Sangue frio

Um canadense e um britânico são atualmente os maiores nomes da escalada em gelo, um esporte de alto risco que exige a força habitual da modalidade na rocha e uma tranqüilidade monástica para evitar erros fatais

Por Mario Mele


RISCO MORTAL: O inglês Tim Emmett em escalada
no gelo perto de Squamish, no Canadá
(FOTO: Jim Martinello)


A ESCALADA EM GELO é como um jogo de xadrez: não importa se você pratica há mais de 20 anos, porque pode por tudo a perder com um único erro. A afirmação é um consenso entre os mais experientes nesse esporte, entre eles o canadense Will Gadd, de 47 anos. Em fevereiro, ele teve que pensar bem antes de executar cada movimento durante uma escalada na Helmcken Falls, uma cachoeira de 140 metros localizada em Colúmbia Britânica, no Canadá, que congela no inverno.

Will escalou por uma via inédita, na qual vinha trabalhando há três semanas. Para decifrar a rota e diminuir os riscos, ele contou com a ajuda da canadense Sarah Hueniken e dos norte-americanos John Freeman e Katie Bono, outros três especialistas na modalidade. “Além de técnica, é uma escalada fisicamente difícil e perigosa, e que só foi possível porque eu estava com um time forte”, diz Will, que guiou a subida. Sarah comparou a conquista da via com um grande teste de paciência. “Cada movimento requer uma abordagem calma e pensativa, ao mesmo tempo em que você tem que colocar toda a sua força para se mover para cima”, diz ela, dona de primeiras ascensões em gelo na Islândia e nas Montanhas Rochosas canadenses.

Além da técnica necessária para fixar parafusos de proteção e acertar microagarras com piquetas e crampons, escalar no gelo também se traduz em ter experiência suficiente para lidar com fatores naturais, tão imprevisíveis quanto mortais. E, claro, saber se manter tranquilo como Buda diante de situações tensas. Para não serem pegos de surpresa, Will, Sarah, John e Katie monitoraram constantemente as condições do gelo. A escalada – uma linha de 200 metros de extensão que mistura trechos de gelo e rocha (estilo conhecido como “escalada mista”) – foi assustadora, o que os levou a batizar a via de Overhead Hazard, que em português significa algo como “perigo sobre a cabeça”.

A temperatura num setor de escalada em gelo pode chegar a 30ºC negativos, mas isso não garante, por exemplo, que uma lasca de água congelada não se desprenderá de um bloco maior. Em 2011, John Freeman, um dos escaladores que integraram a equipe de Will durante a conquista da Overhead Hazard, quase tomou o xeque-mate do esporte. Enquanto escalava um setor conhecido como Drácula, em Nova Hampshire (EUA), uma sequência de batidas fortes com sua piqueta fez com que a coluna de gelo na qual ele estava preso ruísse sem o menor sinal de aviso. Ao ver o vídeo do acidente, o próprio John concordou que foi um milagre ele ter sobrevivido à queda de mais de 10 metros de altura, grudado numa massa de gelo de dezenas de toneladas. “Foi tudo tão rápido que eu só me lembro do som do gelo partindo e da sensação de que tudo estava desmoronando”, disse. “Tive sorte em não ser esmagado.”

O acidente motivou David Crothers, editor do respeitado site de escalada Climberism (climberism.com), a inaugurar um debate sobre a modalidade. “A escalada em gelo cresce e inspira novos praticantes. E parece que há atletas cada vez mais confiantes em subir vias complicadas”, escreveu ele em um artigo. “Mas o que se vê são alpinistas de gelo tomando quedas sérias, e esta é uma questão preocupante: é hora de darmos um passo para trás e lembrar que se trata de um esporte perigoso.” John Freeman, no entanto, não pensou em recuar e voltou a escalar vias de gelo no dia seguinte.


TENSO: Jamie Finlayson em Narin Falls, no Canadá
(FOTO: Arquivo Pessoal)

Pelas estatísticas, a escalada em gelo é menos fatal do que o base jump e o mergulho em caverna. Mas os acidentes nesse esporte também costumam ser imperdoáveis e, a cada ano, pelo menos uma pessoa morre. Em março, um escalador alemão amador caiu de 12 metros de altura enquanto escalava uma caverna congelada em Vatnajokull, na Islândia, e não teve segunda chance. No ano passado, a montanhista norte-americana Meghan Arnold, que tinha no currículo os cumes dos montes Kilimanjaro (no Quênia) e Rainier (nos Estados Unidos), também sofreu um acidente fatal ao explorar cachoeiras congeladas em Vancouver, no Canadá. Porém a baixa que mais abalou os bastidores da escalada em gelo nos últimos tempos foi a do experiente Jack Roberts, em 2012, enquanto escalava em Telluride, no Colorado (EUA). Jack tinha 58 anos, sendo 41 deles inteiramente dedicados às montanhas. Apesar da idade avançada para um esporte fisicamente tão exigente, ele ainda era um habilidoso escalador de gelo, dono de vias extensas e técnicas abertas em cachoeiras congeladas do Colorado ao Alasca. O escalador inclusive é autor de um detalhado guia sobre a modalidade. É por isso que o guia de montanha Jon Miller, presente no dia do acidente, acredita que Jack tenha tido um mal súbito, como uma parada cardíaca, antes de suas piquetas perderem contato com o gelo e ele despencar de 20 metros de altura.


POR UM TRIZ: O canadense Will Gadd escala cachoeira
congelada no Parque Nacional de Kootenay, em seu país natal
(FOTO: Christian Pondella)

“NA ESCADALA EM GELO, não é uma boa ideia cair”, diz o britânico Tim Emmett, outro atleta da elite da escalada em gelo. “Na rocha, isso é um problema também, claro, porém é muito pior quando você tem piquetas, crampons e parafusos afiados pendurados pelo corpo.”

Em 2012, Tim e o esloveno Klemen Premrl conquistaram, também na Helmcken Falls, a via Spray On Top, que atualmente é a escalada em gelo mais difícil do mundo. A vitória só aconteceu na terceira temporada de Tim na mesma missão: provar que a Spray On Top era uma via possível. Nos dois anos anteriores, ele fez dupla com o canadense Will Gadd, que não compareceu ao ataque final porque estava fora do país gravando um programa para um canal de TV. “Não fiquei ressentido por Tim ter finalizado os trabalhos na Spray On Top com Klemen”, garante Will. “Além de ambos serem grandes amigos meus, nesse esporte costumamos celebrar o sucesso um do outro. Para nós, abrir rotas no gelo em alto nível significa vencer as batalhas mais difíceis da vida.”

Como em qualquer esporte, no entanto, a competição também está presente na escalada em gelo. Faz 12 anos que existe um consagrado circuito mundial, organizado pela União Internacional das Associações de Alpinismo (UIAA) e que, durante o ano inteiro, viaja por seis países, entre eles Suíça, Rússia e França. Mas há registros históricos que mostram que, bem antes disso, no início do século 20, os italianos organizavam disputas de escalada em gelo pelos glaciares do Vale de Aosta, no norte do país. E, durante as décadas de 1970 e 1980, a antiga União Soviética popularizou esse esporte com desafios de velocidade.

Até dez anos atrás, Tim e Will Gadd se encontravam constantemente nos mundiais e costumavam terminar a temporada entre os dez primeiros do ranking. “O espírito competitivo pode estar impregnado nesse esporte, mas para mim escalar no gelo ainda significa diversão”, diz Will, que além de ser campeão mundial, tem três medalhas de ouro nos XGames de inverno nessa mesma modalidade. Para Tim, que entre 2001 e 2004 foi presença frequente no pódio dos principais eventos internacionais, campeonatos são ótimas oportunidades para compartilhar experiências e aprender novas técnicas. “Mas eles não se comparam às altas doses de vitalidade que ganho depois de escalar uma cachoeira congelada”, afirma.

Foi mais para se sentir vivo que para rivalizar que, em março, Tim e Klemen voltaram a Helmcken Falls e repetiram a subida à Overhead Hazard, conquistada por Will Gadd e companhia. “Depois que abrimos a Spray On Top e repetimos a Overhead Hazard, ficou difícil imaginar uma escalada no gelo tão difícil e impressionante. Talvez só na alta montanha”, acredita Tim, que sonha em escalar um paredão no Himalaia para, em seguida, decolar de wingsuit.


FRIACA: Expedição de Will Gadd a Helmcken Falls, no Canadá, em 2014
(FOTO: Kenna Harvey)

FOI LONGO O CAMINHO até a escalada em gelo se tornar um esporte cheio de estilo, ter campeonatos mundiais e ser uma das modalidades mais procuradas durante o inverno em países como Noruega, Inglaterra, Suíça e Itália. Como atividade exploratória, seus primeiros indícios datam do século 15. Naquele tempo, caçadores e viajantes europeus improvisavam cravos de metal na região do antepé do calçado para ter mais tração enquanto cruzavam os Alpes. Uma evolução significativa da modalidade foi em 1786, quando os franceses Jacques Balmat e Michel Paccard realizaram a primeira escalada bem-sucedida ao Mont Blanc, na fronteira com França e Itália. Eles não dispunham de piquetas ultramodernas, por isso improvisavam lanças e calçados com cravos pontiagudos. Mais cem anos se passaram até o lendário alpinista inglês Oscar Eckenstein criar o crampon de dez pontas e aprimorar o design das machadinhas de gelo, já no começo do século 20.

Atualmente as piquetas e crampons leves e eficientes disponíveis no mercado ajudam o esporte a evoluir rumo à abertura de rotas cada vez mais técnicas. Não é raro ver projetos de alto nível no gelo que exigem esforços de mais de uma temporada, principalmente na Helmcken Falls, cujo imenso salão de pilares congelados em que ela se transforma no inverno tem sido um dos principais locais de trabalho dos melhores do mundo. “Gosto de abrir projetos inéditos no gelo porque é uma chance de ficar frente a frente com meus limites psicológicos”, diz Tim. Para Will, escalar as vias de gelo mais difíceis é um jeito de empurrar o esporte para uma nova direção.

A possibilidade de se desafiar e indicar novas possibilidades na modalidade também é o que vem inspirando a nova geração. No último inverno, em sua primeira temporada escalando o gelo, o canadense Jamie Finlayson, de 33 anos, fez a primeira ascensão da via 100% Proof, uma escalada mista (em gelo e rocha) ao lado da cachoeira Brandywine, em Squamish, no Canadá. “Esse esporte é assustador, há muitos elementos e riscos envolvidos.” Para Jamie, que já foi esquiador da seleção canadense e que na escalada em rocha é capaz de subir dificílimos boulders, aquela foi uma experiência totalmente nova e selvagem. É por isso que ele não vê a hora de o próximo inverno chegar.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2014)







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