Nada em vão


(SU) FOCO: Pamela em uma fenda do Pistol Whipped Wall, em Utah (EUA)

A norte-americana Pamela Shanti tornou-se o maior nome mundial da escalada em fendas. Sua vida é tema de documentário que será exibido no Festival de Filmes Outdoor Rocky Spirit deste ano

Por Kevin Assunção
Fotos por Fredrik Marmsater

PERSEVERANÇA, RESISTÊNCIA A DOR, técnicas apuradas, força e paciência, muita paciência. Eis o conjunto de características que um escalador de fenda precisa desenvolver se quiser vencer os perigosos vãos que se formam em paredões rochosos e que servem de via para esse estilo de escalada. A tarefa não é fácil. Gritos de dor e de esforço do atleta refletem a batalha travada entre o corpo e a mente, já cansados de passar ininterruptas horas espremidos em diminutos espaços de pedra. Para piorar, o escalador quase sempre carrega equipamentos que podem pesar dez quilos. “É aquela sensação de quando você está na academia e não consegue mais levantar o peso. Muitas vezes atingimos esse momento em uma fenda, mas ainda precisamos carregar o corpo paredão acima por infinitos minutos antes de usar o equipamento para se segurar na rocha. Nessas horas, acontece uma batalha mental que te leva a lugares nunca imaginados”, diz a norte-americana Pamela Shanti Pack, um dos maiores nomes da escalada em fenda no mundo. Sua carreira é tão extraordinária que a atleta virou tema do documentário Off-Width Outlaw, uma das atrações do Festival de Filmes Outdoor Rocky Spirit, que acontece dias 30 e 31 de agosto em São Paulo, e dias 20 e 21 de setembro no Rio de Janeiro.

Pamela encontrou nos vãos rochosos a maneira de continuar a carreira na escalada. Em 2006, ela desenvolveu uma grave lesão nos antebraços, chamada síndrome compartimental crônica de esforço, causada por pressão demais em determinada região muscular. Isso foi resultado de um inverno “particularmente obsessivo” de escalada em boulder (feito em blocos de rocha não muito altos, mas extremamente técnicos), e piorou até chegar ao ponto em que a escaladora não conseguia mais dobrar os dedos para segurar uma caneta. Pamela procurou ajuda médica no momento em que a dor beirou o insuportável.

O tratamento à base de antiinflamatórios, fisioterapia e massagem não surtiu efeito. Com isso, os cirurgiões lhe deram duas opções: ou a moça parava de escalar ou encarava uma fasciotomia, uma cirurgia em que se corta a fáscia, o tecido fibroso do músculo, para aliviar a pressão. No dia anterior à operação, Pamela desistiu da ideia diante das consequências que poderia enfrentar – que, no pior dos casos, poderia significar até uma amputação por infecção. Essa decisão implicava em abrir mão da escalada. Pamela pensou em vender todo seu equipamento, comprou uma mountain bike. Até que, em 2008, ao folhear um guia de viagem para Vedauwoo, no estado norte-americano de Wyoming, viu fotos dos ícones das fendas Craig Luebben e Bob Scarpelli. “Percebi que eles não fechavam as mãos durante esse tipo de escalada. Pensei naquela hora que talvez valesse a pena eu experimentar isso”, conta.

Pamela foi para Vedauwoo onde, nos boulders, aprendeu a fazer inversões por entre as fendas. Ser ginasta competidora até os 18 anos, quando descobriu a escalada, ajudou a se adaptar ao estilo “pés acima da cabeça” – o movimento de arrastar-se de ponta-cabeça pelos vãos. No final, ela passou o verão inteiro naquele lugar, considerado a meca da modalidade que, em inglês, é chamada de “off width”. O prazer pelo que acabara de descobrir ajudou a amenizar as fortes dores que ainda sentia. “Era como se eu tivesse descoberto a razão de ter nascido. Sempre amei escalar, mas me dediquei às fendas com uma paixão que nunca havia experimentado antes.”

Seu treinamento intenso de força – “mais parecido ao de um alpinista que de um escalador” – garantiu a Pamela a energia necessária para encarar suas primeiras ascensões (quando o atleta abre uma rota), como na fenda Gabriel, no Parque Nacional de Zion, em Utah. Por esse feito, a conceituada revista Climbing a premiou, em 2009, com o troféu Golden Piton pela escalada mais difícil já feita por uma norte-americana. Ela conta que, com o passar do tempo, percebeu que escalar em fendas exigia mais técnica e eficiência do que potência. Com apenas 1,60 metro e 47 quilos, desenvolveu técnica impecável para compensar a baixa estatura e suportar equipamentos que, juntos, equivalem a um quinto do que ela pesa. “Na escalada em fenda, tudo é voltado para a eficiência do movimento. E eu procuro me tornar excepcionalmente precisa ao eliminar movimentos extras e aperfeiçoar o resto”, analisa Pamela, que estuda as biomecânicas de diferentes técnicas para definir as que deve seguir.


FORTONA: Nenhuma escaladora de fendas é páreo para Pamela

A MODALIDADE OFF WIDTH possui movimentos singulares: hand-to-hand stacks (palma das mãos contra os dois lados da fenda), fist-to-fist stacks (dois punhos juntos entalados), entalamento de joelho, calcanhar ou peito de pé, e por aí vai. Além do mais, o corpo fica o tempo inteiro em contato com as paredes dos vãos. Como consequência, ter partes do corpo presas representa algo comum, mas perigoso. Segundo Pamela, isso faz com que seja absolutamente necessário para o atleta “entender a pressão externa que ele cria sobre o corpo entre as duas superfícies rochosas durante o movimento de ascensão”.

Há ainda a situação mais perigosa: cair durante uma inversão e bater a cabeça, que na maior parte das vezes não está protegida por capacete, já que isso impossibilita ao atleta se enfiar em espaços apertados. Para deixar a situação ainda mais dramática, os escaladores de fenda convivem com muito sangue durante as subidas, resultado de hematomas e arranhões que surgem com o atrito na rocha. Tornozelos fraturados, costelas deslocadas, dentes quebrados e ruptura do rim são só algumas das lesões que Pamela coleciona até agora. Ela revela que chora sempre que recebe a seguinte notícia: “Dois a três meses de fisioterapia, sem escalar”. Mas se recompõe logo em seguida ao olhar para as dificuldades de forma “divertida”, sempre tirando boas lições de cada uma. “Vejo as lesões como desafios que, no final, vão me beneficiar de alguma forma. Elas me ensinam a ter paciência e a modificar o foco do treinamento para as fraquezas que as causam. Sinto-me mais forte quando retorno de um período de recuperação.”

Ter um lado psicológico forte é essencial para o tipo de desafio que Pamela e Patrick Kingsbury, seu parceiro de escaladas, procuram, como abrir rotas ou seguir vias que, por exemplo, a lenda Bob Scarpelli desbravou no final dos anos 1980. Um dos exemplos é a via Jihad, em Vedauwoo, descrita por Scarpelli como “uma rota que, em certo momento, te faz parar de escalar para tentar sobreviver”. Passaram-se 25 anos sem que ninguém se aventurasse pela Jihad, até que Pamela resolveu domá-la no final de 2013.

Encarar picos nunca antes explorados significa estar sujeito a descobrir, na hora, as adversidades de cada fenda. Fredrick Marmster, fotógrafo que acompanha Pamela há dois anos em missões extremas, observa: “Ela sempre abre rotas que exigem muita limpeza de detritos e podem apresentar novos desafios, como garantir que nenhuma pedra se desprenda e caia no companheiro logo abaixo”.

No pico Soul Assassin (Assassino das Almas, em portugês), em Indian Creek, em Utah (EUA), Pamela enfrentou a inversão – sua especialidade – mais difícil da carreira, em um trecho da fenda que batizou de Event Horizon. Foi o único lugar em que falhou na primeira tentativa. “A via parecia simples. Mas, como às vezes acontece em rotas com fendas invertidas, era mais difícil do que eu esperava”, reflete. As imagens da escalada ao Soul Assassin fazem parte do filme Off-Width Outlaw, dirigido por Celin Serbo. O fotógrafo Fredrick estava por perto durante as filmagens do documentário e recorda: “Era algo superdifícil, e existia o risco de ela cair da fenda e bater a cabeça na borda logo abaixo. Foi amedrontador e impressionante.”

Além de mostrar a carreira de Pamela, o filme procura explicar as particularidades da escalada em fenda, modalidade que, nas palavras da escaladora, “ainda é um pequeno e estranho mundo”. Para ela, a modalidade agrada a um tipo muito particular de escalador. “Não é uma vertente glamorosa, e parece que somos agredidos todo o tempo enquanto subimos. Choramos, vomitamos e nos sentimos sufocados. Ficamos cobertos de cicatrizes e temos de nos vestidos para a guerra: joelheiras, ombreiras, tornozelos e mãos enfaixados, tênis de cano alto, jeans e camisas de manga comprida, enquanto fazem 30 graus na sombra”, descreve. Mesmo assim, Pamela acredita que o off width seja a forma mais “bonita, atraente e artística” da escalada.

Tirando os meses em que se recupera de lesões, a vida da atleta segue dominada pelas ilimitadas possibilidades que envolvem buscar fendas intocadas, sempre à procura do desconhecido. “Existem tão poucos lugares que restaram para explorar, tão poucos locais inóspitos no mapa, e as primeiras ascensões em fendas me dão a oportunidade de criar algo do que, para muitos, não é nada mais do que um pequeno espaço vazio.”

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de agosto de 2014)