Canelinha de ouro

O goiano Abraão Azevedo consagra-se bicampeão máster da Cape Epic, uma das mais duras ultramaratonas de mountain bike do planeta

Por Bruno Romano


MESTRE: O mountain biker Abraão Azevedo em seu primeiro título do Cape Epic, em 2013
(Foto: Kelvin Trautman/Cape Epic/ Sportzpics)


AOS 44 ANOS, o goiano Abraão Azevedo ainda não se cansa de mostrar por que ainda é um dos mountain bikers mais treta do Brasil. O atleta – conhecido pelo apelido de “Canelinha” devido à finura de suas velozes pernas – venceu novamente, em março passado, a mítica ultramaratona Cape Epic, na África do Sul. A conquista foi na categoria máster, para atletas acima dos 40 anos, ao lado do holandês Bart Brentjens, lenda do esporte e campeão olímpico de MTB em 1996, na estreia da modalidade nos Jogos.

“Durante a Cape Epic, você é exigido ao máximo: todos os fundamentos do mountain bike estão envolvidos nos mais inimagináveis tipos de situações”, resume Abraão, que é pentacampeão brasileiro de cross-country e foi campeão mundial máster em 2011. A edição deste ano cruzou 730 quilômetros de sinuosas trilhas sul-africanas durante oito dias. Foram 15.350 metros de ascensão acumulada – algo como subir mais de duas vezes e meia o Kilimanjaro, a maior montanha africana, localizada na Tanzânia, com 5.895 metros de altitude.

Para passar por cima de tantos desafios, Abraão rompeu a dupla com o sul-africano Nico Pfitzenmaier, com quem foi campeão máster da Cape Epic 2013, e formou nova parceria com Bart. Juntos, venceram o prólogo e seis das sete etapas deste ano. Mas defender o título não foi tarefa fácil: a disputa em 2014 mostrou-se bastante acirrada, e começou com um tombo memorável de Abraão logo no início de prova.

A partir dali, o ciclista da pequena cidade de Formosa, em Goiás, esbanjou superação e sabedoria para correr atrás do prejuízo e vencer pela segunda vez consecutiva a prova-ícone do MTB mundial. Tetracampeão da ultramaratona Brasil Ride (também na máster) e dono de sua própria assessoria esportiva (a AAZ, em Brasília), Abraão conta a seguir como dominou as montanhas africanas e selou com Bart uma parceria de enorme sucesso:


GO OUTSIDE: Foi mais difícil defender o bicampeonato máster da Cape Epic do que vencer pela primeira vez, no ano passado?

ABRAÃO AZEVEDO: A prova deste ano foi mais disputada que em 2013, com certeza. A diferença de tempo para nossos adversários foi bem menor. Mas as condições de tempo no ano passado estavam piores, fazia mais calor e me lembro de ter terminado a competição bem mais desgastado.


Por que a mudança na dupla e a escolha por Bart?

Já havia vencido a Brasil Ride em 2013 ao lado do Bart e aí nos tornamos amigos. Ele correu todas as edições da Cape Epic até hoje: esta foi sua décima-primeira participação. E é um dos melhores parceiros que já tive. Bart não se estressa à toa. Se você não está bem em um dia, ele procura conversar, entender o que está acontecendo. No ano passado, qualquer coisa deixava o Nico nervoso, ele queria mandar na dupla o tempo todo [risos], queria forçar 110% a prova inteira.


O que não é sempre uma boa ideia para uma prova tão longa e imprevisível como a Cape Epic, né?

Pois é, nesse tipo de prova por etapas é preciso tomar cuidado. É igual a um jogo de tênis: às vezes você abre dois sets e quer fechar logo o terceiro. Mas, para não botar tudo a perder e tomar um tombo ou quebrar um equipamento, você precisa ter paciência e ir tirando o tempo aos poucos.


Como você se preparou para uma competição que muda de percurso todo ano, sem poder contar sequer com um treino ao lado de seu parceiro de pedal?

Eu e o Bart só pudemos nos encontrar na prova. Na prática, funcionava assim: em todos os postos de controle a gente conseguia medir a diferença para os adversários. Em cima disso, dava para saber onde nossa dupla estava rendendo mais. Para as etapas seguintes, analisávamos a altimetria e decidíamos nossa estratégia. Como são muitos dias, a gente foca sempre no estágio em que estamos, não adianta pensar muito lá na frente. Além disso, no mountain bike você tem que estar atento o tempo todo, pois um simples vacilo pode custar a prova.


SUADOURO: Abraão (na frente) com o parceiro Bart Brentjens durante a Cape Epic deste ano
(Foto: Kelvin Trautman/Cape Epic/ Sportzpics)


Foi o que quase aconteceu com você na primeira etapa, após o prólogo?

Isso. No primeiro estágio tomei um tombo inesquecível. Eu não estava conseguindo render bem. Meu parceiro estava à frente, e eu queria andar mais rápido de qualquer jeito. Pensei: “Vou soltar o freio de vez”. Não demorou muito para tomar um “chão” absurdo. Eu vinha embalado a uns 55 km/h e vi uma vala. Consegui tirar a roda da frente, mas não a de trás. Voei uns bons metros para frente e fui lançado para o meio do mato. No fim, dei muita sorte por ter caído nas árvores e não me machucar – nem estragar a bike. Na hora pensei: “Ufa, depois dessa não posso mais perder!”.


Depois de uma primeira etapa ruim, vocês acharam que as coisas poderiam desandar?

A primeira etapa foi difícel para mim. Eu andei mal, apesar de ter conseguido crescer na prova depois. Os primeiros 40 quilômetros nesse tipo de prova costumam ser muito rápidos, com disputas fortes ali no pelotão. Acabamos tomando uns 15 minutos no fim da etapa, mas não nos abalamos. A solução foi olhar para frente e ver que tínhamos todos aqueles dias para tirar a diferença. Nessas horas, a experiência conta muito: deixar tudo bem regulado na bike, cuidar do descanso, da alimentação e da hidratação, além de não sofrer nenhum problema maior de equipamento. Só tivemos um pneu furado do Bart e nada mais depois do tombo.


Após o título, a parceria com o Bart vai continuar?

Já combinamos de correr de novo a Brasil Ride deste ano e queremos defender o título na Cape Epic do ano que vem.


De onde vem o apelido de Canelinha?

Ganhei esse apelido de Canelinha há tempos, do pessoal do ciclismo mesmo, devido a meu tipo físico mais magro. Mas chamar a nossa dupla agora está muito fácil, até para os gringos: eu sou o AA e ele o BB [risos].


Desde que você começou a competir, o MTB profissional mudou muito?

Não mudou muito, mas evoluiu, sim. Já há uma estrutura, porém ainda existe muito espaço para melhorar. O pessoal mais novo está andando bem e acho até que pode nos dar esperanças de alguma medalha no próximo Pan-Americano ou nas Olimpíadas. Se os jovens acreditarem neles mesmos, ganhando confiança com bons resultados nos mundiais, poderão fazer bonito. Porém o atleta não tem como ter ótimos resultado se não tiver uma estrutura melhor e condições para competir em igualdade.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2014)