Pego no pulo

Criado na periferia de Paris, o parkour não demorou para virar febre mundial, ganhar a publicidade e aparecer até no filme do 007. Para os praticantes mais radicais, a modalidade, no entanto, “se vendeu”. Com a palavra, Sébastien Foucan, precursor do esporte e do freerunning, sua mais nova vertente

Por Bruno Romano


DE CINEMA: Sébastien Foucan, pioneiro do freerunning, em cena de 007 Cvassino Royale
(FOTO: Eon Production)


NO FIM DOS ANOS 80, quando um pequeno grupo de jovens se divertia explorando a comunidade de Sarcelles, no subúrbio de Paris, a brincadeira era chamada de “parcours”. O nome vinha de um termo comum no treinamento de guerra francês: parcours du combattant (em português, pista de obstáculos). Era exatamente como aqueles meninos enxergavam os muros, os vãos, as pontes e qualquer outro pedaço de madeira ou concreto que aparecesse no caminho. Foi assim, sem pretensões ou regras, que surgiu o parkour (com “k” e sem “s”), uma febre que se espalharia pelo mundo anos depois, ganhando destaque em filmes, propagandas e a enxurrada de vídeos independentes na internet.

Desta turma inaugural do esporte, David Belle e Sébastien Foucan acabaram se destacando. O primeiro é reconhecido hoje como o “inventor” do parkour, uma disciplina que mistura atividade física, treinamento e expressão corporal. O segundo, igualmente respeitado, lançou o documentário Jump London em 2003, quando apresentou o termo freerunning pela primeira vez. Para Sébastian, essa era a verdadeira continuidade do que haviam começado anos antes: uma nova modalidade, completamente avessa a competições, que busca a liberdade de movimento, de expressão e de espírito.

Em seus caminhos opostos, David e Sébastien viraram embaixadores de suas disciplinas e astros de Hollywood. Sébastien já foi destaque em produções de sucesso como 007 Cassino Royale e David acaba de lançar em abril deste ano um novo filme milionário em que é protagonista – Brick Mansions, ainda sem tradução para o português. Sébastien jura que o sucesso nunca foi planejado e que é apenas um reconhecimento do que ele e David começaram. A seguir, ele conta com exclusividade para a Go Outside sua versão da história.


INSPIRADO: Alguns exemplos do que Sébastien faz no freerunning
(FOTO: Divulgação)


(FOTO: Sébastian Foucan)


O COMEÇO

Quando começamos éramos um grupo de apenas três ou quatro amigos. Agora a cena está enorme. Mesmo assim, ainda somos uma comunidade pequena, onde a tendência é todo mundo se conhecer. Me incomoda bastante sermos chamados de inventores ou criadores. Nós só tornamos algo mais conhecido, mas já estava tudo aqui antes. Eu não acredito em criação. Acredito em evolução, adaptação e continuidade. David sempre menciona seu pai [Raymond Belle, nascido na Indochina e ex-membro do exército francês], que por sua vez fala de George Hébert [francês criador do “Método Natural”, série de treinamentos com base no lema “ser forte para ser útil”, no início do século XX], como influências. Eu tive outras, de desenhos animados a esportes radicais.


PARKOUR E FREERUNNING

Para alguém que nunca viu ou praticou essas duas disciplinas, não há nenhuma chance de reconhecer as diferenças à primeira vista. No começo da separação, foi criada uma batalha quase que forçada. Diziam: “freerunning são giros e truques e parkour é ir de ‘a’ para ‘b’ da forma mais eficaz e rápida possível”. David Belle chegou a declarar isso sobre o parkour, mas nunca concordei que freerunning eram giros e truques. O nome freerunning nasceu no documentário Jump London, no qual faço tanto parkour como freerunning, mas uso este novo termo pela primeira vez. A essência técnica é a mesma do parkour, mas incorporei à prática tudo que estava à minha volta e que achei útil. Para citar um bom exemplo: veja o que Bruce Lee fez nas artes marciais. Ele nunca criou exatamente nada de novo, mas juntou o que era interessante para ele e fez surgir uma disciplina própria. Hoje, Bruce é reconhecido por alguns como o pai do MMA (Artes Marciais Mistas). Para mim, o que o MMA é para as artes marciais, o freerunning é para o parkour: uma disciplina mista.


ESCOLA

Por um lado, as novas academias de parkour e freerunning são, sim, limitadoras da liberdade, pois não foi assim, nestes ambientes planejados, que nós começamos. Por outro lado, o esporte precisa se adaptar à demanda crescente. É natural que uma criança aprenda os movimentos com facilidade. Mas, para uma pessoa que já perdeu sua habilidade de se mover livremente, precisamos encontrar maneiras dela amortecer melhor seus impactos e achar sua coordenação de forma segura. De qualquer forma, é algo muito menos natural e livre do que na época em que começamos.


PIONEIROS

Todos os precursores estão bastante ocupados, pois o parkour se tornou esporte e negócio. Nós o trouxemos ao mundo, mas ainda precisamos do nosso ganha-pão. Não seria fácil pagar as contas dos fundadores em conjunto, com um mesmo projeto, por isso cada um está achando a sua maneira de sobreviver. É um novo ambiente – mais um obstáculo que surgiu à nossa frente. Eu me vejo como um embaixador que participou do início da disciplina. Nós demos o presente para o mundo, mas agora há um processo em movimento e todos são livres.


DAVID BELLE

Nossa relação não é mais como no começo. Para falar a verdade, mudou completamente. Nós ainda temos contato, mas ele está sempre ocupado, fazendo o que ele tem que fazer. Estamos em bons termos, mas não há muita conversa e também não temos tempo para estarmos juntos como na época em que éramos crianças.


CONCRETO

Muita gente fala da essência urbana do parkour e do freeruning, mas isso não existe. Por acaso morávamos em cidades, mas sempre praticamos em todo lugar possível. Talvez, se tivéssemos feito isso somente na floresta, ninguém ficaria tão interessado.


NOVA GERAÇÃO

Novas estrelas estão surgindo e há pelo menos um “cara do parkour” em cada país. Isso é esporte. O que costumávamos fazer era ter um estilo de vida, algo completamente diferente. Por isso não pactuo mais com o parkour e com o que vejo no You Tube. Eles estão atrás de performance: o quão alto podem pular ou quantos giros conseguem fazer. Parecem robôs. Eles vêm embrulhados com rótulos de “moderno” e “novo”, mas não há nenhuma novidade ali. É difícil dizer isso, mas hoje parkour e freerunning não têm mais os mesmos valores e princípios.


DO SUBÚRBIO PARA HOLLYWOOD

Nós praticamos por mais de dez anos sem a atenção de ninguém. Não havia internet, muito menos You Tube – não tínhamos nem câmera, por isso faltam registros dessa época. O que fazíamos era uma forma de escaparmos da sociedade, com vigor e potência. Ser ator de cinema não fazia parte do plano. Não sou dançarino, nunca estudei para ser ator, conheço muito pouco de filmagem e ir atrás de patrocinadores estava fora da minha rotina. O sucesso surgiu do reconhecimento do que nós estávamos fazendo.


O PRÓXIMO NÍVEL

Para quem está praticando freerunning, o próximo nível não envolve saltos, giros ou marcas, mas sim conhecer algo novo. Você está evoluindo? Esta é a primeira questão. Saber quem é o melhor não contempla o lado espiritual da disciplina – e eu sou uma pessoa muito espiritualizada. Acho que o freerunning busca o nível mais alto, não o melhor. Quem encontrou harmonia, quem achou paz com a prática? É isso que estou procurando. Essa é a minha jornada. É o que ensino a meus alunos [na Foucan Freerunning Academy, onde faz questão de acompanhar de perto as aulas].


COMPETIÇÃO

Para mim, homem versus homem nunca será uma evolução. Homem versus ambiente ou homem versus obstáculo é uma opção melhor. A competição é uma guerra moderna. Se você me perguntar o que acho positivo nela, vou dizer: a cooperação. Se for nesta linha, eu apoio. Mas a competição esportiva está mais para o entretenimento e para o confronto, o que não traz uma boa energia. É o contrário da cooperação.


BUSCA

Estou sempre atrás dos pioneiros, das raízes. Depois que algo ficou famoso e se tornou um negócio, acaba se distanciando da origem. É por isso que saí do parkour. Hoje me preocupo em me movimentar e evoluir como pessoa. Mesmo que eu seja conhecido como o “fundador do freerunning”, não é o que estou fazendo todos os dias da minha vida. Eu escalo, patino no gelo, me envolvo com música, enfim, faço tudo o que acho interessante. E esse é o verdadeiro estado de espírito do freerunning. É como Van Gogh, que pintava o que ele via, do jeito dele. Ele fazia porque amava, porque tinha algo dentro dele dizendo: “É isso o que eu quero fazer”. É assim que o parkour começou. Éramos poucos garotos, fazendo algo que sentíamos. Não para a câmera, não para a TV, não para a fama, muito menos para ver quem era o melhor. Só porque nós sentíamos que aquilo era liberdade.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de junho de 2014)