting, Quem Quer Ser um Milionário? e, agora, de 127 Horas, um filme sobre os seis dias em que fiquei preso num cânion estreito em Utah, nos Estados Unidos (em cartaz no Brasil desde fevereiro). O ator desembrulha seu almoço enquanto o parceiro de Danny no longa-metragem, o produtor Christian Colson, se prepara para nos mostrar meu vídeo-testamento: um diário de uma hora de duração que gravei entre 26 de abril e 1º de maio de 2003, enquanto um bloco de pedra de 400 quilos prendia e esmagava minha mão. James devora uma salada de nozes e espinafre, arrematando tudo com goles generosos de Coca-Cola light. Percebo, enquanto o observo comendo, que ele já está tentando eliminar uns quilos extras para retratar meu penoso processo de inanição.

Imediatamente uma versão minha com 27 anos preenche a tela. “São 3h05 da tarde de domingo”, fala meu próprio fantasma. “Este é o marco das 24 horas do meu aprisionamento no cânion conhecido como Blue John. Meu nome é Aron Ralston…” Eu já havia visto o vídeo, e mesmo que ele me lembre do momento em que aceitei minha morte iminente, nunca me deixou realmente incomodado. Para outros, especialmente minha mãe, o impacto emocional é intenso. Perturbador, até. Olho de vez em quando para James enquanto ele absorve minhas despedidas, agradecimentos e atualizações sobre a aproximação da morte. Quando explico na fita que eu havia recorrido a minha própria urina para me hidratar, adicionando com nojo que “isso não é nenhum refresco”, o rosto que já estampou campanhas da Gucci ri do meu humor negro. Danny dá um pause no vídeo toda vez que James interrompe com dúvidas. “Em que altura seus ossos se quebraram?”, pergunta. “Alguns centímetros acima do pulso, aqui.” “Foi onde você começou a cortar?” “Isso, na parte de dentro, aquela que estava mais longe da parede.”

É mesmo surreal essa história de tentar reproduzir minha experiência para um ator que, mais tarde, irá reproduzi-la a outros. Enquanto faço uma mímica de como os ossos do meu braço foram quebrados por uma pedra invisível flutuando por cima da mesinha de café, as espirituosas sobrancelhas de James se arqueiam e levantam na sua testa, como plumas que enfeitam drag queens. Essas sobrancelhas facilmente ganhariam um concurso de tango na Dança dos Famosos. Perco minha concentração e caio na risada. Será que alguém poderia domar essas duas coisas? Não dá para trabalhar assim!

Todo o processo do filme, na verdade, foi muito estranho. E-mails atenciosos de produtores começaram a chegar alguns dias depois do meu resgate, enquanto eu ainda estava no hospital. Dentre eles havia uma nota de John Smithson, o produtor britânico por trás do documentário Tocando o Vazio, que, ao final, ficaria encarregado de levar meu livro, Between a Rock and a Hard Place (sem lançamento em português), a vários financiadores e diretores. Um deles foi Danny Boyle.

Quando nos encontramos pela primeira vez num café na cidade holandesa de Utrecht em 2006, fiquei impressionado com a dedicação de Danny. Ele havia grifado, anotado, colado post-its e dobrado orelhas no meu livro até a beira da ilegibilidade. Tomando um espresso, Danny descreveu sua fascinação com minha história, mesmo ele não sendo um amante da natureza e nem tendo muito interesse em histórias de aventura. O que o atraiu de fato foram os desafios inerentes de fazer um filme de ação com tão pouca ação. Um cara preso em um só lugar. Uma hora sem diálogos com ninguém. Nada de narração. Obviamente não seria uma aventura tipicamente hollywoodiana.


MAKING OF: James conversa com Aron no set
(Foto: Kurt Markus)

NA VISÃO DE DANNY, o filme seria algo mais “baseado em” do que uma “história real”. Levou um tempo até a gente se entender sobre isso, mas depois ele, John e eu entramos num consenso e finalmente começamos a trabalhar no roteiro a sério, em 2009. Ao longo do verão, Danny fez e refez quatro roteiros e, a cada passo, eu lhe fornecia um extenso feedback. No começo, eu resistia a qualquer desvio dos fatos. Minha esposa, Jessica, me aconselhou o desapego, mas eu ainda lutava. Quando chegava uma nova versão, eu passava horas a fio marcando as 90 páginas, resmungando coisas do tipo: “Por que diabos uma manada de cavalos desembestados saltaria sobre o cânion onde eu estava preso?”.

Após alguns meses de idas e vindas, Danny trouxe para a equipe o roteirista profissional Simon Beaufoy. Além do Oscar por Quem Quer Ser um Milionário?, Simon havia sido indicado em 1998 por seu roteiro em The Full Monty – Ou Tudo ou Nada. Ele também foi a única pessoa no time criativo de Danny com alguma experiência em escalada, o que me agradou muito. Em novembro de 2009, já ciente de uma grande mudança no roteiro, Simon veio caminhar comigo na região de Boulder, no Colorado. Quinze centímetros mais baixo do que eu, quase dez anos mais velho e vindo diretamente do nível do mar, ainda assim ele manteve um bom ritmo enquanto varávamos o mato morro acima discutindo possíveis mudanças no script. Rapidamente passamos a nos referir ao personagem principal como “Aron”, em vez de Simon chamá-lo de “você” e eu, de “eu”. Como previu Jessica, essa foi a chave para o meu bem-estar. Se eu continuasse pensando em Aron como sendo eu, provavelmente não teria conseguido digerir as mudanças necessárias para traduzir meu livro em filme. Cultivar o desapego foi a parte mais difícil para mim, admito. Mas no final a personalidade do protagonista acabou refletindo muito a minha própria: aventureiro, autoconfiante, até um pouco metido, além de altamente detalhista e um tanto selvagem.

Simon e eu também falamos muito sobre a importância dos fatos. “Verdade é uma palavra complexa para o cinema”, afirmava ele enquanto subíamos uma encosta. “A ficção – ou adaptações ficcionalizadas – podem passar uma emoção com maior eficiência do que os fatos reais.” Os fatos da minha experiência no cânion Blue John ainda iriam povoar a história do longa-metragem. E com alguns elementos de ficção escolhidos a dedo, os expectadores seriam transportados mais profundamente a tudo o que se passou no cânion. Saber que Danny me queria profundamente envolvido na filmagem também me deixou muito seguro.

Em dezembro já tínhamos um roteiro pronto, e a equipe de Danny começou a pré-produção. Naquela fase, amigos e estranhos queriam saber, afinal, “quem irá representar você no cinema?”. Discutindo a respeito dos prós e contras da estrelas do primeiro escalão de Hollywood, parecíamos magnatas mascando seus charutos. Jake Gyllenhaal? Muito rígido. Matthew McConaughey? Muito gostosão. Luke Wilson? Muito metrossexual. Um pouco antes do Natal, recebi a notícia de que James Franco havia sido escolhido. Eu tive dificuldades em lembrar quem ele era, apesar de tê-lo visto em produções como os longas Segurando as Pontas e Homem-Aranha e a série de TV Freaks and Geeks. Suas fotos de publicidade mostram que ele fica muito bonito limpinho. Mas não pude deixar de pensar: como ele ficaria sujo e arrasado?

O mais difícil, no entanto, foi o próprio cânion. Em julho de 2009 acompanhei Danny, Christian e John numa visita ao Blue John. O cânion fica 96 quilômetros a sudoeste de Moab, em Utah, na região do chamado Labirinto do Parque Nacional da Terra dos Cânions. Fomos de helicóptero, diretamente do nosso hotel. Em vez de passar meia hora numa estrada em ziguezague e mais 8 quilômetros caminhando, chegamos ao local em 15 minutos, frescos e descansados.

EM FORMA: Aron fotografado um ano depois do acidente, no Colorado
(Chuck Zlotnick)

Tenho vindo a esse cânion mais ou menos uma vez por ano, há sete anos. A primeira vez foi apenas seis meses depois do acidente. É para mim um lugar de paz, de perfeita e clara aceitação dos fatos da minha existência. Ficar aqui, com a pedra que me aprisionou, é a chance de rever minha vida e checar como estou. Tipo uma visita anual ao médico, só que sem precisar tirar as calças. Com dois guias de escalada de Moab ajudando a baixar o trio de britânicos, passamos por rapéis e por baixo de pedras para chegar ao ponto onde eu fiquei preso. Quando Danny já havia tirado várias fotos de mim no local, descemos mais até o rapel chamado Big Drop, de 20 metros, que tive que fazer após ter cortado meu braço.

Depois disso, vi novamente o Blue John numa velha fábrica de móveis em Salt Lake City, em Utah. Das mais ou menos 250 cenas filmadas, mais da metade são no local do acidente. Gravar metade do longa-metragem no cânion de verdade aumentaria exponencialmente os recursos e o tempo necessário para as filmagens. Além disso, o inverno anterior havia sido extremamente rigoroso, com nevascas recordes que ainda permaneciam sobre as rochas vermelhas. Como solução, Blue John viajou para baixo dos telhados durante alguns meses, mais especificamente para dentro dos antigos galpões da Fábrica de Móveis Granite, até que pudéssemos começar a filmar no cânion de verdade no final de abril.

Em Salt Lake City, a produtora Suttirat Anne Larlarb – uma jovem tailandesa-americana que trabalhou como figurinista para Danny em Quem Quer Ser um Milionário? – recriou o cânion pedrinha por pedrinha. Para isso ela fez uma meia dúzia de incursões de reconhecimento ao Blue John, mapeando, fotografando e tirando moldes em epóxi das paredes. Usando um laser chamado Lidar, a equipe dele escaneou o cânion milimetricamente, a cada 30 centímetros, ao longo de toda sua extensão. Depois baixaram os dados numa máquina de protótipos que cuspiu uma maquete completa em isopor, incluindo blocos de pedra que rolam para dentro de cânions, como o que atingiu meu braço. Aí a equipe ampliou o modelo em duas réplicas de tamanho natural.

NA MINHA PRIMEIRA VISITA AO SET, encontrei os assistentes de produção ocupando uma área da recepção que havia sido totalmente aberta e limpa. Por trás deles, um luminoso com os dizeres “Forrações de Piso” ainda estava aceso onde agora funciona o departamento de figurino. Atores que chegam para o teste reúnem-se num canto, sob um portal onde se lê “Cozinhas”. Por todos os lados se vê uma irônica ausência de móveis. Isso não atrapalha a equipe de filmagem, que deve ser o grupo de invasores de prédios vazios mais organizado do mundo. Na área do figurino, as costureiras reproduziram araras e mais araras dos meus shorts, camisetas, meias e calçados – dez conjuntos no total, um para cada nível progressivo de sujeira e suor que foram se formando ao longo dos meus dias preso na rocha. Fiquei especialmente impressionado como elas conseguiram transformar duas camisetas da turnê de outono de 2000 dos roqueiros do Phish em um figurino em tom salmão de mangas curtas perfeito para aparecer na telona.

No departamento de objetos cênicos, meus equipamentos foram reproduzidos como um vírus, com pilhas de clones das minhas coisas por todos os lados. Aqui dez conjuntos da minha mochila com cadeirinha, boné e lanterna frontal. Ali meia dúzia de câmeras e walkmans antigos e até quatro mountain bikes iguaizinhas ao modelo que eu usava. Num armário perto de uns cubículos vazios, havia uma fila de potes de vidro cheios com várias urinas de mentira – um experimento científico bizarro para reproduzir o que tive que beber para sobreviver no Blue John. Num dos depósitos, encontrei uma dúzia de blocos de pedra feitos em fibra de vidro, réplicas exatas à que me prendeu. Aquela sala me dava uma sensação surpreendentemente pessoal. Caminhando até a antiga fábrica, passo por três das “minhas” Toyota Tacoma vermelha estacionadas lado a lado. Dentro do set, há várias das “minhas” cordas de escalada enroladas sobre caixas. E, ao fundo, a parte mais esquisita de todas: uma oficina com uma série de braços e mãos de mentira. Meia dúzia deles estava horrivelmente pendurada em ganchos, como cortes de carne no freezer do Hannibal Lecter.

Após mais uns minutos de caminhada, finalmente cheguei à maravilha técnica que é o próprio Blue John. Os construtores haviam feito dois cânions, um deles na escala exata, e o outro uns 50% maior na área vertical para permitir cenas de queda um pouco mais longas na sequência inicial do acidente. Pintado e revestido com epóxi, o arenito do cânion parecia muito real. Escalei algumas paredes, empolgado. Só quando partes mais moles cederam com o meu peso é que percebi que eram falsas. Canionismo de mentirinha é quase tão divertido quanto o de verdade, descobri – e muito mais cômodo quando se está a poucos metros da tilápia grelhada do bufê de almoço.

Meia-noite no cânion Blue John. Bem, na verdade são dez da manhã em Salt Lake City, mas neste galpão sem janelas o sol só nasce quando o assistente de direção manda. Na área de figurino, Danny, James e eu repassamos as “roupas” que improvisei para me proteger do frio durante as noites: algumas voltas de fita de escalada ao redor do pescoço, uma sacola de supermercado e uma bolsa de câmera como mangas compridas. Enfiei a bolsa da corda na cabeça e enrolei a corda nas pernas para me aquecer.


INTO THE WILD: Aron de volta à natureza poucos meses após o acidente
(Foto: Divulgação)

FANTASIADO COM MINHAS ROUPAS, meu boné, minha mochila e meu equipamento de escalada, James é um fantasma muito convincente. A equipe de objetos cênicos traz uma das pedras de mentira. Com um assistente gravando minha demonstração, eu movo o bloco como uma marionete, descrevendo minhas tentativas de fuga: como tentei quebrar a pedra com o canivete, como montei uma gambiarra de sistema de polias e ancoragem com uma só mão, como serrei e esfaqueei meu braço com a lâmina do meu canivete.

James é conhecido por usar um tal Método de Atuação, um grupo de técnicas em que atores tentam recriar as emoções de seus personagens (no hilário site funnyordie.com, ele mostra de brincadeira essas técnicas em vários vídeos que fizeram meus amigos e eu rolar de rir em frente ao laptop). Mas, apesar do Método, um assistente teve que prender a mão de James com silver tape na pedra de fibra de vidro porque ele insistia em tentar usá-la para ajustar a cadeirinha e as polias. Lembrar que sua mão estava presa revelou-se um dos menores problemas para ele durante as filmagens. “Foi bem doloroso para o corpo”, disse James mais tarde, mostrando arranhões e hematomas de verdade resultantes das cenas, enquanto vestia a prótese do terceiro braço para mais um dia de trabalho no set.

Estamos sentados no sofá da área vip durante uma pausa na gravação. Pessoalmente James é muito quieto, quase tímido, mas pode ser que seja porque está constantemente estudando para um dos seus quatro mestrados simultâneos, entre eles um em cinematografia na Universidade de Nova York e outro em roteiro na Columbia. Mesmo indo e voltando de Nova York em vôos noturnos, ele ainda perde aulas, então fica ouvindo gravações que seus amigos lhe enviam. Apesar dos esforços, ele diz, seus professores não vão deixar que se forme este semestre. “Eu ouço o que estou perdendo nas discussões em classe”, diz, revirando os olhos, “e eles vão me bombar por causa disso?” O que quer que aconteça não irá impedi-lo de começar um doutorado em Yale no próximo semestre. “Eu gosto de ficar ocupado”, me diz James.

Não estou brincando: até mesmo entre tomadas intensas, James tira uma resma de papel enrolado debaixo da pedra para ler. No começo eu pensava que ele estava revendo o script. Mas, na verdade, é lição de casa sobre Proust. Nada como um pouco de Em Busca do Tempo Perdido para uma pessoa se concentrar em auto-amputação…

Quando chega a hora da cena, sigo James e seus três braços através da empoeirada fábrica até o set do cânion. Subo rapidamente por trás do cânion, escalando cuidadosamente para não encostar em duas lâmpadas muito quentes e em uma bagunça de difusores de luz. Danny dá as instruções a James. “A dor queima seu braço. Queima”, enfatiza Danny. “Uma dor lancinante.” Imagino que esta seja uma das cenas em que tento a amputação. Oba, a parte legal! Com uma olhada para mim, um metro e meio acima dele, Danny ergue as sobrancelhas e diz: “Ok, vamos desaparecer”. Encontro com ele perto do monitor, onde podemos ver James em duas telas. Uma câmera aponta para ele bem de frente, posicionada logo acima da mão presa, com a parede do cânion enquadrando o lado esquerdo da cena. A outra vista é de apenas 30 centímetros à direita, num ângulo oblíquo. O diretor de fotografia Enrique “Quique” Chediak e um outro câmera espremem-se lado a lado no espaço de 90 centímetros logo atrás da pedra, cada um manobrando um suporte minimalista de câmera digital. “Vá para a direita e incline-se para cima”, diz Danny dirigindo Quique. “Para trás. Muito. Para frente. Mais inclinado. Mais para a direita…” Até que finalmente surge um “Aí. Está bom. Pronto”.

Percebi que Danny nunca se senta enquanto trabalha. Ele fica em pé para olhar e ir de uma tela a outra, então aproveito e me sento na cadeira de diretor dele. David Ticotin, primeiro assistente de direção, lança o comando “Shhhhhhhhhhh” pelo seu microfone e depois grita “Câmeras!”. Danny dá o “Ação”, e os esforços dos 40 membros invisíveis da equipe culminam num foco coletivo em James. Ele respira sofridamente algumas vezes. “Mais forte, James”, pede Danny. James obedece antes de se esticar para alcançar a capa vazia de neoprene da sua mochila de hidratação. Ele enrola a capa no antebraço direito, amarrando tudo com um nó, daí usa um mosquetão para apertar o torniquete improvisado, tão forte que belisca a pele. “Cara, cuidado. Você vai se machucar!”, penso antes de lembrar que se trata de um braço de mentira. Com a faca na mão, ele se prepara e ataca o braço, serrando freneticamente, grunhindo, arfando e suando. Mas a lâmina é muito cega. Vencido, ele desiste, deixando a faca de lado.

Eu alterno entre observar James na tela e observar Danny observando James. James perde o fôlego, Danny perde o dele; James inclina-se sobre a pedra, Danny se apoia no carrinho do vídeo; os dois apertam os lábios, rangem os dentes, sincronizados. Eu não consigo saber se Danny está imitando a ação, dirigindo James por telepatia ou representando o papel que ele criou na cabeça durante estes anos todos. O que quer que seja, é intenso, um pouco divertido e incrível de se ver ao vivo.

Com vontade renovada, James pega a faca. Segurando-a como uma adaga, ele enfia a lâmina no braço até o cabo. O sangue brota da ferida. Então acontece uma coisa horrível. Toca um celular. A ínfima melodia estilhaça o clima do set. A forma como todos se desesperam procurando os bolsos é como se alguém tivesse gritado “granada!”. “Merda! Merda! Merda!”, grita Danny com os dentes trincados, quando o aparelho toca pela segunda vez. O primeiro assistente de direção de David fala no microfone: “Cortacortacortacorta!”. Terceiro toque. Até que Danny descobre que era seu próprio telefone. Tirando-o do bolso do jeans, ele sorri para mim com cara de bonzinho. Bom. Porque, afinal, essa era a única maneira do episódio não acabar com a cabeça de alguém rolando para fora das portas do set.

NA VÉSPERA DO SÉTIMO ANIVERSÁRIO DO MEU ACIDENTE, fico preso novamente, desta vez no Aeroporto Internacional de Denver, quando problemas mecânicos atrasam minha viagem até o Blue John verdadeiro. Estou ansioso para chegar lá no momento do setênio. Quando finalmente consigo, após 16 horas, fico impressionado com a transformação do lugar: agora há um heliponto a seis quilômetros do cânion, com marcas de caminhões, trailers, veículos de entrega e furgões numa estradinha que antes apenas levava até o poço de água de um rancho. De helicóptero, sou levado até uma área de aterrissagem logo acima do cânion. Abaixo de nós, nas areias planas abrigadas por domos de arenito amarelo claro, está uma vila completa, toda levada via aérea só para nossa semana de filmagem.

Se há alguma verdade na ideia de que nosso corpo renova suas células a cada sete anos, este dia de hoje finalmente marca o momento em que não serei a mesma pessoa que entrou no Blue John em 2003. Em uma semana, eu não serei a pessoa que saiu, tampouco. Teoricamente estarei 100% renovado. O fato de que Danny e sua equipe terminarão a filmagem aqui no cânion na semana exata da minha renovação me lembra de que o fim é também o começo. Sair do cânion vivo foi um renascimento. Minha armadilha e a amputação dividiram não só o meu braço, mas toda a minha existência em eras pré-Blue John e pós–Blue John. Nos anos que se seguiram a minha sobrevivência, terminei escaladas em solitário, no inverno, de todas as montanhas do Colorado com mais de 4.300 metros. Fiz o cume do Aconcágua, na Argentina, escalei solo o Denali, no Alasca, esquiando-o desde o topo, e ainda percorri de rafting o Grand Canyon. Trabalhei na conservação da natureza, promovi paraesportes e ajudei a capacitar grupos de jovens carentes. Então, agora, se o pós-Blue John está terminando, o que estará começando? Talvez seja hora, medito, de encerrar esse capítulo e lembrar a lição tirada de tudo o que me aconteceu: que as relações, e não as realizações, são o que realmente importa na vida.

Ciclos de vida têm sido um tema muito significativo para mim ultimamente. Minha avó Marjorie Ralston morreu em março de 2010 aos 82 anos, depois de um sério AVC. Só tive um consolo, o de consegui viajar de volta a Ohio a tempo de lhe mostrar fotos de Jessica e meu filhinho, Leo, seu único bisneto, que havia nascido apenas duas semanas antes. No enterro, o pastor disse que, quando um trem para na estação, algumas pessoas sobem, outras descem. Vovó saiu e o Leo chegou. Lamentei o fato de que eles nunca vão se encontrar.

Agora, nesta Hollywood de pedras vermelhas, passo por duas caixas d’água de 20 mil litros que servem de chuveiros e continuo até as 45 barracas azuis onde a equipe está acampada. Há uma fila de banheiros químicos, um grupo de ruidosos geradores e, o mais importante, as barracas-refeitório, com gramado artificial e uma placa com o cardápio onde constam filés, tortas de frango, saladas e brownies frescos.

Esperando ter um pouco de tempo sozinho no cânion, vou até a parte mais estreita, onde aconteceu o acidente. A equipe instalou várias escadas por todos os lados para facilitar o acesso. Só para me divertir, evito usá-las. Na ponta de um platô com três blocos de pedra do tamanho de um carro Gol, deixo de usar a escada de novo, fazendo uma posição de tesoura com as pernas por cima do corrimão. Estendo meu pé direito por cima de um vazio de três metros para ficar em cima de um grande bloco de pedra ao meu lado. Mas, de repente, a rocha cede sob meu pé. Meu corpo é impelido para frente. Um som de casca de ovo se quebrando soa mais alto que meu grito de surpresa – “O quê?!” –, ao mesmo tempo em que meu ombro direito se choca contra a parede do cânion. Olho para baixo e descubro que fui enganado por um objeto cênico. Uma das pedras de isopor está bem abaixo de mim, agora com uma marca de tênis tamanho 41 impressa na superfície. Dou risada da ironia. Poderia acontecer algo mais humilhante do que, no dia em que comemoro o sétimo aniversário do meu infortúnio, cair de uma pedra de mentirinha a poucos metros do local do acidente original? No precipício onde estive em 2003, alguns segundos antes de ficar preso no cânion, há outra escada. Humilhado, desço por ela. Esta me conduz por baixo da verdadeira pedra que me prendeu e por sob uma segunda rocha maior, com uma placa onde se lê “Cuidado com a cabeça”. “E também com as mãos”, penso eu.

Acomodado, retiro minha prótese do braço e toco a rocha com a pele do meu membro amputado, permitindo que aquele lugar me envolva de novo. Sinto-me retornando a todas as minhas visitas passadas, até que consigo finalmente resgatar aquele momento inicial uma vez mais. Respiro o ar poeirento e encosto na parede fresca, olhando para o ponto onde as trombas d’água há muito apagaram minha tentativa de fazer ali minha lápide. A solenidade foi varrida do arenito. Ligo minha câmera e revejo as fotos que tirei de Leo antes de sair de casa. Seu sorriso desdentado brilha na tela. Viro a câmera e mostro a foto para o bloco de pedra. Vê, dona pedra? A visão que eu tive na minha última noite no cânion tornou-se realidade. Naqueles que teriam sido meus últimos momentos, a premonição de um menininho loiro me deu a coragem de resistir até o raiar do dia uma vez mais. E agora, dona pedra, aqui está ele.

TÊTE-À-TÊTE: O diretor Danny explica uma cena a James
(Foto: Divulgação)

A FILMAGEM ACONTECE mais abaixo no cânion. Será a cena de James em fuga, imediatamente após a amputação. Ele estará agonizando, já livre, tentando se controlar ao mesmo tempo em que é compelido pela insanidade dos 13 quilômetros de caminhada que o esperam adiante. James junta-se a Danny e à equipe banhado em sangue, como se tivesse desencanado de sua torta de frango e almoçado um vampiro inteiro. Um maquiador aplica um pouco mais de gosma vermelha no seu rosto e na mão esquerda. Lembro-me da preocupação que eu tinha em dezembro passado com relação a James ser bonito demais. Vendo-o hoje coberto de sangue, suor e poeira, ele nem se parece consigo mesmo. Isso significa que conseguiu ser “sujo” muito eficientemente.

Danny então dirige a todos durante quatro takes, cada um com James descendo o cânion exatamente abaixo de onde estou. Em todas as tomadas, ele para no cânion escuro logo a minha frente, fora de vista, mas sua mão esquerda erguida apoiada numa curva da parede está sempre nivelada com meu pé. A cada cena filmada, mais sangue se deposita na parede de arenito. Ao final do último take, tiro umas fotos daquela mão.

Observando James, o tempo se deforma em duas direções, o passado e o presente entremeando-se como yin e yang. Sinto uma desorientação estranha, com meu eu de 2010 se teletransportando sete anos de volta enquanto me observo fugir. Ao mesmo tempo, estou em 2010, observando o fantasma descarnado da mão do meu eu de 2003 esparramada no arenito logo abaixo de mim.

Uma vez que o tempo volta ao normal, vejo que Danny já está conduzindo um take final só para sons. “Você quer que eu me mova?”, pergunta James. “Não”, diz Danny, colocando os fones de ouvido. David, primeiro assistente de direção, grita: “Foco, todo mundo!”. E Danny continua: “E… ação!” James respira pesadamente, geme, suga o ar entre os dentes cerrados, exalando ruidosamente. “Vamos, agora um com bastante dor, se conseguir”, diz Danny. Há uma longa pausa até que, finalmente, do fundo do silêncio ecoa um som flatulento. Há uma nova pausa, enquanto todo mundo tenta não explodir de rir, mas logo vem uma enchente de gargalhadas. “Cortacortacortacorta”, ordena David com certo atraso, ao conseguir se recompor. Ainda rindo, Danny encerra o dia. “Obrigado, James. Obrigado, pessoal. Por hoje é só.”

É ISTO. No fim, o filme atingiu seu objetivo. É minha história real. Passa realmente minha experiência no Blue John, com poder e humor. Mas não se engane: não é um filme água com açúcar. Em nove projeções de pré-estreia, nove pessoas desmaiaram. O filme me faz rir e chorar de gratidão cada vez que o vejo. Meus soluços vêm mais fortes e com mais alegria quando meus amigos e minha família estão do meu lado, especialmente na cena final: as pessoas ali reunidas são meus verdadeiros entes queridos. O dia em que filmamos aqueles momentos finais foi minha parte favorita do projeto.

Tão importante quanto o filme em si é o fato de Danny e sua equipe terem cuidado muito bem do deserto. Cumprindo sua palavra, a equipe esforçou-se ao máximo para não machucar o cânion e ainda colaborou com a organização não-governamental Southern Utah Wilderness Alliance (algo como Aliança pela Natureza do Sul de Utah, em português) para preservar o meio ambiente.

Toda vez que volto à terra das pedras vermelhas no sul de Utah, fico impressionado com a imensidão do deserto e a contrastante sutileza dos cânions. Ali, os sons trazem uma intimidade semelhante a um sussurro no meu ouvido. Minhas roupas e pele ficam alaranjadas pela areia das paredes, sua aspereza removendo temporariamente a textura dos meus dedos. Novos segredos aparecem a cada passo, enquanto percorro as curvas do lugar acompanhado da fresca umidade do ar. A dez metros do chão, encontro um ninho de passarinhos cheio de poeira trazida pelo vento. Sob a poeira, três cascas de ovos abertos.

Estes cânions estreitos são a obra-prima do deserto. Acho que cairão muito bem com uma pipoca média e uma lata de refrigerante. E, claro, uma caixinha de balas de menta.


NO TALENTO: Para interpretar Aron, James teve de emagrecer, se sujar e sofrer durante meses
(Foto: Divulgação)

Um maneta de charme

James Franco rouba a cena em 127 Horas. Com muito esforço físico e graça, ele constrói um personagem que não é exatamente Aron Ralston, mas retrata fielmente tudo o que ele enfrentou

Por Alex Heard

James Franco está em quase todas as cenas de 127 Horas. Em todas, dá um show de interpretação, principalmente quando se considera que este é um filme inerentemente desafiador. Apesar de a odisseia de Aron Ralston no cânion Blue John, em Utah, ser dramática por definição, trata-se de uma estória para lá de estática: uma vez que Aron fica preso pelo maldito bloco de pedra, ele fica preso e ponto final – apesar de suas tentativas de escapar quebrando a rocha com um canivete ou inventando um sistema de polias com seu equipamento de canionismo – até a sequência-clímax, já no final do filme, quando ele corta o braço fora para se libertar.

Como se faz uma história de claustrofobia e tormento não ser apenas “assistível”, mas também divertida? O diretor Danny Boyle – que admitiu, às gargalhadas, depois do lançamento do filme nos estados Unidos, em setembro de 2010, que “odeia” esportes na natureza – conseguiu a façanha entremeando a saga de Aron com boas doses de energia urbana, por meio de cortes rápidos, ótima trilha sonora, flashbacks malucos e um James Franco que mais parece o resultado de uma mistura de Aron, MacGyver e Neal Cassady, o ídolo da geração beat que inspirou o livro On the Road.

O fato de o ator de 32 anos ter tirado o desafio de letra não irá surpreender os fãs que acompanham sua carreira eclética, que já o levou de uma série de TV (Freaks and Geeks), a cachês milionários como os de Homem-Aranha, passando pelo retrato minucioso do poeta Allen Ginsberg em Howl, de 2010. E ele consegue tudo isso ao mesmo tempo em que faz cursos de graduação em artes, literatura e redação criativa nas universidades de Columbia, NYU e Yale. Entre takes e lições de casa, James bateu um papo com a OUTSIDE para falar sobre seus métodos e trabalhos como ator:

OUTSIDE: No começo de 127 Horas, logo que o braço de Aron fica preso, há uma cena em que você dá tudo de si para tentar fazer a pedra se mover. Você estava numa réplica do cânion feita em estúdio, mas a rocha falsa era pesada de verdade e estava presa à parede. Deve ter sido uma luta dolorida, não?

JAMES FRANCO: Danny disse: “Eu vou deixar a câmera rolar. Tente se livrar dali e não pare. Você não vai sair, mas continue tentando”. Eu sabia que iria perder a batalha, mas falei: “Ok, mas veja se está mesmo captando tudo na câmera porque eu não quero ter de fazer tudo de novo”. Isso estabeleceu a forma como lidei com várias cenas. Esse acabou sendo um take de vinte minutos.

Você tomou uma surra?

Ah, sim. Fiquei todo roxo. Mas quando se leva tanto tempo numa só cena, você é absorvido por ela de uma maneira diferente, porque está ali realmente se esforçando para realizar alguma coisa. Se não conseguir fazer aquilo depois de dez minutos, fica frustrado de verdade, especialmente se for alguma coisa muito extenuante fisicamente.


Nesse papel, você teve que representar níveis de dor e terror que poucas pessoas conseguiriam imaginar. O que Aron te disse a respeito do que ele passou?

No começo, todos nos encontramos com Aron em Los Angeles – Danny, eu, o roteirista Simon Beaufoy e o produtor Christian Colson –, e ele nos mostrou os vídeos que fez de si mesmo durante o tempo em que ficou no cânion. Daí pedimos para ele recontar cada parte da jornada – cada parte mesmo –, fazendo-o encenar cada detalhe, por razões técnicas. Também fomos até Utah por dois ou três dias antes de começar a filmar e repassamos tudo mais uma vez com os objetos cênicos que iríamos usar.

Vocês ficaram especialmente interessados pelos vídeos em que Aron descreve a amigos e parentes suas dificuldades e iminente morte por desidratação.

Aron não mostra esses vídeos para muitas pessoas. Ele mostrou para nós, e são bem fortes. São imagens de um cara que não é ator, avisando a seus amigos, por meio de uma câmera, que está começando a aceitar a própria morte. É uma gravação de uma pessoa que está tentando não desabar em frente à família, pelo bem deles. Não se tratam de solilóquios extraordinários de Shakespeare, mas monólogos de uma pessoa comum. Quando se assiste a isso, a gente pensa: “Uau, esse cara realmente acha que vai morrer”.


Como ele descreveu a dor física?

A dor? Ele disse que, quando a pedra prendeu seu braço, a dor era dez ou cem vezes pior do que qualquer coisa que ele já experimentara antes. Mas a amputação foi mil vezes mais dolorosa. Ele disse que foi como se o braço tivesse sido submerso em lava, incinerado.

E você teve que retratar tudo isso de maneira convincente, enquanto serrava um braço de prótese com uma faca.

É, eles fizeram um braço de mentira para mim que, por dentro, era muito detalhado com músculos, veias e nervos. Mas a forma como Danny lidou com as sequências da amputação ajudou. Dá para ter a ideia do que está acontecendo, mas em várias tomadas se vê meio fora de foco. Com isso, a imaginação dá conta do recado.

Aron escreveu a respeito de visões nos momentos em que ficou preso: ele atravessando um canal de nascimento cósmico, o filho que teria um dia. Essas visões foram resultado de uma mente sob forte estresse ou genuínas epifanias espirituais? O que você acha?

É difícil dizer. Jesus passou 40 dias no deserto, vivendo isolado, então deve haver alguma coisa que muda o cérebro nessas situações. Ou então te abre para experiências espirituais. Para mim, o filme fala a respeito do desnudamento de um ser humano que entra em contato direto com sua mortalidade, suas crenças e com a maneira como viveu sua vida. Acho que a visão de Aron de uma criança, ou o que quer que seja, pode ter sido resultado dessa experiência.

Ao ler as partes biográficas do livro de Aron, fica claro que ele era um atleta de aventura extremo, que passou várias vezes perto da morte – por avalanches, quedas em escaladas ou afogamento – antes de ficar preso no cânion. Essas partes da história não aparecem no filme, e você fez a personalidade do Aron do filme um pouco mais tensa do que a do Aron da vida real, que é uma pessoa bem mais relaxada e tranquila. Por quê?

Eu já havia feito personagens baseados em pessoas da vida real, como James Dean e Allen Ginsberg. Dependendo de quem é o personagem, adoto seus maneirismos. No papel de Ginsberg, um dos pontos principais era refletir seu espírito. Em 127 Horas, Danny ficou fascinado com a situação da história, com a ideia de uma pessoa presa ali. Pensamos que a melhor maneira de os espectadores sentirem essa experiência seria oferecer uma atuação mais crua, representando um cara que está passando por todos esses testes. Trabalhamos muito com Aron durante a pré-produção, e eu sei que Danny trabalhou muito com ele no roteiro. Mas após um tempo passamos a ver tudo isso como se o Aron estivesse nos emprestando sua história para que nós pudéssemos fazer experiências com ela antes de devolvê-la a ele.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2011)