Desvio de rota

Na tentativa de conter os congestionamentos de turistas no Everest, governo nepalês abre novas montanhas para escaladores ocidentais; o montanhista e guia MAXIMO KAUSCH analisa aqui o impacto da decisão


SEM MUVUCA: O famoso maciço do Cho Oyu, onde fica o Monte Tenzing, recém-aberto
para escaladores pelo governo do Nepal
(FOTO: Coolbiere)

NÃO ACHE QUE FILA é só coisa de banco brasileiro. Isso também acontece, e muito, na maior montanha da Terra. Atualmente, além de precisar desembolsar US$ 50 mil para escalar o Everest, você ainda precisa enfrentar uma fila de 200 pessoas a 8.000 metros de altitude. E não pense que linchamento é algo restrito aos bairros mais pobres do Guarujá – você pode ser agredido fisicamente também no Everest. Foi exatamente o que aconteceu no ano passado, quando três alpinistas de elite, entre eles o suíço Ueli Steck e o italiano Simone Moro, tentaram escalar a montanha por conta própria e quase foram linchados por cem sherpas a 6.500 metros. Também não ache que lixo a céu aberto é uma visão exclusiva de grandes cidades de países em desenvolvimento. No Everest, você encontrará toneladas de lixo espalhadas pelo caminho até o cume, localizado a 8.848 metros.

Brigas, filas, lixo. Tratam-se de problemas típicos de lugares saturados de gente. É comum, hoje, encontrar milhares de pessoas em montanhas badaladas como o Everest acotovelando-se para pisar no topo. A bomba-relógio finalmente explodiu em abril de 2014, quando uma avalanche tirou a vida de 16 sherpas (etnia nepalesa contratada para ajudar expedições estrangeiras nos Himalaias). A reputação do Everest foi ao chão. A culpa, porém, não foi da natureza. Avalanches acontecem o ano todo. A questão é que o excesso de turistas está fazendo com que um número maior de sherpas tenha que trabalhar mais e mais duro para garantir a segurança dos clientes pagantes. Cuidar de um rebanho de mil pessoas em grandes altitudes não é nada fácil, especialmente em áreas técnicas na face sul do Everest.

A etnia sherpa é mais forte e eficiente em altitudes extremas devido a sua genética, adaptada ao longo de milhares de anos vivendo nos Himalaias. Estes superhumanos são hoje, no entanto, verdadeiros “mordomos de altitude”, encarando uma trabalheira danada para garantir que seus clientes alcancem o cume. No Everest, isso é feito por meio das chamadas cordas-fixas, pré-instaladas em toda a montanha para que os ocidentais não precisem exatamente escalar, apenas subir pelas cordas. Um dos piores lugares do Everest para fixar essas cordas é uma complexa cachoeira de gelo chamada Khumbu, localizada logo acima do acampamento-base. Por se tratar de uma cascata de gelo de cinco quilômetros, está em constante movimento, e é comum que avalanches aconteçam por lá diariamente.

Todos os que sobem pelo Khumbu conhecem bem seus riscos. Não há como prever uma avalanche, então o que nós, alpinistas e guias, fazemos é minimizar ao máximo nossa exposição a esse tipo de ambiente. Quanto maior o número de pessoas transitando pelo Khumbu, maior o risco de acidentes fatais. Os sherpas, porém, não podem se dar ao luxo de minimizar seu tempo em lugares propícios a avalanches. Resultando? A impressionante cifra de 16 mortos em 19 de abril deste ano.

Após essa avalanche mortal, a montanha foi fechada, e a grande maioria das expedições abandonou o Everest. O governo precisava de uma solução rapidamente. A atenção dos turistas de montanha tinha que ser divergida para outros lugares. Dos US$ 50 mil que cada uma das centenas de clientes paga por ano para estar ali, pelo menos US$ 10 mil vão para o governo, e a diferença no bolso seria bastante sentida. Para o governo nepalês, a solução mais sensata foi tentar tirar o foco do Everest e aumentar o turismo em outras montanhas do país.


COM MUVUCA: O sempre movimentado Escalão Hillary, último trecho antes de se chegar
ao cume do Everest
(FOTO: Flickr Vision)


VÁRIAS QUESTÕES SOBRE O PORQUÊ de os turistas simplesmente não irem às montanhas mais desconhecidas já foram levantadas. A mim mesmo já chegaram a perguntar se o Himalaia possui mais montanhas fora o Everest. Naquela região do mundo, as possibilidades são infinitas – há pelo menos 1.500 montanhas ali. Você pode, por exemplo, escalar o belo Kangchenjunga (8.586 metros), que tem quase a altitude do Everest, custa menos, mas não é tão famoso. Se você conseguir pronunciar o nome da montanha, poderá viver a aventura de sua vida e ver o que é uma verdadeira expedição a uma grande montanha sem precisar lutar por espaço com outras mil pessoas. Poderá ainda se dar ao luxo de contratar três sherpas só para te ajudar, como muitos clientes estão fazendo.

Em 2002 o governo nepalês apareceu com uma lista de 122 novas montanhas que seriam “liberadas” para os escaladores. Ao que parecia na época, tratavam-se de montanhas “virgens”, que ainda não haviam sido exploradas por montanhistas. Nove novas montanhas foram divulgadas em 2004, e mais 104 vieram a público e foram efetivamente abertas recentemente. A ideia de tornar o Nepal um destino quase exclusivo para a ascensão de cumes virgens era perfeita, pois poucos governos do mundo incentivam esse tipo de atividade. (na Cordilheira dos Andes, por exemplo, ainda estamos lutando para chegar a um consenso sobre qual é o nome das montanhas ou sua altitude. O total desconhecimento da existência de montanhas, piorado pelas burocracias impostas pelos países andinos, torna muito difícil o montanhismo exploratório nessa região).

A notícia dos “novos” cumes agitou os alpinistas de plantão. Uma grande quantidade de europeus, norte-americanos e neozelandeses, países com grande tradição em explorar montanhas, começou a escolher os melhores picos para sua próxima expedição. A última lista, divulgada após a avalanche de maio, tem 104 montanhas, como por exemplo o Monte Tenzing, com incríveis 7.916 metros. Há também o Monte Hillary, com 7.681 metros de altitude. Esses dois foram batizados em homenagem à dupla que primeiro atingiu o cume do Everest, em 1953. Mas as novas montanhas não param por aí: há o Monte Lachenal e o Herzog (nomes de protagonistas da primeira escalada a um cume com mais de 8.000 metros de altitude em todo o mundo). Todas estão abertas para os montanhistas.

No entanto, ao olhar com mais atenção, percebemos que não se tratam de montanhas independentes, mas, sim, de cumes secundários de montanhas que já estavam abertas para a escalada há muitos anos – inclusive algumas das chamadas novas montanhas já tinham, na verdade, sido escaladas. Além do problema da autoria de quem primeiro pisou no cume, outras discussões surgiram a respeito dos nomes. O Nepal rebatizou várias montanhas que já tinham sido nomeadas pelo próprio governo e que, para piorar, já possuíam outros nomes do lado chinês. Confuso? É que você ainda não viu os nomes!

Do total de 335 montanhas novas, pouquíssimas são cumes independentes. O próprio Monte Hillary eleva-se apenas 51 metros abaixo de sua “montanha-mãe”, o famoso e imponente Nuptse (7.861 metros). O Monte Tenzing é parte do famoso maciço do Cho Oyu, que já foi escalado milhares de vezes desde 1954. Tudo indica que, das milhares de expedições que foram ao imenso Cho Oyu (8.201 metros) durante todos estes anos, ninguém teve a curiosidade de seguir um pouco mais e escalar o braço nordeste da montanha. É como se alguém dissesse que São Paulo abriu uma nova montanha chamada Pico do Jaraguá Norte. Quem mora em São Paulo sabe que se trata do cume menor do Pico do Jaraguá, que fica colado ao cume principal, ou seja, é apenas um cume secundário. Sem desrespeito ao “pequeno-grande” cume do Jaraguá Norte, o cume principal ainda continua sendo…
bem… o principal. No entanto, se a campanha de marketing for bem feita, pode trazer muito turismo para o norte do Jaraguá. Mas, em 2014, quem gostaria de escalar uma montanha desconhecida dessas? Quem quer escalar o ponto mais alto da crista sul do Everest? Os turistas de montanha de hoje querem mesmo é escalar o Everest.

Isso tudo porque expedições da moda, como escalar os Sete Cumes (os mais altos de cada continente), são mais visadas. Diante disso, a questão central continua uma ferida aberta. Mesmo que o governo nepalês consiga trazer algum tipo de turismo a cumes renomeados ou reclassificados, o impacto negativo trazido por avalanches fatais e problemas envolvendo os sherpas não será esquecido tão facilmente.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2014)







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