Contos patagônicos

Poucas horas de avião separam você de Mallin Alto, uma fazenda encravada nas montanhas virgens e solitárias da Patagônia argentina, onde tradição, vida selvagem e esqui fora de pista são apenas algumas das infinitas atrações

Por Maria Clara Vergueiro


INESQUECÍVEL: Paisagens isoladas te esperam em Mallin; abaixo, o domo para hóspedes

PENSE EM DIAS PERFEITOS DE ESQUI sobre uma neve recém-chegada com o inverno. Assim é a doce rotina em Mallin Alto, uma fazenda de mais de 30 mil hectares a cerca de 30 minutos do aeroporto de San Carlos de Bariloche. A cidade, localizada na Patagônia argentina, fica lotada nas férias de julho por famílias de brasileiros ávidos por um pouco de inverno “europeu” com sotaque portenho. Mas estávamos adiantados, no mês de junho, quando desembarcamos nas terras de nossos hermanos para constatar, mais uma vez, o quanto somos apaixonados por seus heróis, paisagens, culinária e estilo.

Foi a camaradagem e o intercâmbio de experiências entre os dois países que levou nosso grupo de quatro pessoas – a treinadora Cristina Carvalho, seu marido e arquiteto José Caputo, o publisher da Go Outside Caco Alzugaray e eu – para as vastas terras de Mallin Alto, nome que alude às várzeas encharcadas pelos riachos de degelo (em espanhol, mallin designa essa espécie de pasto molhado). Ali se instalaram, a partir de 1881, os antepassados de Dionísio Riquelme, tio-avô de nosso amigo e anfitrião, o cinegrafista e fotógrafo de aventura Kao Deyurca. Há dois anos, Kao vislumbrou nas incontáveis montanhas que cercam a propriedade a chance de realizar uma operação turística exclusiva, rústica e autenticamente patagônica de esqui fora de pista, capaz de proporcionar a prática dos esportes de neve em um ambiente selvagem e, ao mesmo tempo, lotar a bagagem dos turistas com a cultura e o modo de vida daquela região.

O avuelo – como é chamado por todos, netos ou não deste mítico senhor de 84 anos – nasceu, cresceu e até hoje é a principal referência naqueles hectares ocupados apenas por ele mesmo, seu filho Helio, o filho dele, Lucio, e dois bisnetos, além de um par de ajudantes. Com a benção de Dionísio, Kao começou a abrir nos bosques de lenga – árvore típica da patagônia – os caminhos que levariam seletos grupos de clientes até o pé das montanhas. Ali ele montaria um domo (abrigo de montanha redondo como um iglu, feito da união de uma estrutura de metal e uma cobertura que lembra uma lona branca) anexado a uma cabana de madeira, que serviria de base e hospedagem para os aventureiros interessados em viver uma experiência ímpar em cima de esquis e snowboards. Isso é muito diferente do que, em geral, acontece com aqueles que, como eu, só esquiaram em pistas tradicionais, descendo superfícies demarcadas, subindo tudo de volta com a ajuda de cadeirinhas, acomodados no conforto das referências tão familiares: filas, música alta, Coca-Cola e hambúrguer.

Escolhemos os quatro dias do feriado de Corpus Christi – tempo suficiente para a empreitada – e fomos conferir de perto a proposta que Kao havia nos anunciado no verão de 2013, quando visitamos Mallin Alto pela primeira vez. Agora, entretanto, a paisagem seria outra, e nós íamos com a garantia de ter a primeira neve do inverno a nossa disposição. Depois de um voo que nos levou de São Paulo a Buenos Aires, e de lá para Bariloche, seguimos de van, com um motorista que nos buscou no aeroporto, até a entrada principal da fazenda.

Nessa primeira noite e na seguinte dormimos na parte baixa da fazenda, onde é possível alugar uma cabana de madeira confortável, com dois quartos, banheiro, sala e cozinha, e capacidade para acomodar até seis pessoas. Passaríamos a última noite no domo, completamente sozinhos na base da montanha, a 1.100 metros de altitude.

Na cabana, quem nos recebe é um senhor alemão que, segundo o avuelo Dionísio, “ocupou” aquela parte das terras e acabou por instalar uma pequena operação de cavalgadas e caça esportiva dos animais nativos – cervos, condores, corujas, onças e lebres podem ser vistos facilmente por lá – autorizada pelo governo argentino em áreas e épocas específicas. Tudo em volta é tão preservado e silencioso, estamos tão distantes do resto do mundo, que a sensação é de estarmos conhecendo “elos perdidos” da civilização moderna. No dia seguinte bem cedo, lá estava Kao, com uma caminhonete velha e valente, para nos levar a um ponto no meio do bosque onde um dos agregados do avuelo, casado com uma prima de Kao, estaria nos esperando, munido de duas motos e um quadriciclo de neve. Era Quique, nosso forte comandante pelos caminhos invisíveis das montanhas.

Nos dividimos nos três veículos, Quique conduzindo uma das máquinas, Kao a seguda e Caco a terceira, com as mulheres, as pranchas, os esquis e os bastões nas garupas. A subida de carro das cabanas até o bosque já havia sido bastante desafiadora, com travessias de rios, pedras e o piso escorregadio da terra misturada à neve, mas dali em diante começava a aventura de fato. Fizemos uma pausa rápida no domo, onde estavam Miguel – um chefe de cozinha argentino que passou os dias nos brindando com cordeiros, massas feitas à mão e outras iguarias – e Paulo, guia de montanha experiente que nos acompanhou em todo o percurso, indicando as melhores descidas e as “linhas” mais seguras.

Dropar as paredes das montanhas cobertas de neve fofa é quase a parte mais fácil de todo o processo: antes foi preciso percorrer um bom pedaço das cristas com as motos e, depois de chegar lá embaixo, com o coração ainda acelerado e os olhos vidrados nos minutos de êxtase da descida, montar nas máquinas de novo até o ponto da montanha em que a inclinação permite chegar. O resto da subida até o cume é na raça, em um ataque que pode durar uns 15 minutos e que rende um bom treino para as pernas. No fim de cada dia, somávamos três ou quatro descidas alucinantes em um cenário digno dos melhores filmes de ação, intercalados por refeições a céu aberto (sanduíches que sempre vinham acompanhados de um bom vinho), trekkings ensolarados na neve e deslocamentos motorizados na companhia de Quique, Kao e Paulo.

A terceira e última noite da viagem, passamos no domo, equipado com um banho inacreditavelmente quente e poderoso, além de dois colchões de casal dispostos no mezanino, cobertos com edredons quentinhos e lençóis cheirosos. Quique e Kao só apareceram no dia seguinte, acompanhados do avuelo Dionísio, que trazia nas mãos um pequeno cabrito recém-abatido – nosso almoço de despedida, preparado pelo avuelo em pessoa. Foi um assado (churrasco) clássico, feito em fogo de chão, da mesma forma como são preparados os cordeiros patagônicos, mundialmente conhecidos no universo gastronômico. “Quantos filhos o senhor tem?”, perguntou Caco ao avuelo animado, que se abaixava, arrumava o fogo, espetava o bicho e conversava com a desenvoltura de um menino. “Con la patroa?” , respondeu ele, irônico, referindo-se aos filhos legítimos e dando uma gargalhada vigorosa antes de compartilhar a informação oficial: “Dois”. Eu, ao final do almoço, completamente encantada pelo estilo do avuelo (lenço vermelho no pescoço, boina e o grosso casaco de lã, além de um carisma irresistível) disse: “Quero muito voltar aqui, Dionísio!”. Ele, ágil como Messi, devolve: “Venha! Não existe segunda sem primeira”.


PRAZER PLENO: Descida de esqui em Mallin; abaixo, Caputo, Maria Clara, Cirs e Caco
na fazenda

Programe-se

> Voos: Somente no mês de julho algumas operadoras de turismo, como a CVC, têm voos diretos para Bariloche. Nos outros meses, é preciso fazer uma escala em Buenos Aires. O valor das passagens fora de temporada é de US$ 550, em média (ida e volta).

> Mallin Alto: Existem cinco opções de pacotes, de um a três dias. As diárias incluem todas as refeições, a estadia no domo ou nas cabanas e o traslado para o aeroporto. Por pessoa, o pacote mais completo, de três dias e três noites, sai US$ 1.800 dormindo no domo, ou US$ 2.000 dormindo nas cabanas. Além de esqui e snowboard, em Mallin Alto também é possível fazer mountain bike e rafting no verão, além de pesca e cavalgadas o ano todo. mallinalto.com

> Para levar na mala: Se você gosta de correr em trilhas, não deixe de levar roupas e tênis específicos para esse fim; se o tempo fechar ou a neve não der o ar da graça na última hora, você garante momentos incríveis (e raros para quem vive nos trópicos) correndo pelos bosques, acompanhado só de um ou outro animal selvagem.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de agosto de 2014)







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