Paraplégico desde 2006, Fellipe Kizu encontrou na canoagem a forma de se manter são – e acabou virando fera nas competições, mesmo contra atletas sem nenhuma deficiência Por Kevin Assunção
EM NOVEMBRO DE 2013, o canoísta mineiro Fellipe Lima resolveu encarar sua primeira expedição solo, no Rio de Janeiro. Partiu logo cedo, às 8 horas, da Barra de Guaratiba, em um caiaque oceânico de cor verde, amarela e azul, até a Restinga da Marambaia. A bordo, uma mochila impermeável guardava 3,5 litros de água, alimentos secos, saco de dormir, toalha de banho, celular, carta náutica, apito e corda. No corpo, colete salva-vidas e uma GoPro acoplada ao boné. Na mente, todo o lado psicológico trabalhado para encarar a aventura de 76 quilômetros que duraria dois dias. Paraplégico desde 2006, Fellipe, então com 26 anos, tentou várias vezes organizar a viagem com amigos, mas nunca dava certo. Então pensou: “Porque não vou sozinho?”. Depois de 12h30 de remada, Kizu, como é conhecido, chegou à restinga. Uma imensidão azul de céu e água estendia-se pelo caminho, interrompida por poucas baías como a de Sepetiba, onde ele descansou por algumas horas antes de dar sequência à jornada. Passou a noite na Marambaia e, pela manhã, retomou o caminho de volta à Barra de Guaratiba. No momento em que já estava exausto, com os braços cansados e o vento leste intenso para atrapalhar, o paracanoísta aprendeu o que seria o principal ensinamento daquela expedição: “Não aguentava mais, porém a única opção era continuar. Parece que o corpo arruma força não sei de onde. Então você descobre que o limite está muito além do que acha”. Momentos como esse, que envolvem desafios mentais e físicos, permeiam a vida de Fellipe Kizu. Em 2013, ele se tornou um dos grandes nomes da paracanoagem brasileira. Conquistou o Sul-Americano de velocidade K1 nos 200 metros e trouxe para o país a 8ª colocação no Mundial da Alemanha. Além disso, Kizu também compete com atletas sem deficiência, consagrando-se entre os melhores nas provas nacionais de caiaque surf, waveski e canoagem oceânica. Apaixonado por esportes outdoor desde os 4 anos, o mineiro enfrentou o maior desafio de sua vida aos 18. Após um dia de aula em campo da faculdade de biologia de Belo Horizonte, ele encontrou com amigos em uma casa em Nova Lima, na região metropolitana da capital. O cansaço era tanto que, ao se sentar no parapeito da varanda para descansar, cochilou e caiu para trás, de uma altura de três metros. Kizu foi levado para o hospital João XVIII, no qual passou pelo “momento mais traumatizante da vida”, segundo suas próprias palavras. Deitado em uma maca, ele não compreendia por que estava no hospital para onde grande parte dos casos gravíssimos de Belo Horizonte é encaminhada. A seu redor, havia várias pessoas “arrebentadas”, recorda ele. Kizu só percebeu a gravidade da situação quando o médico informou-lhe o diagnóstico: três vértebras lombares fraturadas e danos na medula. Com isso, o rapaz perdeu o movimento das pernas e ficou paraplégico. “Ele me pediu para tentar mexer as pernas, mas não consegui. Nesse momento percebi o que tinha acontecido. Mudou tudo para mim ali naquele instante”, lembra Kizu. Após o choque inicial, Kizu decidiu se desviar das lamentações e olhar para frente, mirando seu próximo desafio: desvendar o que conseguiria ou não fazer sozinho. “Foi uma época de descobrimentos, mas não exatamente de aceitação”, define o mineiro, hoje com 27 anos. Em casa, contava com o apoio integral da família e dos amigos. Gostava de se sentir acolhido por todos, mas precisava se redescobrir por si só. Decidiu morar por um ano sozinho na Flórida, nos Estados Unidos. Além da busca pela independência, Kizu foi para o sudeste norte-americano para servir de “cobaia” no Project Walk, uma organização sem fins lucrativos criada para melhorar a vida de quem sofreu lesões na medula espinhal. O mineiro participou de um estudo por quatro meses. Um aparelho que funcionava como exoesqueleto recebia os estímulos do sistema nervoso e realizava o movimento das pernas de Kizu. Ele ficava sobre uma esteira, caminhando. À medida que aumentava a marcha, o “robô” ajudava menos. “Notei uma pequena melhora, mas nada que se tornasse funcional”, conta. Para se manter financeiramente nos Estados Unidos, Kizu trabalhou em uma loja que alugava caiaques. Remava sempre depois do expediente, nos mangues e no mar. “Senti que deslizava tranquilo, com equilíbrio”, diz. Mas seu maior desejo no caiaque era descer corredeiras. Logo depois que retornou ao Brasil, foi explorar de caiaque o rio das Contas, em Itacaré, na Bahia. “Desci umas cinco ou seis corredeiras diferentes. Quase morri em todas as vezes”, conta. Kizu sabia das precauções e dos perigos de se enfrentar águas brancas: é preciso estudar bem cada trecho da descida antes de botar para baixo. Mas nem ele nem os amigos tinham a expertise para analisá-las direito e, assim, a aventura acontecia bem ao estilo kamikaze.
A DESCOBERTA DO CAIAQUE teve enorme importância na vida de Kizu. Como ele mesmo diz, “esporte é vida”. “Se parar, você fica louco e arruma todo tipo de problema para a cabeça”, afirma. Descer corredeiras ou remar em mares e mangues, no entanto, não foram suficientes para preencher o espaço da falta do surf em sua vida. Na infância e na adolescência, Fellipe viajava com frequência para o Rio de Janeiro, onde a família possuía um apartamento. Nos dias na praia, admirava os surfistas, enquanto se divertia com o bodyboard. Começou a surfar aos 12 anos. “Depois que peguei minha primeira paredinha, já era. Resolvi fugir de Belo Horizonte pelo resto da vida, sempre para onde havia mar.” Três anos depois, Kizu estava na Gold Coast, na Austrália, em um intercâmbio de estudantes. Lá, a paixão por deslizar sobre as ondas cresceu ainda mais. E foi justamente em terras australianas, 11 anos depois, que Kizu resolveu seguir surfando, mas de uma forma diferente: abraçou a canoagem em ondas, modalidade que é dividida em caiaque surf (caiaque fechado) e waveski (aberto). “As manobras são praticamente as mesmas do surf. Batida, tubo, 360º, aéreo, cutback”, diz Kizu. Na volta ao Brasil, mudou-se para o Rio de Janeiro para se dedicar totalmente à empreitada. O primeiro caiaque surf de Kizu era pesado e cheio de buracos. Apesar de ruim, encarava as ondas. Na segunda passagem pela Austrália, em 2010, comprou um caiaque de maior qualidade. Por ironias do destino, o vendedor era quem organizava a etapa do mundial de caiaque surf, que estava prestes a acontecer, e convidou seu mais recente cliente para participar. O único canoísta cadeirante do evento alcançou o quinto lugar entre os melhores do mundo. “O que mais aprendi ao competir foi que eu realmente tinha potencial para aquilo”, conta o mineiro.
A VEIA COMPETIDORA sempre esteve presente no estilo de vida de Fellipe Kizu. Ele disputava campeonatos de kart quando criança e provas de skate downhill na adolescência. E com o caiaque surf não seria diferente – mesmo que, para isso, tivesse que competir com remadores sem deficiência, já que a modalidade não tinha provas para atletas especiais como ele.
Logo no primeiro mês de treinos, a evolução de Kizu impressionou Ricardo. Ele percebeu que conseguiria colher os frutos do trabalho no mesmo ano em que começaram os treinamentos. Os resultados fizeram jus à aposta de Ricardo e Kizu. Em abril, o canoísta liderou a seletiva de paracanoagem de velocidade. Com isso, classificou-se e conquistou o Sul-Americano da categoria, no Chile. O título lhe garantiu vaga no Mundial da Alemanha, disputado em agosto e no qual Kizu ficou em 8º lugar. No K1, ele ainda foi vice-campeão brasileiro nos 200 e 500 metros. Em junho, foi campeão da categoria iniciante da primeira etapa do Circuito Brasileiro de Canoagem Onda, na modalidade wave ski. No Canoagem Onda não há categoria de para-atletas. Mesmo assim, Kizu ficou entre os primeiros nas categorias wave ski open e caiaque surf sênior. Além disso, consagrou-se campeão das duas etapas de caiaque surf iniciante, disputadas no Guarujá, São Paulo. “Quando se chega ao nível mais alto, a diferença entre atletas com e sem deficiência é grande. Mas tento compensar isso com o máximo possível de horas de treino”, conta o mineiro, que costuma treinar todos os dias nas praias da zona oeste do Rio, como Barra, Grumari, Prainha e Recreio.
“A canoagem é uma tribo pequena. Somos no máximo 100 atletas no Brasil inteiro. E isso dificulta organizar o circuito”, observa Bruno Guazzelli Filho, supervisor do Canoagem Onda. Segundo o paulista, o esporte está crescendo, mas em um ritmo bastante lento. Bruno acredita que a canoagem onda ainda não possui tantos adeptos porque é um esporte mais arriscado do que o surf de pranchinha ou o longboard: “No caiaque surf e no waveski, para passar a arrebentação você tem que encarar a onda de frente. Não consegue dar um ‘joelhinho’”. Bruno admirou tanto a evolução de Kizu que começou a ensinar a canoagem onda para crianças com deficiência física. “Ele é um exemplo para a canoagem, porque rema em todas as modalidades”, afirma Bruno. Além do caiaque surf, do wave ski e da velocidade K1, Kizu também disputa provas de travessia oceânica. Em maio de 2013, venceu a categoria sênior da Regata Ratier, no Rio de Janeiro. Neste ano, Fellipe Kizu encara uma nova fase na vida. Sem treinador (ele encerrou a parceria com Ricardo logo depois da primeira participação no Mundial) e sem patrocinador, seu objetivo é melhorar o desempenho nas competições nacionais e internacionais. Com os resultados do ano passado, ele tem direito ao Bolsa Atleta, fornecido pelo governo, mas ainda enfrenta questões burocráticas para recebê-la. Para continuar a carreira, ele conta com apoios da loja de equipamentos Hemmer e do centro de reabilitação física Citra, que lhe fornece fisioterapia de graça. E está sempre ligado na evolução da ciência nos estudos com células-tronco. “Chega um ponto da lesão em que você não recupera mais. Só que é importante manter a forma física para não acontecer o encurtamento das pernas”, explica Kizu. “Quando os estudos com células-tronco se concretizarem, quero estar no melhor estado físico possível para ter uma recuperação boa”. O esporte adaptado e a esperança de voltar a andar não movem apenas a vida de Fellipe Kizu, mas também a de todos os que estão a sua volta.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2014)
MANDA BEM: Kizu praticando waveski na Prainha, no Rio
(FOTO: Nana Flecha)
À TODA PROVA: O paratleta em campeonato de canoagem, em 2013
(FOTO: Confederação Brasileira de Canoagem)
Em fevereiro de 2013, Kizu começou os treinamentos com Ricardo Freitas, que naquele ano trabalhou como voluntário com outros nove para-atletas de canoagem. “O Fellipe já tinha ritmo e muito equilíbrio, sabia fazer o rolamento do caiaque e sua capacidade aeróbica era suficiente para uma carga grande de treinamento”, observa Ricardo. O foco dos treinos era a modalidade de velocidade K1. No início, trabalharam principalmente na técnica de remada.
VIDA BOA: Em campeonato em São Paulo; acima, Felipe com amigos de canoagem
(FOTO: Confederação Brasileira de Canoagem)
Nas competições nacionais, Kizu descobriu que havia outro cadeirante que surfava de caiaque, Fábio Giro, nascido com uma anomalia na coluna vertebral. O capixaba passou 11 anos sem competir. “Tinha desanimado. Estava bem colocado no ranking, ganhava campeonatos, mas não conseguia apoio nenhum. Precisava bancar do meu bolso”, explica Fábio. Em outubro de 2013, ele voltou a disputar o circuito e conheceu Kizu na praia do Tombo, no Guarujá (SP).