A reinvenção do esqui


RECORDE: O alemão Henrik May voa baixo nas dunas da Namíbia para atingir 92 km/h
(FOTO: Vic Engelbrecht)

Um ex-atleta alemão está tentando transformar um deserto gigantesco na costa oeste da África no maior polo mundial de esqui na areia. Sonho? Nem tanto

Por Bruno Romano

ANTES DE OLHAR PARA estas fotos e enxergar um lunático fazendo graça com um esqui, experimente se transportar para dentro da imagem por alguns segundos. Você está no deserto do Namibe, na costa oeste da África, deslizando sobre imensas dunas com dois pedaços de lâminas afiadas nos pés. Não faz calor, e os ventos do oceano Atlântico trazem uma brisa refrescante. A cada ladeira conquistada em alta velocidade, a adrenalina é liberada em seu corpo em doses perfeitas. O momento é só seu, em um contato puro e intenso com a natureza. O que parece um sonho bizarro, na verdade, é a rotina que o esquiador alemão Henrik May escolheu há dez anos, logo após experimentar a primeira descida de esqui em areia de sua vida.

“Esquiar é mágico. Traz uma sensação de paz e faz sua mente se abrir, não importa se é na neve ou na areia”, diz Henrik, 39 anos, ex-atleta profissional de combinado nórdico (esporte que une esqui cross-country com salto). Atualmente, Henrik explora o deserto em longas viagens em busca de novos picos. Trata-se de um “oceano de areia” de 1.600 quilômetros de norte a sul, com uma largura que varia de 50 a 160 quilômetros de distância, englobando Angola, Namíbia e África do Sul. Estudiosos acreditam que esse seja o deserto mais antigo do mundo, e algumas de suas dunas atingem 300 metros de altura e se estendem por mais de 30 quilômetros.


SONHADOR: O esquiador no topo de uma duna gigante no oeste da África
(FOTO: Stephan Schultz)

Esse cenário pitoresco já virou rotina para Henrik, a ponto de o esquiador ter quebrado o recorde de velocidade em descida de esqui em dunas, em 2010, atingindo 92 km/h. Não é fácil ultrapassar os 90 km/h no deserto: “Pratiquei mais de 40 vezes antes de chegar a essa velocidade. Escolhi uma duna de 75 metros e não usei nenhum veículo para subi-la nas três tentativas. Até hoje treino bastante minha técnica e concentração, pois uma queda rápida assim na areia pode machucar bastante”.

As dunas do deserto do Namibe, no entanto, estão bem longe da terra natal de Henrik, a pequena cidade alemã de Zella-Mehlis, no estado de Turíngia (que há 40 anos ainda era parte da Alemanha Oriental). Foi lá que ele aprendeu a esquiar com seu pai, aos 4 anos de idade, defendendo a equipe local durante uma década, ao lado do irmão Christian. Henrik ganhou destaque nas competições da região, mas teve de largar o esporte e procurar um emprego mais estável para conseguir sobreviver. Acabou se tornando oficial de polícia, em tempos bem difíceis no país, logo após a unificação da Alemanha e a queda do muro de Berlim.

Sem grana para sustentar a casa, a família buscou refúgio para uma nova vida na Namíbia, no fim da década de 90. Lá eles estabeleceram uma pequena pousada para estrangeiros em Swakopmund, segunda maior cidade do país, a oeste da capital, Windhoek. Desde então, Henrik explora a vastidão de montanhas de areia entre Swakopmund e Walvis Bay, 30 quilômetros mais ao sul pelo litoral do país africano. Em suas palavras, a região é “uma jóia bruta” a ser descoberta. Apesar de tudo parecer ter conspirado contra Henrik (seu pai faleceu em 2001, em um acidente de carro na Namíbia, e a situação ficou ainda mais difícil), a natureza estava soprando a seu favor. As correntes de ar frio que atingem essa faixa do litoral oeste africano vêm da Antártida e dão um clima mais ameno ao trecho do Namibe que se localiza na Namíbia. Toda essa ventania muda a paisagem constantemente, criando novas dunas a cada semana. É aí que a diversão começa.

“Esquiar na neve é muito mais rápido, claro, mas na areia você consegue passar mais tempo praticando sem congelar de frio. Apesar de o esqui na areia ser mais difícil de aprender que o sandboard [a versão ‘tropical’ do snowboard], ele te dá mais opções de modalidades”, defende Henrik, que já soma mais de 5.000 descidas em dunas. Além do downhill, com os esquis apontados ladeira abaixo, o “alemão-africano” desenvolveu o cross-country na areia – modalidade de “caminhada” com esquis e bastões – e o telemark, que mistura as duas anteriores só que com a ajuda de botas que se soltam nos calcanhares, dando mais agilidade tanto nas retas como nas descidas.


INVADINDO A PRAIA: O downhill e o cross-country (abaixo) têm atraído cada vez mais turistas
para o Deserto da Namibe
(FOTO: Sven Schimidt)


(FOTO: Axel Scheibe)

“Nunca paro de testar equipamentos na busca de soluções viáveis. Procuro acreditar no meu sonho e não olhar para trás, encontrando a felicidade em cada momento vivido por aqui”, diz Henrik, que ainda tenta convencer a indústria especializada a fabricar um equipamento específico para a areia. Por enquanto, ele adapta modelos de esquis de neve mais leves e de tamanho intermediário. A ideia meio maluca tem atraído diversos europeus, maior parte da clientela da Ski Namibia (ski-namibia.com), empresa fundada por Henrik em 2004, que tem sua alta temporada entre o fim de junho e novembro.

A ambição de Henrik agora é espalhar o esporte por destinos ao redor do mundo, aliando conhecimento técnico e cuidado ambiental para não devastar as dunas, ambientes extremamente delicados – por isso, ele só organiza pequenos grupos, sempre variando as locações. “Seria incrível criar uma cena internacional, com uma comunidade de esqui na areia envolvida em competições pelos desertos do planeta”, afirma. Sonho de um alemão maluco no meio da Namíbia? Talvez. Mas outras “visões” de Henrik são mais difíceis de questionar: “Imagine um tour de esqui sob a luz do céu estrelado, em um deserto gigantesco e vazio ao seu redor. É ou não é algo muito especial para se fazer neste mundo?”.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de agosto de 2014)