O reinventor da roda

Grande pioneiro do mountain bike, o norte-americano Mike Rust vira tema de filme que mostra como ele ajudou a revolucionar o esporte e seus equipamentos – antes de desaparecer misteriosamente

Por Mario Mele


CRIADOR E CRIATURA: Mike e sua "shortie", modelo de bike com menor distância
entre os eixos, nos anos 1980
(Fotos: Grit and Thistle Film Company)

A PRIMEIRA INFORMAÇÃO a se saber sobre Mike Rust é que o cara pensava diferente. Nascido no Colorado (EUA),esse figuraça é visto como um dos pioneiros e mais autênticos inovadores do mountain bike. Até o dia 31 de março de 2009, quando deu o último sinal de vida, ele já tinha promovido uma verdadeira revolução nas bicicletas de montanha – entre suas inúmeras criações, está a modificação da geometria dos quadros e o uso de diferentes tamanhos de rodas. Mike era uma espécie de artista das bikes e também um fomentador do esporte nas cidades em que morou, abrindo e ajudando a preservar singletracks e incentivando os mais jovens a pedalar.Apesar de nunca ter tido muita visão comercial de suas invenções, não deixou de se tornar uma inspiração para grandes marcas repensarem os modelos de performance. Não por acaso, em 1991,seu nome foi eternizado no Mountain Bike Hall of Fame, uma espécie de museu que registra a história das bicicletas de montanha e se localiza em Crested Butte, também no Colorado.

Cinco anos depois do desaparecimento misterioso de Mike de sua casa, os cineastas Nathan Ward e Sam Bricker, sócios-proprietários da produtora norte-americana independente Gritand Thistle, decidiram passar a limpo a trajetória do ciclista. A dupla quer contar desde sua íntima relação com as bikes até seu suposto assassinato por ladrões que invadiram sua casa – há indícios que levam a isso, apesar de o corpo de Mike nunca ter sido encontrado. No filme The Rider and the Wolf (O Ciclista e o Lobo), que tem estreia prevista para o primeiro semestre de 2014,os diretores refazem a trilha de Mike por meio de vídeos de arquivo e depoimentos de amigos, familiares e entendedores de ciclismo, além de reconstituírem aquele fatídico dia 31 de março de 2009 com atores – estas cenas foram baseadas em laudos policiais, para manter o gênero documental e garantir a veracidade da história.

“Aprendi muito com Mike, vendo suas fotos, lendo entrevistas com ele e assistindo a seus filmes. Ele realmente achava que a bicicleta era uma ponte para a liberdade”, diz Sam. “Queremos que as pessoas reconheçama importância desse cara que usou a própria experiência e muita força de vontade para fazer o mountain bike acontecer no estado do Colorado”, diz Nathan. “Mike tinha uma personalidade interessante e ideias brilhantes porque se divertia pedalando.O que ele não tinha era noção deque sua vidase transformaria em um verdadeiro conto do velho oeste”, completa.


MÔ LEGAL: Mike com sua penny farthing; acima, em cicloviagem em Crested Butte (Colorado)

MIKE RUST SEMPRE FEZ TUDO de um jeito muito próprio. Nativo de Colorado Springs – cidade que fica aos pés da famosa montanha PikesPeak, que é parte das Montanhas Rochosas (as Rocky Mountains) –, ele se interessou por motos na adolescência. Seu irmão, Martin, o define como “um obcecado pelas duas rodas, alguém que definitivamente não media esforços para viver suas ideias”. Antes de completar 18 anos, Mike construiu uma motocicleta em seu quarto, guardando o chassi e as peças embaixo da cama para manter o plano em segredo dos pais. Aos 20 e poucos anos, com apenas 63 quilos para 1,75 metro de altura, descobriu que tinha o corpo ideal para pedalar longas distâncias. Então modificou uma antiga bicicleta de cicloturismo, colocando nela cubos de cromo, marchas e um canote de selim mais resistente. O teste foi feito nas pesadas trilhas da vizinhança.

“Como Gary Fisher, ele era bom em analisar situações e repensar as bikes”, compara Sam, citando o famoso californiano que leva o crédito pela invenção da mountain bike moderna. Nathan completa: “Eu cresci rodeado por essa turma do Colorado que levava o pedal a sério. Quando não estavam girando por aí, trancavam-se em algum lugar para pensar em uma nova engenhoca.”

Mike também era um viajante de bicicleta dedicado. Jerry Mosier, um de seus melhores amigos, relembrou em entrevista à revista Bicycling que, em 1980, os dois se reuniram com mais meia dúzia de ciclistas para desbravar cerca de 500 quilômetros entre as montanhas da Divisória Continental e a cidade de Crested Butte, no Colorado. Só que a trilha não chegava ao destino final, e todos voltaram atrás. Menos Mike, que fez seu próprio caminho por uma encosta escarpada, carregando a bicicleta no ombro até outro platô pedalável. O que ele fez foi tão impressionante que os amigos batizaram aquele trecho de “Passagem Rust”.


DOCE LAR: A morada de Mike, alimentada com energia solar

Na cabeça de Mike, só havia lugar para bicicleta. Em Colorado Springs, ele reformava bicicletas velhas e as distribuía à molecada. Além disso, organizava corridas de bikes antigas no parque da cidade. No meio dos anos 1980, ele achou que, se reduzisse a distância entre os eixos das rodas,sua bicicleta teria mais tração – uma característica indispensável no mountain bike.Foi um tiro certeiro! Mike criou um modelo que tinha um design totalmente inédito, com chainstay (a parte inferior do triângulo traseiro da bike) elevado e que, na época, fez bastante sucesso. Essas bikes ficaram conhecidas como “shorties”, e Mike passou a produzi-las em série e a vendê-las na Colorado Cyclery, a loja de bikes que ele abrira em Salida, cidade próxima a Colorado Springs. Na década de 1990, outra piração: Mike montou uma bike com roda 29” na frente e 26” atrás. Batizada de “69er”, a invenção não decolou, mas é uma opção adotada por alguns mountain bikers do Colorado até hoje. “Ela passa fácil por obstáculos e acelera rápido”, diz um admirador em um fórum de bikes na internet.


TUDO DOIDO: A "tchurma" de Mike que desbravou 500 quilômetros de trilhas no
Colorado nos anos 1980

DURANTE A PRODUÇÃO DO FILME, Nathan e Sam contaram com a ajuda de parentes de Mike para encontrar seus antigos conhecidos. Via Facebook, eles chegaram a um cara que morava no Colorado na década de 1990 e que, influenciado por Mike, também começou a fazer bicicletas diferentonas. Hoje ele mora no Japão, onde desenvolve projetos futuristas para a tradicional marca de componentes de bike Shimano.

Foi acreditando que poderia viver de maneira simples, reaproveitando materiais e precisando de pouco dinheiro que, em 1995, ele fechou sua loja em Salidae se mudou a Saguache, cidadezinha de 500 habitantes localizada no isolado Vale de San Luis, onde, segundo Nathan,“estão as terras maisdistantes e baratas do Colorado”. Lá a paisagem é maravilhosa, e foi entre as montanhas nevadas desse lugar que Mike passou os 14 anos seguintes pedalando com frequência,até chegar aos 56 anos de idade em plena forma.

O filmeThe Wolf and the Rider é bem diferente dos que Sam e Nathan estão acostumados a fazer em sua produtora. “Não se trata de uma história de aventura nos moldes tradicionais”, diz Sam. “Não estamos falando de bikers profissionais,muito menos sobre os melhores lugares para se pedalar. Além disso, é um documentário costurado com cenas ensaiadas porque achamos que, dessa forma,prenderíamos mais a atenção das pessoas.” Sam garante que nunca lidou com elementos tão distintos em um único filme. “No fim, virou uma história perigosa, misteriosa, e não foi fácil encontrar um jeito de dar unidade a isso tudo e achar um clima em que a narrativa fluísse”, diz.

Se a história de Gary Fisher está relacionada à criação de uma marca (que leva seu nome), a de Mike Rust é um conto sobre alguém que, em determinada fase da vida,optou por morar em um lugar isolado, de maneira quase selvagem, em uma casa que ele mesmo construiu. San Luis é o maior vale alpino do mundo, com uma altitude média de 2.300 metros em uma área de aproximadamente 10 mil quilômetros quadrados –maior do que a Grande São Paulo.“Apesar da dimensão, só há oito policiais que fazem a ronda na região”, conta Sam, que também é nativo do Colorado.


JÁ GRISALHO: Mike em Saguache, cidadezinha do Colorado para onde se mudou e
de onde desapareceu

Mike, no entanto, não parecia se sentir inseguro por lá. Já era noite quando ele chegou em casa e percebeu que alguém havia invadido e roubado sua casa. Então ligou para uma amiga e disse que estava indo atrás dos invasores. Ao que tudo indica, Mike montou em sua moto e, especialista em desvendar trilhas e rastros, não demorou para alcançar os ladrões. O que vem depois disso são apenas suposições. A mais aceitável é que ele tenha lutado com os invasores e tomado um tiro. Cinco dias depois, a polícia encontrou um cabo quebrado de uma arma e um colete ensanguentado. Testes de DNA comprovaram que aquele sangue era de Mike.

“Ter coragem de ir atrás dos ladrões e confrontá-los sozinho,à noite,é outro aspecto importanteda personalidade de Mike quetratamos no filme”, diz Nathan. “Isso mostra a tenacidade de um cara que não admitia injustiças.” Além de dar o crédito merecido a um digno pioneiro do mountain bike, o filme está trazendo luz ao caso novamente. Em abril deste ano, a história de Mike Rust foi relembrada em um telejornal da CBS, uma das maiores redes de televisão dos Estados Unidos.As autoridades afirmaram que ainda não estão convencidas de seu desaparecimento.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2014)