Sem obstáculos


BORA RALAR: Joe De Sena e seu cão Noodle

Joe De Sena criou uma das maiores tendências no mundo dos esportes da atualidade: as obstacle races ou corridas de obstáculos, provas em que os participantes precisam vencer desafios como pular cercas de arame farpado e carregar pedras com carrinhos de mão. Fomos ver de perto a rotina brutal de exercícios a que ele submete a si mesmo, seus funcionários e até os filhos pequenos

Por Peter Vigneron
Fotos Andrew Hetherington

CONHECI JOE DE SENA no fim de 2013 na casa de seus sogros, em Massachusetts (EUA). Sentado próximo à mesa da cozinha em frente ao seu computador, Joe virou para a sogra, Laurel, e disse que tinha um novo “projeto”: um motorista de caminhão chamado Danny. Joe é empresário e corredor de aventura das antigas. Há dez anos, ele se desfez de sua empresa em Wall Street e mudou-se com a família para a pequena cidade de Pittsfield, no interior do estado norte-americano de Vermont. Logo começou a organizar suas próprias competições, incluindo a Death Race (Corrida da Morte), uma mistura de corrida de aventura com desafios militares de sobrevivência, com vários dias de duração. Em 2010, ele fundou a Spartan Race Inc., uma empresa de US$ 60 milhões que promove corridas de obstáculos que estão entre as mais populares do mundo. Para quem não sabe, as obstacle races são competições multiesportivas em que os participantes precisam enfrentar duríssimos desafios – parecem um treinamento militar, só que mais sádicos.

Desde que a Spartan começou a fazer sucesso, a fazenda de Joe tornou-se hospedagem para um mix de pessoas que vão de aspirantes e atletas de elite desse tipo de prova a gente como o motorista Danny. Quando Danny apareceu em uma prova pela primeira vez, estava muito acima do peso e estressado de tanto dirigir seu caminhão. Após a morte do pai, quando ele tinha 17 anos, comer tornou-se sua válvula de escape. Aos 20 e poucos anos, estava com quase 200 quilos. Até que ele telefonou para Joe e disse: “Estou acima do peso, eu queria…”. E Joe prontamente respondeu: “Sim, você pode vir”.

Danny chegou a Pittsfield no final de julho de 2013, e Joe foi logo explicando as regras. Para se manter nos ideais da Esparta antiga – ter apenas o que se precisa – e da Spartan Race, Danny concordou em abrir mão da carteira e fazer o que Joe mandasse. Não se sabe se Danny realmente compreendeu, naquele momento, o que aquilo significava, mas concordou em obedecer. Joe deu a Danny um saco de maçãs e quatro litros de água, e disse-lhe que caminhasse até um chalé de pedra no topo da montanha – a 1,6 quilômetro e 300 metros acima de sua fazenda. Durante a semana seguinte, Joe botou Danny para realizar trabalhos manuais durante 12 a 14 horas seguidas. Em alguns dias, Danny caminhava por mais de 24 quilômetros. Durante os primeiros dez dias, Danny só podia comer maçã.

“Só maçã?”, perguntei.

“Dez dias comendo apenas maçã. Eu o limpei. Porque ele se alimentou de Pizza Hut durante 20 anos.”

“Isso significa quantas maçãs diárias?”

“Não sei… vinte ou trinta por dia”, respondeu. “Ele disse que nunca mais queria ver uma maçã na vida.” Joe parou para comer uma uva, e percebi que Laurel e o marido, Bob, escutavam atentamente. Joe estava se revelando um sádico, e eles pareciam preocupados.

“Como está o ânimo dele?”, perguntou Laurel.

“A essa altura do campeonato, ele está bem quebrado”, disse Joe, referindo-se aos poucos meses de Danny em Vermont e a seus mais de 50 quilos perdidos.

“Ontem pela manhã ouvimos falar que alguém bateu um shake de proteína para ele, o que é proibido, porque Andy e eu queremos que Danny coma apenas frutas e vegetais crus”, contou Joe, sorrindo. Andy é Andy Weinberg, co-fundador, ao lado de Joe, da Death Race e da Spartan Race. “Nós o acordamos às quatro da manhã. Estava um breu. Andy carregava uma motosserra, pois queria cortar umas árvores caídas. Danny nem percebeu que Andy estava com a tal motosserra, porque está exausto com as 14 horas de labuta e tudo mais. Começamos a encher o saco dele por causa do shake de proteína. Daí entramos na mata e ficou ainda mais escuro, não se via nada, e o Andy encontrou a árvore e ligou a motosserra. Depois de picotarmos a árvore, não achamos mais o Danny.” No fim, Joe e Andy voltaram para casa. Danny estava lá, aterrorizado e tremendo. “Ele achou que, por causa do lance do shake, nós iríamos esquartejá-lo.”

“Ah, não!”, gritou Laurel.

“Com a motosserra!”, disse Joe, rindo.


RESPIRA, JOE: Uma rara pausa na vida do treinador empresário


MALUQUETE: Cena comum na rotina da fazenda


SEIS MESES DEPOIS, visitei Joe em Pittsfield, pouco antes do anoitecer. No inverno, ele frequentemente treina no celeiro de dois andares, ao lado da sede da fazenda. Quando entrei, o cachorro do Joe, um vira-lata misturado com pit bull chamado Noodle, veio me saudar na porta. Consegui distinguir um som de respirações fortes e ritmadas. No andar de cima, Joe estava no meio de uma série de flexões de braço, vestindo uma calça de pijama de flanela e um gorro preto. Ele tem 45 anos, testa grande, cabelo curto e um tórax largo e musculoso. Seu primeiro negócio foi uma empresa de limpeza e construção de piscinas em Nova York, e ele ainda conserva o visual calejado dos homens que fazem trabalhos manuais. Ele parou um pouco para acalmar o Noodle e dar um alô, depois voltou para mais uma série.

No canto, Andy, que mora ali perto, fazia afundos e barras, vestindo camiseta vermelha e calça verde-oliva. Aos 43 anos, ele é um dedicado e enérgico organizador de provas, professor e ex-técnico de natação. Em outubro passado, completou um Ironman quíntuplo – 19,5 quilômetros de natação, seguidos de uma pedalada de 900 quilômetros e uma corrida de 210 quilômetros, um dos primeiros a conseguir fazer um triathlon desse tamanho. Certa noite em Pittsfield, dei de cara com Andy se preparando para correr e vi que ele usava um colete com pesos que somavam 25 quilos.

Em 2004, Joe e Andy organizaram a primeira edição da Death Race, em que um participante quase se afogou por ter ficado preso num gancho debaixo d’água. “Quando começamos a elaborar a Death Race, tivemos que segurar um pouco o Joe”, contou Shaun Bain, ex-parceiro do Joe em sua equipe de corrida de aventura. “Nós dizíamos: ‘Você não pode fazer isso, alguém vai morrer!’.” Atualmente a prova é um pouco mais segura, apesar de ainda ser um festival de sofrimento que pode incluir desde carregar esterco num carrinho de mão até mergulhar em um lago enlameado em busca de moedas de um centavo. Durante a prova de 2013, os 300 competidores passaram o primeiro dia inteiro construindo uma escadaria de pedras de 1,5 quilômetro montanha acima. Apenas 40 conseguiram cruzar a linha de chegada. Até 2009, a Death Race havia conseguido atrair a atenção da mídia nacional, mas não muitos participantes. Na tentativa de criar uma competição mais acessível, Joe e Andy criaram no ano seguinte a série Spartan Race, bem menos exigente, e saíram em busca de corredores, triatletas e amantes do CrossFit.

Em seu celeiro, Andy contou-me alegremente que às cinco da manhã ele e Joe haviam saído para uma corridinha antes de acordar as crianças. “Ou ele me acorda cedo, ou eu o acordo”, diz Joe. “Andy é um maluco, e é inspirador estar por perto de alguém assim. Além disso, se eu tiver um problema ou precisar de ajuda, ele sempre está lá para me ajudar.”

Enquanto Andy conversava comigo, Joe terminou sua série diária de 300 flexões de braço seguidas de saltos e começou a subir por uma corda grossa pendurada do teto do celeiro. A poucos metros dali, três dos quatro filhos de Joe – Jack, de 8 anos, Charlie, de 6, e Catherine, de 4 – faziam alongamento e chutes altos ainda vestindo pijama (a mais nova, Alexandra, tem um ano e meio). Um professor chinês de kung fu chamado Sunny, um lutador de MMA chamado Jose e um terceiro homem davam instruções.

Jose pediu a Charlie que contasse até 30 em chinês e as crianças se alinharam e encostaram em uma viga para fazer agachamentos em uma perna, com o outro tornozelo cruzado por cima do joelho. Sunny gritava “chi” para abaixar e “qilai” para subir. Quando Charlie não conseguiu subir na terceira repetição, Sunny o repreendeu docemente em mandarim, depois o agarrou pelo cangote da camisa e o colocou de volta na posição.

Logo, as crianças estavam absortas em uma divertida brincadeira. Jack, o mais velho, tirou a camisa do pijama. “É bom que ele esteja tirando a camisa”, diz Joe para mim. “Isso significa que ele está entrando no clima. Ele reclamou desses exercícios durante dois anos, mas sabe-se lá o que aconteceu. Talvez algum garoto da escola tenha reparado na barriga tanquinho dele.” Jack corre de um lado para outro do celeiro e, depois, para o banheiro. Joe pede licença e vai pular corda.


VIDA DURA: Obrigações diárias da fazenda


DEPOIS DO TREINO, Joe toma uma chuveirada rápida e vamos de carro até a mercearia que ele comprou em 2004. A loja se localiza na cidade, um quilômetro e meio ao norte da fazenda. Fora a loja, Joe também é proprietário de um hotel, uma empresa que organiza casamentos, um retiro tipo Spartan para executivos e meia dúzia de propriedades residenciais pela cidade. A maior parte da equipe da Spartan – aproximadamente 50 pessoas – agora trabalha no quartel-general da empresa, em Boston, e Joe se desdobra entre a loja e o balcão da cozinha de sua casa em Pittsfield, onde pilota um MacBook Air, um celular e um telefone fixo, frequentemente ao mesmo tempo.

No ano passado, mais de dois milhões de pessoas participaram de provas de obstacles races só nos Estados Unidos, quatro vezes o número de pessoas que correram maratonas naquele país. De alguma forma, a corrida de obstáculos é o esporte que mais tem crescido na história dos Estados Unidos, com dezenas de eventos que vão de corridas só para mulheres, como as Dirty Girls, a provas com zumbis, entre elas a Zombie Mud Run.

No ano passado, a Spartan atraiu mais de 650 mil competidores em 35 eventos nos Estados Unidos e 20 eventos internacionais, gerando mais de US$ 60 milhões de dólares de receita. Mesmo assim, a empresa ainda não dá lucro. “Espero que a TV nos ajude a crescer”, diz Joe. Em novembro, o canal NBC veiculou uma cobertura de 90 minutos do Campeonato Mundial da Spartan Race e se comprometeu a divulgar pelo menos 12 corridas nos cinco próximos anos. Joe está atualmente envolvido em um esforço para organizar uma federação para o esporte. Seu objetivo final é ver as corridas de obstáculos nas Olimpíadas.

À medida que a Spartan se expande, os outros negócios de Joe passaram para segundo plano e, nos próximos meses, Joe pretende transferir a mercearia para um casal de New York. “A Spartan está tão grande e tão bacana que eu quero me livrar das outras empresas.”

No escritório na parte de trás da loja, Joe conversa com sua esposa, Courtney, que cuida da empresa que organiza casamentos. “Joe constrói as coisas, mas daí precisa encontrar pessoas para gerenciá-las”, diz. Ele aponta para um cara carregando uma mochila estilo militar, de onde sai o cabo de um machado. Seu nome é Mark Jones e, apesar de ele estar na cidade há apenas uma semana, Joe parece bem empolgado com sua presença. “Gostei do Mark logo de cara”, conta-me. “Ele é totalmente empenhado, sabe?”


SUFOCO: Andy (de verde), Joe e funcionários da Spartam exercitando-se

Eu me apresento, e Mark junta-se a nós na mesa. Ele tem 31 anos e serviu duas vezes no Iraque. Um problema médico recentemente o impediu de ser indicado para as Forças Especiais e, cinco dias antes, ele havia dirigido 900 quilômetros até Pittsfield após receber um email em massa disparado por Andy e Joe. Nele, os dois se ofereceram para treinar e alojar qualquer um que se propusesse a completar o Desafio Death Race: terminar os quatro eventos – as versões de inverno, verão, em equipe e no México – em um mesmo ano. A esposa de Mark abandonou-o há pouco tempo, e ele não tinha para onde ir. “O email deles salvou minha vida”, afirma.

Após o café da manhã, Mark sai com Miguel Medina, um competidor profissional da Spartan que está vivendo na fazenda. Em setembro de 2013, Miguel havia sido convidado a se mudar para Pittsfield sob a condição de que construísse um chalé e ali permanecesse durante o inverno. Durante minha primeira visita, em novembro, Joe mostrou a construção de Miguel. Nos encontramos na mercearia, onde Joe me contou que passara a manhã carregando pedras. “Adoro carregar pedras”, diz. Alguns minutos depois, dirigimos até a fazenda. Joe salta do carro e começa a trotar morro acima, primeiro em uma trilha aberta, depois em um singletrack e, mais adiante, no meio do mato.

Pegamos outra trilha, que leva a uma encosta íngreme. De repente a história das pedras fez sentido. Eu achava que Miguel estaria construindo um chalé de madeira, mas Joe decidiu que seria de pedra. Miguel e uma pequena equipe de homens haviam escavado uma fundação e se ocupavam agora de empilhar pedras para construir as paredes, começando a um metro de profundidade e elevando-se até dois metros do chão. A tarde estava fria e chuviscava, e Miguel, com calças velhas de esqui, barba e cabelos compridos, parecia mais um sem-teto miserável do que um atleta de elite.

Miguel havia largado seu trabalho como intérprete em Los Angeles, vendido a maior parte de suas posses e não tinha equipamentos para enfrentar o frio. Durante as primeiras e inesperadamente gélidas semanas do outono, dormiu em um saco de dormir infantil emprestado, num celeiro sem aquecimento da fazenda. O projeto do chalé estava drenando as energias de Miguel para o treino, e achei que havia chances reais de que ele não durasse até o fim do inverno.

Pensei muito em Miguel durante os meses que se seguiram e, um certo dia após o café da manhã caminhei pela floresta para ver como ele estava. Quando cheguei ao ainda inacabado chalé, Miguel era todo sorrisos. Após meses de sofrimento, ele conseguira criar uma rotina: corria ou fazia musculação às cinco da manhã e novamente às cinco da tarde, trabalhando na construção ou em projetos de manutenção entre uma coisa e outra. “É fácil desistir. O difícil é se manter firme em algo durante um tempo”, diz.


MUITAS PESSOAS QUE VÊM A PITTSFIELD são extremamente bem preparadas – soldados e atletas de endurance profissionais ou quase profissionais. Mas também há gente como Danny, o cara das maçãs que precisava perder peso, ou Matt, um jovem autista que apareceu na fazenda quatro anos atrás em busca de um lugar para morar e que agora faz a manutenção das trilhas de lá. Dentre aqueles que perseveram na fazenda, o traço comum é a tenacidade, e não a força física. “Dizer que isto aqui é apenas um teste físico é subestimar a coisa”, diz Marion Abrams, um local de Pittsfield que faz vídeos para Joe. “Para essas pessoas, é algo mágico, uma mudança na vida.”

Ao longo dos anos, Joe já convidou dezenas de milhares de pessoas para irem a Vermont. Das centenas que apareceram, ele estima que 95% abandonaram o lugar em poucos dias e, no máximo, 150 pessoas passaram um tempo significativo na fazenda. Em uma das minhas primeiras entrevistas com Joe, perguntei quantas pessoas permaneciam com ele. Ele fez uma cara de intrigado e começou a lista de nomes. “Oito?”, disse. “Talvez 12?” Mais tarde, já em Vermont, tentei fazer um censo por minha conta, mas as fronteiras entre funcionários e discípulos da Spartan nunca foram muito claras. Desisti depois de contar 14.

Danny voltou a Chicago antes de eu ter a chance de conhecê-lo. Quando nos falamos por telefone, disse que o incidente da motosserra e as maçãs foram difíceis, mas que sua pior experiência acontecera durante a primeira semana na fazenda. Numa noite, ele se perdeu na floresta enquanto caminhava para o chalé. Vagou seis horas sozinho na mata até encontrar uma estradinha que levava à cidade, onde passou a noite num restaurante que estava destrancado. “Pensei em pegar minhas coisas e voltar para casa, mas um monte de gente se mobilizou ao meu redor”, disse. Ele acabou permanecendo mais dois meses e foi embora tendo completado uma Spartan Race de 21 quilômetros.

De volta a Chicago, Danny engordou metade dos 50 quilos que havia perdido. Ele estava tentando manter uma vida saudável, mas achou muito difícil continuar no estilo Pittsfield. “Não posso simplesmente ir até o mercado de orgânicos quando tenho vontade”, falou. Ainda assim, Danny enxerga sua temporada em Vermont como incrivelmente positiva. “Tenho uma qualidade de vida melhor do que antes”, afirma. “Acabei aprendendo muito sobre mim mesmo, além das lições valiosas sobre saúde. Por exemplo, como ser um pouco mais autoconfiante.”


SPARTANZINHO: Jack e Catherine fazendo seus exercícios no celeiro


O PAI DE JOE, Ralph, empreendedor e investidor imobiliário do Queens, em Nova York, era um workaholic e exigia o mesmo do seu filho. Num sábado, quando Joe estava no ensino fundamental, seu pai deu-lhe a tarefa de mudar de lugar uma pilha de tijolos. Joe passou a noite inteira acordado, esperando poder descansar no domingo. “Eu movi uma carga inteira de tijolos sozinho, para que pudesse dormir no domingo”, contou. No domingo pela manhã, a resposta do pai foi: “Vi que você terminou sua tarefa com os tijolos. Agora vamos para o próximo desafio.” “Nunca era suficiente", contou-me Joe. “E eu tenho o gene dele.”

No começo dos anos oitenta, os pais do Joe se divorciaram e ele se mudou com a mãe e a irmã para outra cidade. No Queens, o pai do Joe tinha ligações com a máfia italiana, e o precoce Joe começou a negociar fogos de artifício no mercado negro. Durante um tempo, ele vendeu bombinhas na nova escola. Quando a diretora descobriu e acabou com seu “negócio”, ele começou a vender camisetas. Daí ficou obcecado com provas de BMX. Quando tinha 15 anos, pedalou 56 quilômetros até uma competição no norte do estado de Nova York, venceu três corridas e tentou pedalar de volta (a mãe de um amigo deu carona para ele, depois de encontrá-lo dormindo na beira da estrada, exausto).

Durante os verões no tempo de faculdade, ele começou uma empresa de limpeza de piscina no Queens. Em 1994, em busca de mudanças, ele ouviu os conselhos de um amigo em Wall Street, vendeu a empresa e mudou-se para Manhattan para começar no ramo de investimentos. Investir era divertido, mas deixava muito tempo ocioso. “Eu não sabia o que fazer durante os finais de semana quando os mercados estavam fechados”, conta. Ele acordava cedo e andava por Manhattan, inquieto. No final dos anos noventa, Joe fundou uma pequena firma de gerenciamento de investimentos chamada Burlington Capital Markets. A empresa teve alguns tropeços iniciais, mas seguiu com o que Joe descreve como “dez anos de muito sucesso”.

Preso a uma mesa de escritório o dia inteiro, Joe engordou 15 quilos. Não sendo o tipo que frequenta academia, começou subir e descer correndo os 32 lances de escada de seu prédio para perder peso. Daí descobriu as provas de endurance. Em alguns meses, estava obcecado. No auge de sua carreira de atleta, completou uma corrida de montanha de 160 quilômetros, um Ironman e a ultramaratona Badwater, de 260 quilômetros, em uma só semana.

No ano de 2000, Joe entrou em uma corrida de aventura de 560 quilômetros disputada ao norte de Quebec, no Canadá. No terceiro dia, enquanto esperava a organização da corrida consertar uma corda arrebentada para a etapa seguinte – um rapel de 470 metros por um penhasco –, Joe e sua equipe foram forçados a se enterrar na neve para se manterem aquecidos. A temperatura caiu para 34 graus negativos, e Joe começou a ter alucinações com hambúrgueres. Essa prova criou nele um novo nível de tolerância ao sofrimento, além de uma perspectiva peculiar a respeito da diferença entre uma experiência difícil e uma desesperada. “Aquilo mudou minhas referências.”

Alguns anos depois, em uma prova de triathlon, Joe conheceu Courtney Lawson, uma talentosa atleta de futebol americano. O primeiro encontro dos dois foi um rolê de caiaque de oito horas, em que Joe lhe contou sua história de vida. “Joe ‘entra nas pessoas’”, diz ela. “Quando você o conhece, fica tão empolgado que até se queima. Ou ele entra em você, ou você sai queimado.”

Em 2004, Joe e Courtney compraram a fazenda e se mudaram para Vermont. Os primeiros anos não foram fáceis. A cidade tem uma população de aproximadamente 500 pessoas, e nem todo mundo achou legal um nova-iorquino rico de repente começar a comprar as propriedades locais. Os governantes também não apreciaram muito sua atitude de “construa primeiro, peça alvará depois”. Começaram a aparecer placas na cidade que diziam “Joe, vá embora!”.

À medida que a Spartan Race e os outros negócios começaram a crescer, os residentes da cidade optaram por abraçar o estilo de vida de Joe, ou engolir o sapo e fazer as pazes com ele. A atividade econômica gerada pela Spartan ajudou nisso, assim como a resposta de Joe ao Furacão Irene em 2011, que devastou a área central de Vermont e deixou Pittsfield isolada por mais de duas semanas. Pilotando uma retroescavadeira por 20 horas ao dia durante e depois da tempestade, Joe construiu barragens contra as águas da enchente, limpou detritos e remendou pedaços das estradas e calçadas dos vizinhos que haviam sido destruídas pelas águas.


ATÉ NO FRIO: Joe durante uma "corridinha" com botas de esqui

CADA VEZ MAIS, JOE SE VÊ como um “evangelizador” de um estilo de vida fisicamente ativo e totalmente focado. Enquanto a ideia por trás da Death Race é identificar pessoas excepcionais, o objetivo da Spartan é encorajar pessoas normais a viverem vidas excepcionais. Pittsfield é o núcleo principal da cultura Spartan, mas Joe sempre tem notícias de grupos de treino pelo país todo. Desafie as pessoas, acredita Joe, e elas frequentemente irão responder de forma inesperada.

Com a expansão da empresa, Joe teve que aprender a ser mais diplomático. Ainda assim, me parece que é a organização e o mundo das corridas de obstáculos que estão se adaptando ao estilo do Joe. “Ele é um dos caras mais difíceis de negociar”, conta Mike Reilly, do Active.com, maior site de calendários esportivos do mundo. “Mas não de um jeito ruim. Tenho muito respeito por ele, porque está construindo uma empresa de maneira que nada atrapalhe seu caminho. Só é preciso saber batalhar contra ele nesse front.”

Um dia, enquanto carregávamos pedras para a obra do Miguel, perguntei a Joe se ele se preocupava com o fato de que algumas pessoas o viam como um homem selvagem que deveria ser domado. “Acho que até meus investidores pensam isso”, respondeu, enquanto levantava um balde de 25 quilos de pedras em cada mão. “Na verdade, não acho que eu seja um cara selvagem. Acho que isto, sim, pode ser percebido como selvagem”, continuou, referindo-se às pedras no balde. “Porque não é normal. Porém acho que, se você olhar bem, é muito lógico. Tudo que eu faço é bem pensado.”

Alguns baldes depois, Joe menciona que não tem certeza se seus meninos irão se tornar o tipo de homem que tira as armas dos caras maus, ou se eles próprios serão os caras maus e armados – em outras palavras, ele não tem certeza se está construindo caráter, ou deformando-o. Parece-me uma preocupação justa. Nos meses anteriores, Joe havia me contado várias histórias um tanto assustadores a respeito da criação dos filhos: como quando ele convenceu os garotos a correrem uma meia-maratona quando tinham 5 e 7 anos. Ou quando ele fez Jack subir um morro a pé carregando a própria mochila, em vez de pegar o teleférico. No verão passado, ele colocou um colete salva-vidas em Charlie e levou-o para atravessar um lago a nado. “Estávamos a três quartos do caminho para terminar a travessia quando o menino começou a gritar. Claro, ele estava congelando. Daí eu disse: ‘Charlie, a grandiosidade está a 400 metros daqui. Nós temos que conseguir. Apenas 400 metros’. No cais havia a casa de uma mulher. Ela escutou o Charlie, saiu numa prancha de SUP e começou a gritar comigo. Começamos a brigar. Ela berrava: ‘Você tem que levar esse menino para a margem agora!’. E eu respondi: ‘Para a margem? Estamos a 400 metros da grandeza! Ele tem 5 anos, vai conseguir nadar!’. Joe parou de falar, fazendo um sinal de que havia terminado a história.

“E como terminou?”, perguntei.


DUPLA JORNADA: Joe e Andy na loja

“Ele conseguiu.”

Pela quantidade de energia que tem, Joe é relativamente bem educado, e nunca ouvi ele ou Courtney erguerem a voz, perto ou longe das crianças. Uma noite, quando eu estava tomando chá com os dois na cozinha, perguntei o que eles diriam às pessoas que acharem que a educação de seus filhos é extrema. “Este é o jeito que o Joe gosta de criá-los, e eu concordo. Aliás, eu admiro”, disse Courtney.

Quando eu estava de saída da cidade na manhã seguinte, acordei tarde e parei na mercearia para tomar um café. Estava um dia frio e ensolarado, e eu me sentia envergonhado de ter amarelado para o treino com Joe e Andy de manhã. Lá dentro, topei com Mark, que ia dar uma carona para Miguel até a estação de trem.

“Vocês treinaram juntos hoje de manhã?”, perguntei.

“Miguel não, porque ele tem uma prova logo mais”, respondeu Mark. “Acordei à meia-noite e fiz uma caminhada de seis horas”, disse. “Eu queria treinar navegação com privação de sono. E, você sabe, tudo fica diferente no escuro.”

Paguei meu café, desejei boa sorte a Mark e Miguel e voltei para casa.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2014)