A revolução dos sem-sapato


SEM SAPATILHA: Andreas prefere sentir a rocha sob seus pés

Por Brian Metzler
Foto por Inga Hendrickson

SE VOCÊ ESTÁ COM A IMPRESSÃO de que agora tem cada vez mais gente correndo por aí com aqueles tênis estranhos tipo uma luva de pé, bem… é porque tem mesmo. Desde que Christopher McDougall publicou em 2009 seu livro-manifesto Nascido para Correr (editora Globo), que traça o perfil dos corredores de sandália da tribo mexicana tarahumara, o movimento dos sem-sapato explodiu.

No ano passado, a Vibram vendeu o equivalente a US$ 50 milhões em tênis FiveFingers, cinco vezes mais que em 2009. O resultado é que, na próxima temporada, quase toda grande empresa de calçados de corrida trará ao mercado uma linha inspirada nos pés descalços. Enquanto esses modelos representam apenas uma fração do mercado de US$ 2,4 bilhões dos tênis de corrida, alguns varejistas estimam que os modelos minimalistas possam vir a representar um quarto do total das vendas desse tipo de calçado no próximo ano. Ao que parece, a velha ideia do “menos é mais” está mesmo virando realidade no mundo esportivo.

“Sem dúvida, é a maior revolução que já vivemos”, diz Curt Munson, proprietário da Playmakers, com sede no Michigan e um dos maiores varejistas de calçados de corrida dos Estados Unidos. “A indústria da corrida está passando por um processo de grande evolução.” Isso é bom. Novas pesquisas sugerem que calçados com um amortecimento mínimo fazem com que a pessoa realize as passadas como se estivesse correndo descalço – isto é, pisando suavemente com as pontas e o meio do pé –, o que pode tornar o corredor mais rápido e eficiente. Além de, teoricamente, reduzir as chances de lesão. Mas há também um inconveniente: uma mudança repentina de muito amortecimento para quase nenhum amortecimento não é uma boa ideia. Na urgência de voltar a correr como nossos ancestrais, esquecemos que a vida moderna deixou nossos pés mais sensíveis e menos preparados para sair por aí pisoteando uma trilha com calçados tipo sandália. Qualquer transição deve ser gradual, cuidadosa e calculada.

Um dos motivos pelos quais não se pode mudar o calçado e a pisada de um dia para outro é que nos tornamos um povo que abusa dos calcanhares. Os calçados com muito amortecimento, que nos ajudaram durante o boom da corrida nos anos de 1980, ainda dominam o mercado, representando a maioria das vendas. Ao mesmo tempo em que esse tipo de tênis é muito confortável e torna o exercício menos doloroso para os corredores novatos e mais pesados, seus amortecedores e inclinação forçam o corredor a tocar o chão primeiro com os calcanhares. Esse movimento pouco natural aumenta as ondas de choque perna acima – em muitos casos, em até 50%, quando comparado a corredores que não começam a passada com o calcanhar, segundo novas pesquisas.

“Calçados com calcanhares mais altos favorecem a aterrissagem no calcanhar, pois o cérebro pensa que está tudo bem tocar o chão assim”, diz o doutor Mark Cucuzzella, fundador da Two Rivers Treads, no Estado de West Virginia, primeira loja dos Estados Unidos totalmente dedicada a tênis minimalistas de corrida. Só que não está tudo bem. Entre 37% e 60% dos corredores sofrem com as chamadas lesões por repetição todos os anos – uma taxa semelhante à do final dos anos de 1980, apesar das duas décadas de avanços em tecnologia de calçados.

Calma, não vá arremessando seus tênis tradicionais pela janela. Ainda não há provas de que os calçados minimalistas – e as passadas mais neutras que eles promovem – irão diminuir os riscos de lesão. E mudar abruptamente para os pesos-leves, ou simplesmente para calçados mais baixos e menos amortecidos, vai só aumentar suas chances de se machucar feio. “Se a sua transição for muito rápida, provavelmente você vai se arrepender”, diz o biomecânico Ian Hunter, professor-associado de ciência do exercício da Brigham Young University, em Utah, nos Estados Unidos. De qualquer maneira, se você é como a maioria dos corredores, há uma grande possibilidade de estar usando mais calçado do que precisa – e passar para um tênis com um pouco menos de amortecimento certamente irá ajudar a melhorar sua técnica, velocidade e eficiência.

Vá com calma

Correr com calçados minimalistas pode deixar você mais forte e veloz, mas também envolve mudar bastante a sua mecânica de passada. Aprenda como fazer isso a seguir

– Escolha o calçado certo

Encontre uma boa loja especializada em tênis de corrida e peça ao vendedor um calçado que seja um pouco mais leve, com menos amortecimento e um calcanhar um pouco mais baixo do que o seu atual. Não faça mudanças drásticas. Diminuir o amortecimento muito rapidamente pode, por exemplo, causar uma fratura por estresse, e mudar para um calçado com um calcanhar muito mais baixo irá gerar mais tensão no seu tendão de aquiles. Eis aqui algumas dicas para uma progressão gradual e segura:

1. Troque de tênis

Para começar a mudar para calçados mais leves, procure um tênis tradicional de corrida um pouco mais “magrelo”, como o Gel-DS Trainer 16 da Asics (asics.com.br), com 283 gramas. O calcanhar é só um pouco mais próximo do chão em comparação a um calçado tradicional e a palmilha é só um pouco menos inclinada para frente, portanto não vai representar um choque tão grande para seus pés.

2. Mude sua passada

Uma vez acostumado com calçados mais espartanos, é fácil passar a correr com a parte do meio do pé. Além de ser ainda mais leve e mais próximo do solo do que o Asics, o Minimus MR10 de 232 gramas da New Balance (newbalance.com.br) tem uma entressola relativamente plana, o que ajuda a desencorajar a aterrissagem no calcanhar.

3. Fique descalço

Pés fortes e bem condicionados quase não precisam de calçado (veja o caso do etíope Abebe Bikila, que venceu descalço a maratona das Olimpíadas de 1960). O FiveFingers Bikila de 170 gramas da Vibram (vibramfivefingers.com) tem só um resquício de amortecimento e uma entressola praticamente plana. Ou seja, pisar suavemente com o meio do pé é quase obrigatório. Esse modelo, e outros serão, serão lançados no Brasil neste primeiro semestre, com preços médios de R$ 300.

– Pegue leve

Você precisa se ajustar muito gradualmente a seus novos calçados com menos amortecimento para não estressar músculos, tendões e articulações. Quando comprar um modelo mais baixo, corra na primeira semana 1,5 quilômetro com eles dia sim, dia não, alternando-os com seus tênis normais. Nas duas semanas seguintes, corra 10% da quilometragem de seu treino com os calçados novos. Aumente para 20% nas duas semanas seguintes e assim por diante. Repita até não sentir nenhum desconforto percorrendo toda a quilometragem da sua planilha. Daí faça o mesmo com um par de tênis ainda mais leve e próximo ao chão.

– Melhore sua técnica

Com calçados menos amortecidos, você vai precisar correr mais suavemente. Isso significa dar a passada começando com a parte mais próxima do meio do pé, e não com os calcanhares. Parece estranho? Tente inclinar-se levemente para frente, aumentando a velocidade da passada (aproximadamente 180 passos por minuto ou mais é o ideal). Alterne os braços mais rapidamente também. “Não force demais a mudança”, diz Mark Cucuzzella. “Melhore primeiro sua técnica e daí vá aumentando a distância. Só então pense na velocidade.”

1 >> Tocar o chão primeiro com o calcanhar é tão ineficiente – já que cada pisada funciona como uma freada – quanto agressivo para as pernas, resultando em um impacto muito maior não só para os calcanhares como também joelhos, quadris, costas etc.

2 >> Aterrissar no chão com o meio dos pés causa menos impacto no corpo, pois as articulações flexionadas funcionam como amortecedores naturais. Posicione seus pés quase diretamente abaixo do corpo, incline-se levemente para frente e dê passos mais curtos e mais rápidos – mais ou menos três por segundo.

* Brian Metzler é co-autor, com Danny Abshire, do novo livro Natural Running (Velo Press, US$19, ainda sem publicação em português).

Questão de pele

Por Mario Mele

O ALEMÃO ANDREAS PROFT começou a escalar descalço por curtição. Em Elbsandstein, uma conhecida região de escalada no leste de seu país natal, ele economizava solado sempre que acompanhava as investidas da mulher em vias mais fáceis do que as que estava acostumado. Isso foi há seis anos. Hoje, aos 38, Andreas chega a escalar sem sapatilha uma avançada via 10b (tabela brasileira). Por si só, a combinação “escalada técnica + pés descalços” já chama a atenção no meio esportivo. Mas quando o alemão dispensou qualquer dispositivo de segurança em suas ascensões, os feitos do escalador ganharam uma aura ainda mais espetacular.

Andreas não foi o primeiro a deixar as sapatilhas de lado. “Durante as décadas da Guerra Fria na Alemanha Oriental, era muito difícil conseguir equipamentos de escalada, principalmente calçados”, conta ele. Nos anos de 1970 e 1980, o aperto financeiro, somado às rigorosas condutas ecoéticas de Elbsandstein – que limita a colocação de proteções de metal na rocha e proíbe o uso do carbonato de magnésio nas mãos para não manchar as pedras – não dava muita escolha aos atletas locais.

A dificuldade fez com que Bernd Arnold se tornasse um dos escaladores alemães mais conhecidos da época depois de conquistar descalço dezenas de vias difíceis.Andreas, no entanto, minimiza o peso das tradições e credita sua mania de escalar sem sapatos à paixão por sentir na pele as texturas da rocha. “Escalar sem sapatilha hoje está mais vinculado a escaladores nostálgicos, como eu. Os outros preferem proteger o corpo”, diz ele, que sempre passa um pouco de pó de magnésio nos pés antes de encarar as paredes.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2011)







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