Mártires do Everest

Na última sexta-feira (dia 18 de abril), uma avalanche no Monte Everest varreu e matou 16 montanhistas na face oeste. O acidente ocorreu por volta das sete horas da manhã do horário local (às 22 horas da quinta-feira em Brasília). Alguns sobreviventes foram socorridos e levados a um hospital em Katmandu.

Foi o acidente mais fatal registrado nessa montanha até hoje e vitimou somente sherpas – como são conhecidos os guias de montanha nepaleses. Segundo informações divulgadas pela rede BBC, os sherpas estavam escalando naquela manhã para fixar cordas e, assim, preparar a rota para expedições de montanhistas do mundo inteiro. É uma prática comum hoje, motivada pelo crescente turismo à montanha mais alta do mundo, de 8.848 metros de altitude.

O acidente aconteceu em torno dos 5.800 metros, próximo da famosa cascata de gelo do Glaciar de Khumbu, uma seção da rota ao cume considerada particularmente difícil. Também impressiona o fato de isso ter ocorrido no começo da temporada, quando nem metade das equipes de montanhistas tinha chegado à montanha.

Em janeiro deste ano, a revista Go Outside publicou a reportagem “Mártires do Everest”, que mostrou a dura vida dos sherpas e seus familiares. Há mais de um século, esse povo nepalês é contratado por escaladores ocidentais para ajudá-los em suas expedições pelo Himalaia. Apesar de esse trabalho ser uma fonte importante de renda para os sherpas, a indústria do montanhismo é responsável por um lista longa de mortes e graves acidentes.

Os sherpas quase sempre deixam suas famílias sem nada além de lembranças tristes. A reportagem, assinada
Grayson Schaffer, editor da revista norte-americana Outside, traz ainda a seguinte declaração do italiano Reinhold Messner, o pai do montanhismo moderno: “Escaladores que passam por escadas fixadas por sherpas no Khumbu e, depois, sobem o Everest sem cordas alegando serem especiais são, na verdade, parasitas”. A hora é propícia para a escalada em alta montanha ser repensada.

Por mais de um século, escaladores ocidentais vêm contratando sherpas – integrantes de uma etnia que habita as montanhas do Nepal – para carregarem seus equipamentos e realizarem os serviços mais perigosos na subida aos cumes do Himalaia. Apesar de ser uma importante fonte de renda para a empobrecida comunidade local, a indústria do montanhismo é responsável por uma longa lista de mortes e acidentes graves de sherpas, que quase sempre são esquecidos e deixam para trás famílias sem nada além de lembranças tristes

Texto e fotos de Grayson Schaffer


TRISTEZA SEM FIM: Lhamu Chhiki, viúva de Chhewang Nima, morto ao cair numa fenda
de gelo durante ascensão no Monte Baruntse, em 2010

NA MANHÃ DE 24 de outubro de 2010, Chhewang Nima, um veterano escalador sherpa, saiu do acampamento alto do monte Baruntse, localizado a 7.129 metros, em direção ao topo da montanha, vizinha do Everest, no leste do Nepal. Havia nuvens altas naquele dia, e fortes rajadas de vento levantavam a neve fresca. Por ter pouco mais de 7 mil metros e não oferecer uma escalada muito dura até seu cume, o Baruntse não é uma das montanhas mais cobiçadas do mundo para se realizar uma expedição, mas tem sido usada como “treino” para quem quer se preparar para chegar ao topo do Everest, o mais alto do planeta, a 8.848 metros.

Encordado ao guia Chhewang, de 43 anos, estava Nima Gyalzen*, um sherpa de aproximadamente 30 anos nascido em Rolwaling, um vale a oeste dali. Geralmente contratado como guia da agência de montanhismo Alpine Ascents International, fundada em Seattle (EUA), Chhewang estava fazendo um bico de US$ 1.000 nesta expedição. Sua única cliente era a norte-americana Melissa Arnot, então com 26 anos, uma guia de montanha da agência Rainier Mountaineering, nos EUA (Melissa foi parar em jornais e revistas especializadas em maio deste ano, quando interveio em uma discussão entre sherpas e três escaladores europeus no acampamento 2 do Everest). Já Nima Gyalzen estava trabalhando para uma equipe iraniana. Os dois sherpas haviam unido forças naquele dia para abrir a trilha e fixar as cordas que Melissa, os iranianos e outras equipes usariam como segurança em seu ataque ao cume do Baruntse.

Melissa encontrava-se no acampamento alto e pretendia prosseguir até o cume no dia seguinte, dando aos sherpas algum tempo para preparar a via. A neve estava funda, porém, segundo Melissa, dava para ver “que os dois se moviam rapidamente”. “Achei que naquele ritmo eles poderiam ir até o cume”, disse.Por volta das duas da tarde, apenas 200 metros abaixo do topo da montanha, Chhewang estava fixando uma estaca quando o chão de gelo se quebrou sob seus pés e sumiu completamente. Ele estava em pé numa cornija, uma frágil ondulação de neve endurecida pelo vento. Antes de se dar conta, entrar em pânico ou decidir algo, Chhewang Nima desapareceu.

De acordo com o que foi relatado por Nima Gyalzen, blocos de gelo que se soltaram cortaram a corda, deixando que Chhewang caísse e, provavelmente, salvando Nima de ser puxado para baixo também. Quando Nima se deu conta de que seu parceiro havia desaparecido, desceu o mais rápido que conseguiu. Melissa, que o recebeu no acampamento, inicialmente confundiu sua histeria com comemoração.

“Eu lhe trouxe chá e disse: ‘Parabéns! vocês chegaram ao cume?’”, lembra ela.

“Não, não, não. Acidente”, respondeu Nima, usando o dialeto simplificado que os guias chamam de “inglês sherpa”.

“Chhewang acabou.” E desabou na neve.

Melissa ligou para a sede da operadora que contratara para a escalada e solicitou um helicóptero para iniciar a busca ao corpo.


ANTES DA TRÁGICA TEMPORADA de escaladas do Everest em 1996, tema do livro No Ar Rarefeito, o falecido guia norte-americano Scott Fischer disse ao escritor Jon Krakauer, autor da obra: “construímos a estrada amarela para o cume”. Ele estava se referindo aos quilômetros de cordas que agora são fixadas anualmente ao longo da via do Colo Sul entre o acampamento base e os 8.850 metros de altitude. Entretanto, são os sherpas que realizam essa manutenção das cordas antes da temporada e, muito frequentemente, é entre eles que acontecem as maiores baixas. Como resultado de seu trabalho fixando cordas, carregando suprimentos e acompanhando clientes ocidentais até o cume do Everest e outra dezena de picos dos Himalaias, os sherpas são expostos aos maiores perigos das montanhas – queda de pedras, gretas traiçoeiras, congelamento de membros do corpo, exaustão extrema, coágulos e derrames causados pelo espessamento do sangue exposto a tamanha altitude.

A temporada de 2013 trouxe mais uma série devastadora de tragédias que ilustram bem como é perigoso trabalhar no Everest. No dia 7 de abril deste ano, Mingma, 45, um dos lendários “doutores da Cascata” responsáveis por fixar cordas de segurança ao longo da Cascata do Khumbu para todas as equipes das agências de montanhismo, caiu numa greta próxima ao acampamento 2. No dia 5 de maio, Eric Simonson, sócio da agência International Mountain Guides, anunciou que a equipe também havia “perdido um integrante de sua família sherpa”. DaRita, 37, estava no acampamento 3 quando se sentiu tonto – provavelmente “um problema repentino cardíaco ou cerebral” – e logo morreu. Três dias depois, Lobsang, de 22 anos, estava voltando do acampamento 3 durante uma expedição para a agência Seven Summit Treks quando caiu numa greta e morreu. E, no dia 16 de maio, Namgyal sucumbiu ao que pareceu ser um ataque cardíaco após fazer o cume do Everest pela décima vez, enquanto trabalhava para a agência Explore Himalaya.


ARRIMO DE FAMÍLIA: Mingma Tshering, de 21 anos, ajuda
a cuidar do sobrinho, cujo pai morreu no Everest em 2006


De acordo com a Himalayan Database, organização que contabiliza e arquiva todos os eventos do montanhismo na região, 174 sherpas escaladores já morreram nas montanhas do Nepal – na década passada, 15 perderam a vida só no Everest. Durante esse tempo, pelo menos a mesma quantidade de sherpas ficou inválida em consequência de quedas, congelamento do corpo e problemas relacionados à altitude, como derrames e edema. Um sherpa que trabalha acima do acampamento base do Everest, a mais de 5.400 metros, tem pelo menos dez vezes mais chances de morrer do que um pescador comercial – profissão considerada o emprego não-militar mais perigoso dos Estados Unidos, segundo o governo do país – e três vezes e meia mais chances de morrer do que um soldado durante os primeiros quatro anos da guerra do Iraque. Não há outra indústria de serviços no mundo que mate e aleije mais seus funcionários em benefício de clientes pagantes.

O resultado é que, em Katmandu, capital do Nepal, e nas vilas ao longo da região do Khumbu, dependentes dos sherpas mortos ficam sem seu arrimo de família. No caso de os sherpas sofrerem lesões graves, os parentes são forçados a optar entre apoiar ou abandonar um marido inválido. Um triste exemplo é o de dois sherpas escaladores que lutam contra paralisia pós-derrame: Ang Temba, 54, e Lhakpa Gyalzen, 65. Ang Temba sofreu seu primeiro AVC em grande altitude no lado norte do Everest, enquanto trabalhava para uma equipe japonesa, em 2006. Sua esposa, Furba, 48, que cuida dele em sua casa em Katmandu, se lembra do alerta do médico japonês que examinou seu marido no campo base após o resgate: “Ele disse: ‘Não vá fazer montanhismo de novo’.” Mas, no ano seguinte, após uma recuperação relativamente rápida, Ang Temba aceitou uma oferta para trabalhar no Everest para a agência Asian Trekking, de Katmandu. “Não havia outra opção para ele além do montanhismo”, disse Furba, sua esposa, expondo claramente a dura escolha que muitos sherpas precisam encaram. “Se ele tivesse obedecido ao médico, não estaria nessa situação agora. Foi uma decisão errada.”

Pouco tempo depois de Ang Temba voltar da montanha em 2007, Furba o encontrou inconsciente no sofá. Agora seu lado direito está paralisado, e ele não fala. “É mais difícil do que cuidar das crianças”, diz Furba. Ainda assim, Ang Temba é relativamente afortunado: Furba não o abandonou, e ele conseguiu receber aproximadamente US$ 5.500 quando, depois de mais de um ano de brigas, a seguradora do seu empregador concordou que sua deficiência era relacionada ao trabalho e irrecuperável.

Lhakpa Gyalzen, que trabalhava numa expedição chinesa em 2000 quando sofreu um AVC, não teve tanta sorte. Apesar de ainda conseguir se virar com uma bengala e ter capacidade limitada de fala, sua esposa e filhos foram embora. Numa tarde em outubro de 2012, fui visitá-lo em Phortse, um vilarejo a apenas 24 quilômetros dos pés do Everest. Ele estava na cama, comendo um grande prato de arroz. Na noite anterior, explicou, ele havia caído na trilha enquanto mancava morro abaixo até o rio – uma caminhada de 20 minutos para alguém bem preparado – para cortar bambu que usaria numa cerimônia religiosa. Impossibilitado de se levantar, ficou ali deitado quase a noite toda e arrastou-se para casa de manhã. “Muito frio, muita fome”, contou a respeito da sua noite no mato.

Lhakpa Gyalzen estava a 8.230 metros quando teve um derrame. Sem conseguir se mover, dormiu ali duas noites até que a expedição chinesa enviasse alguém da equipe de sherpas para resgatá-lo. Quando saiu da montanha, teve que pagar o próprio tratamento. “A expedição chinesa não se responsabilizou por nenhuma despesa”, disse. “Todos os gastos foram por minha conta. Comida, remédios, tudo.”


ÓRFÃO: O sherpa aposentado Pasang Rita ao lado do neto Chosang, que perdeu o pai
na Cascata de Gelo do Khumbu


CASOS COMO ESTES acontecem todos os anos em relativa obscuridade. A cada morte de um sherpa no Everest, há sempre tributos emocionados dos escaladores ocidentais. “Os sherpas são os heróis do Himalaia”, escreveu recentemente uma equipe da Força Aérea dos Estados Unidos, após a morte de Mingma, o “doutor da cascata”. Na maioria dos casos, há um seguro exigido pelo governo, de aproximadamente US$ 4.600, coberto por apólices assinadas por agentes locais de trekking que organizam a logística terrestre das operadoras estrangeiras. Se o sherpa for conhecido ou estiver trabalhando para uma agência importante, pode ser que se passe um chapéu para que ele receba doações – como aconteceu no ano passado depois que Dawa Tenzing, um sherpa da Himalayan Experiences (HimEx), morreu em decorrência de um derrame sofrido no acampamento 1 do Everest. O montanhista profissional Conrad Anker caminhou até Phortse com o dono da HimEx, Russell Brice, para entregar aproximadamente US$ 600 à viúva de Dawa, que trabalha como fazendeira (Russell, que tem a reputação de tratar bem seus sherpas, disse que “fez muito mais por ele”, porém não quis contar detalhes para esta reportagem).

Apesar de algumas boas iniciativas, agências, guias e clientes ocidentais raramente testemunham as verdadeiras consequências da morte de um sherpa. Em outubro de 2010, quando Chhewang Nima morreu, a escaladora Melissa Arnot encarou a realidade da tragédia em primeira mão. Após ajudar a buscar o corpo com um helicóptero, Melissa e Nima Gyalzen voaram diretamente para a vila de Thamo, onde Chhewang vivia, pousando numa plantação de batatas atrás da Tashi Delek, uma pequena casa de chá e pousada que Chhewang havia montado com suas economias. Àquela altura, as notícias já haviam chegado à família.

“Dava para ouvir o choro dos parentes do lado de fora, como eu nunca havia ouvido antes”, lembra-se Melissa. Ela entrou na casa de chá e encontrou a viúva de Chhewang, Lhamu Chhiki, e os filhos, Ang Gyaltzen e Lhakpa Tenzing, então com 14 e 12 anos, na cozinha. “Caí de joelhos em frente a ela e pedi perdão. Um lama veio e me tirou dali, dizendo: ‘Você não pode ficar aqui agora, você tem que sair’.”

A cena que Melissa estava testemunhando vem se repetindo pelo Himalaia desde 1895, ano em que uma expedição britânica contratou dois habitantes da região para ajudá-los a escalar o Nanga Parbat, montanha de 8.126 metros no Paquistão. Os dois morreram na montanha. Vinte e sete anos depois, durante a tentativa de George Mallory de escalar o Everest em 1922, uma avalanche atingiu uma corda e matou sete sherpas. Em 1935, Tenzing Norgay, o primeiro homem a chegar ao cume do Everest ao lado de Edmund Hillary, arrumou seu primeiro trabalho como carregador em grande parte porque seis dos sherpas mais experientes daquela época haviam morrido recentemente no Nanga Parbat. Naqueles primeiros anos de exploração das montanhas locais, as mortes eram aceitas como má sorte. A questão hoje é se, em 2013, o desejo de chegar ao cume do Everest ainda vale esse tipo de sacrifício humano banal e previsível.

Na última década, o Everest foi transformado em atração turística, o símbolo máximo da indústria nepalesa de turismo, que movimenta US$ 370 milhões de dólares por ano. Graças ao crescimento das expedições comerciais nas montanhas dos Himalaias, os mais de 300 clientes que chegam a cada primavera para tentar a Aresta Sudeste do Everest podem mitigar seu próprio risco com a contratação de sherpas para fazer o trabalho mais perigoso para eles. Mas pouco mudou para esse povo desde então. As famílias dos homens que morreram na expedição de George Mallory, em 1922, acabaram por receber 250 rúpias (o dinheiro local) cada uma, um pagamento que, ajustado pela inflação, é compatível com o seguro de US$ 4.600 que os sherpas recebem hoje.

E, como pôde confirmar Melissa, esse dinheiro não dura muito tempo. Quando ela chegou em Thamo, vários lamas já haviam descido do mosteiro acima da vila para preparar a puja, uma elaborada cerimônia budista que busca acelerar o processo de reencarnação do espírito do falecido. Esses rituais podem custar mais do que o pagamento do seguro de vida, frequentemente aumentando o sofrimento da viúva com dívidas. Logo depois, Melissa foi confrontada por membros da família de Chhewang, que queriam enviar imediatamente uma expedição para recuperar o corpo, algo muito caro. A urgência era pelo espírito de Chhewang, que corria o risco de se perder e permanecer vagando pela terra se não fosse cremado em sete dias. “Eu implorei para que não fossem”, disse Melissa, preocupada com o fato de que outros sherpas poderiam morrer na tentativa de recuperar o corpo. Ainda assim eles foram, mas não chegaram além do campo base devido às condições da neve. Melissa pagou, do seu bolso, US$ 19.700 em aluguel de helicópteros e diz que seu patrocinador, a marca Eddie Bauer, enviou US$ 7.000 para cobrir as despesas da puja. Melissa agora se comprometeu a pagar o que puder à família de Chhewang – algo em torno de US$ 4.000 por ano – enquanto for guia. E mesmo isso não alivia por completo sua consciência.

“É a culpa de se contratar alguém que não tinha outra escolha na vida a não ser trabalhar em expedições na montanha”, contou-me Melissa, no Nepal, quando me juntei a ela para sua segunda caminhada anual de visita à viúva de Chhewang. “Minha paixão pelas montanhas criou uma indústria que faz as pessoas morrerem. É uma paixão que encara humanos como descartáveis, e isso é difícil de aceitar.”


A VILA SHERPA DE THAME se localiza perto de uma encosta alta de pastagens verdes, que está gradualmente erodindo em um barranco de 150 metros e jogando terra dentro do rio Bhote Kosi. Caminhando-se 45 minutos rio abaixo, encontra-se a vila de Thamo, lar de outras 40 ou 50 famílias. Juntas, elas ocupam a primeira terra cultivada abaixo de Nangpa La, um passo de montanha de 5.791 metros de altitude perto do monte Cho Oyu. Os sherpas vêm usando esse passo há 500 anos para cruzar do Nepal para o Tibete.

As duas vilas também têm servido de lar para alguns dos sherpas mais famosos da história do montanhismo. Tenzing Norgay viveu em Thame até se mudar, em 1932, para Darjeeling, na Índia, onde as expedições eram organizadas antes de a monarquia do Nepal abrir o país para os ocidentais. Ang Rita, de 65 anos, também de Thamo, escalou o Everest dez vezes sem auxílio de oxigênio, um recorde que lhe rendeu o apelido de “Leopardo das Neves”. E Apa, também de Thame, agora com 53 anos, bateu seu recorde de ascensões ao Everest em 2011, subindo-o pela 21ª vez.

Com seu preparo físico inato, era inevitável que Chhewang Nima se tornasse um sherpa, da mesma forma que um texano de ombros largos se torna jogador de futebol americano ou um carioca alto e ágil vira jogador de vôlei de praia. Como todos jovens que chegaram à idade adulta no pequeno vilarejo nos anos 80, super-heróis como Ang Rita e Apa eram modelos para os outros. Naquela época, as expedições ao Everest ainda eram realizadas apenas por equipes da elite do montanhismo, porém o grupo de apoio a elas já representava a indústria de serviços mais lucrativa da região do Khumbu. Os alpinistas reconheciam a força superior dos sherpas em altitudes elevadas, um dom genético confirmado por estudos que demonstraram que os sherpas conseguem processar o oxigênio com maior eficiência que os ocidentais.


VIUVEZ: Nima Lhamu perdeu o primeiro marido em um acidente no Khumbu quando
estava grávida; casou-se novamente, com outro sherpa


Chhewang começou sua carreira em 1993, aos 25 anos, na agência Alpine Ascents, como aprendiz de seu primo Lakpa Rita. Em três anos, o governo do Nepal ofereceu um número ilimitado de autorizações pagas para se escalar a popular Aresta Sudeste, o que fez nascer a era das expedições comerciais e expandiu o número de oportunidades para jovens com sonhos de criar um nome nas montanhas. A carreira de Chhewang e Lakpa Rita acompanhou a elevação da popularidade do Everest – na qual um pacote turístico sai hoje entre US$ 30 mil e US$ 120 mil e pode ser comprado pela internet – uma mudança que transformou Thame e Thamo em cidades de empresas virtuais, onde a maioria dos escaladores é contratada pela agência Alpine Ascents. Esse relacionamento tem sido lucrativo para os dois lados. Lakpa Rita tornou-se um dos mais respeitados sirdars (como se chama o chefe dos sherpas em uma operadora de turismo) do Everest e, agora, naturalizado cidadão norte-americano, divide seu tempo entre Seattle e o Nepal. Chhewang também subiu na vida, tornando-se um dos montanhistas mais confiáveis dessa indústria.

Antes de morrer, Chhewang havia escalado o Everest 19 vezes e estava a caminho de bater o recorde de idade de Apa em dois anos. Mas como um sherpa escalador de primeira linha, Chhewang ganhava US$ 6.000 por uma temporada de dois meses fixando cordas, suprindo acampamentos e carregando equipamentos, comida, barracas e oxigênio de clientes para cima e para baixo na montanha – enquanto os guias ocidentais, que carregam menos bagagem, mas cuidam da segurança dos clientes, podem receber até US$ 50 mil dólares. Com esse salário, Chhewang sustentava não só sua esposa e filhos, mas também as famílias de vários dos seus oitos irmãos e irmãs.

“Se alguém nos Estados Unidos escalar o Everest 19 vezes, vai aparecer em todos os comerciais da Budweiser”, diz Norbu Tenzing Norgay, de 50 anos, primo de Chhewang e o mais velho filho vivo do grande Tenzing Norgay. “Os sherpas não recebem o mesmo reconhecimento.” No verão de 2010, enquanto Chhewang estava trabalhando no Alasca, treinando iaques para carregar bagagens para a Alpine Ascents, Norbu, que vive em São Francisco e é o vice-presidente da ONG American Himalayan Foundation, tentava ajudá-lo com um patrocínio sério. Ele havia treinado Chhewang para responder às perguntas dos repórteres e, em julho, pediu a um editor que distribuísse o currículo de Chhewang para várias das principais marcas. Entre elas, estava até a Mountain Hardwear, que havia patrocinado o falecido Babu Chiri, lendário sherpa que detinha o recorde de escalada em velocidade do Everest, mas que morreu em 2001 ao cair numa greta próxima ao acampamento 2. Norbu conversara com Chhewang – e se lembra que o primo estava pedindo “uma miséria” se comparado aos guias ocidentais – sobre adiar sua volta para o Nepal para que pudesse se encontrar com patrocinadores em potencial em São Francisco. “Ele disse: ‘Ah, não, é muito caro trocar a passagem’. E eu não me dei conta de que eram só uns US$ 200.”

Poucas semanas depois, Norbu estava viajando a trabalho na Índia e zapeando os canais da TV do hotel quando viu a notícia sobre a morte do primo. “Fiquei completamente chocado.” A tragédia o fez se questionar sobre a justiça de uma profissão da qual tantos membros de sua família dependem. “Perdi vários parentes no Everest e em outras montanhas, todos carregando as tralhas de outras pessoas”, conta. “Os tempos agora são outros. Não estamos mais nos anos de 1950. O Everest virou um grande negócio.” Apesar de sentir gratidão pelos esforços que Melissa e outros escaladores ocidentais têm feito para ajudar, ele não acredita que apenas a boa vontade possa reconstruir as famílias destruídas pelo montanhismo. “Apenas a intenção de ajudar não é o suficiente. Já vi muitas promessas não cumpridas.”


HOUVE MELHORIAS NAS CONDIÇÕES de trabalho dos sherpas no Everest ao longo da última década. Nos primórdios das expedições, os sherpas recebiam pouquíssimo treinamento e contavam quase que exclusivamente com a própria capacidade de trabalhar em altitudes elevadas. Atualmente muitos dos 10.695 sherpas registrados como sirdars e assistentes fazem cursos oferecidos pela Nepal Mountaineering Association, em Langtang, ou pelo Khumbu Climbing Center, uma escola sem fins lucrativos sediada em Phortse e voltada para carregadores que trabalham em altitudes elevadas. Esta última, onde Chhewang era instrutor regularmente, foi fundada pelos montanhistas profissionais norte-americanos Conrad Anker e Peter Athans em 2003 e construída por um grupo de arquitetos da Universidade Estadual de Montana, nos EUA. Em ambas as escolas, os sherpas aprendem técnicas de resgate com cordas e em alta montanha. A norte-americana Luanne Freer abriu sua clínica Everest ER no acampamento base em 2003 e oferece atendimento gratuito a todos os sherpas cujas expedições tenham contrato com sua organização.

Além disso, desde a aprovação da Emenda à Lei de Turismo de 2002, o Ministério de Turismo e Aviação do Nepal tem exigido que todas as agências de trekking façam seguro de vida e de resgate para seus carregadores. Os sherpas que trabalham acima do acampamento base do Everest precisam de cobertura mínima do seguro de US$ 4.600 em caso de morte e de US$ 575 dólares para despesas médicas, enquanto os carregadores que permanecem em altitudes mais baixas devem ter um seguro de US$ 3.500. Toda expedição também é obrigada a oferecer uma cobertura de seguro coletiva aos sherpas de, no mínimo, US$ 4.000 para resgate.

Ainda assim, a maioria dessas medidas é, na prática, inadequada. Embora o treinamento dos sherpas seja importante, não existe aula ou oficina que torne os sherpas imunes à elevada exposição aos riscos que correm nas montanhas. Caminhar pela Cascata de Gelo de Khumbu, uma geleira mutável com perigo constante de se desprender, é considerado tão inseguro que algumas agências de expedição transferem seus clientes para rotas vizinhas, a fim de evitar passar por ali. Em uma temporada típica, um sherpa escalador pode fazer uma dúzia de viagens de ida e volta por essa área, e alguns ganham bônus por cada viagem extra. Guias ocidentais e clientes costumam fazer entre duas e quatro viagens na região. Quando se trata de seguro de resgate, a cobertura de US$ 4.000 é insignificante. Resgates com helicóptero em altitudes elevadas, que se tornaram rotina desde 2011, aumentam drasticamente as chances de uma pessoa sobreviver a um acidente acima do acampamento 2. Porém cada resgate aéreo custa US$ 15 mil.

Em 2012, o sherpa Lakpa Nuru, da agência Summit Climb, foi atingido na cabeça por uma pedra que desceu rolando da Face do Lhotse e chegou sangrando e semiconsciente ao acampamento 2. Enquanto isso, o líder da expedição, Arnold Coster, discutia com o agente da Summit Climb sobre o valor de US$ 15 mil para uma evacuação médica. Com cerca de meia hora de negociação, o guia Dave Hahn, da Rainier Mountaineering, usou o rádio do acampamento 2 para implorar que outras expedições no acampamento base se mobilizassem para cobrir a diferença antes que o resgate de uma pessoa acidentada se tornasse o resgate de um corpo. Lakpa Nuru sobreviveu e, em outubro passado, quando dei uma passada em sua casa em Phakding, ele já estava de volta à ativa, trabalhando nas montanhas, apesar das recorrentes dores de cabeça e dos problemas de equilíbrio que surgiram após o incidente.

O seguro de US$ 4.600 em caso de morte é igualmente insuficiente. Apesar de o valor representar um grande montante em um país onde a renda média anual ainda é de US$ 540, raramente dá para suprir as famílias e parentes que vários sherpas escaladores sustentam. Frequentemente alpinistas ocidentais tomam a iniciativa de preencher as lacunas de grana, mas isso acarreta uma lamentável disparidade. A família de Chhewang Nima teve sorte por ele ser tão conhecido. Além da ajuda de Melissa e da marca Eddie Bauer, os escaladores Peter e Conrad, da escola Khumbu Climbing Center, arrecadaram mais US$ 5.000 para seu instrutor famoso. “Chhewang era muito querido”, explica Peter.

Reconhecendo o aspecto negativo de tamanha generosidade distribuída de forma desigual, Peter acrescenta: “Temos consciência de que a esposa de Chhewang está numa situação melhor que a maioria das outras pessoas que perdeu um integrante importante da família. Há muita gente que ficou desamparada. É uma das coisas que esse tipo de turismo costuma negligenciar.”


SEM SAÍDA: Apesar de uma grave fratura no tornozelo durante uma expedição,
o sherpa Lhakpa Rangdu teve de retornar às montanhas para conseguir sustentar os dois filhos


QUASE TODOS OS GUIAS veteranos e as agências de expedição com quem eu falei para esta reportagem estavam cientes da inadequação desse sistema de proteção aos sherpas, e muitos deles pareciam tentar ativamente mudar a situação. Conrad e Peter estão trabalhando para criar um fundo que esperam usar para o seguro dos sherpas. Todd Burleson, proprietário da agência Alpine Ascents, criou o Sherpa Education Fund, em 1999, para ajudar crianças sherpas a irem para a escola em Katmandu. Melissa e David Morton, ex-guia líder da Alpine Ascents, abriram recentemente uma ONG chamada Juniper Fund, cujos recursos serão usados para ajudar viúvas sherpas, pressionar o governo a adotar medidas mais rígidas e persuadir agências a adotar um conjunto de boas práticas de trabalho. Existem muitos outros programas similares, geridos por agências ou montanhistas.

Apesar dessas boas intenções, ainda há uma surpreendente falta de compreensão por parte de clientes e agências sobre o seguro dos sherpas. Muitas agências com quem conversei estavam cientes dos requisitos básicos do seguro, mas não tinham ideia de quanto exatamente havia sido pago. Por exemplo, quando falei com Peter Whittaker, proprietário da Rainier Mountaineering, uma agência chique conhecida por organizar viagens sofisticadas para grupos pequenos, ele disse: “Tenho confiança de que meu fornecedor nepalês está cumprindo as exigências do seguro, mas preciso confirmar os detalhes antes de te falar sobre isso”. Quando verificou os dados com seu representante no Nepal, Peter descobriu que sua equipe sherpa tivera uma cobertura acima da média, de US$ 8.000, até 2012, mas que neste ano ela havia sido reduzida ao valor mínimo.

Na verdade, o atual sistema para empregar sherpas gera parte dessa confusão. Os clientes normalmente contratam agências ocidentais como a Rainier Mountaineering, que, por sua vez, são obrigadas por lei a contratar agências no Nepal. São essas agências locais que contratam, de fato, os sherpas, adquirem seguro para eles e ajudam no pagamento em caso de acidente. Por um lado, os representantes locais atuam como consultores, auxiliando as agências ocidentais a se orientar na desorganizada burocracia nepalesa. Mas eles também acabam fazendo papel de bodes expiatórios depois da confusão armada, já que, tecnicamente, são os empregadores diretos dos sherpas. Esse sistema caótico promove uma espécie de negação coletiva na qual cada pessoa acha que está agindo de boa fé, enquanto os outros estão errados.


SOZINHA NA VIDA: O marido de Jangmu perdeu a vida
ao sofrer um ataque cardíaco no acampamento 1 do Everest,
enquanto trabalhava para uma expedição


“No Nepal, o mínimo é o padrão”, explica Dip Prakash Panday, CEO da Shikhar Insurances, empresa de Katmandu responsável pela cobertura de seguro de muitas das expedições para o Everest. Se a exigência é de apenas US$ 4.600, não há incentivo para os representantes locais pagarem mais. Alguns representantes reconhecem o problema e se dizem dispostos a mudar suas práticas, mas temem que o aumento do valor do seguro implique perda de negócios. “Eu subiria para US$ 11 mil, mas não quero ser o único a fazer isso”, diz Jiban Ghimire, que trabalha para agências ocidentais. A empresa de Jiban, a Shangri-LaTreks, é uma das agências locais mais produtivas do Nepal, cuidando da logística de expedições para clientes como Alpine Ascents, Eddie Bauer, The North Face e National Geographic.

No dia 4 de junho, após a morte de outros quatro sherpas no Everest, o governo nepalês anunciou aumentos nos valores mínimos do seguro obrigatório, que entrarão em vigor em 2014. O seguro de resgate saltou de US$ 4 mil para US$ 10 mil, um aumento significativo, mas ainda menor que o custo de um voo de helicóptero acima do acampamento base. A cobertura com gastos de saúde subirá de US$ 575 para cerca de US$ 4 mil, uma mudança bastante positiva. No entanto, o seguro em caso de acidente e morte, que passará de US$ 4.600 para US$ 11 mil para trabalhadores em altitudes elevadas, ainda é insuficiente. Muitas das companhias de seguro do Nepal estão dispostas a dar cobertura de até US$ 23 mil aos trabalhadores envolvidos em atividades mais perigosas – uma mudança que, para empresas grandes como a International Mountain Guides e a Alpine Ascents, que utilizam cerca de 20 sherpas acima do acampamento base, custaria menos de US$ 2 mil a mais por temporada.


NO LIMBO: Ang Temba ficou paralisado após um acidente
vascular durante uma expedição,e hoje ele e sua mulher,
Furba, ganham a vida alugando quartos em sua casa em
Katmandu


UMA COISA QUE NINGUÉM está propondo abrir mão é da ajuda dos sherpas. Sem os esforços deles, nenhuma expedição comercial chegaria até o cume das montanhas do Himalaia. E, conforme demonstrado pelo número de sherpas que fica gravemente ferido e mesmo assim volta ao trabalho na temporada seguinte, ainda há uma alta demanda por eles.

Na época de sir Edmund Hillary – alpinista e explorador neozelandês famoso principalmente pela primeira escalada bem-sucedida do Everest, em 1953 –, o estilo de escalada dos sherpas, e que ainda é o preferido pelas expedições comerciais, era a única que existia. Mas à medida que a ideia de carregar o mínimo de equipamento possível foi se impondo, usar os serviços de sherpas acima do acampamento base caiu em desuso tanto quanto utilizar oxigênio suplementar – pelo menos entre os montanhistas de elite, que vão ao Everest em busca de novas rotas. Neste ano, uma briga entre sherpas e ocidentais em pleno topo do mundo revelou o crescente distanciamento entre esses montanhistas e nepaleses que dependem dos empregos nas montanhas.

O conflito envolveu dois importantes alpinistas profissionais, o italiano Simone Moro, de 45 anos, e o suíço Ueli Steck, de 36, além do fotógrafo britânico que os acompanhava, Jonathan Griffith, de 29 anos. Os três ignoraram o costume entre montanhistas de se afastar da face do Lhotse no dia em que as cordas estão sendo instaladas por sherpas. Cada equipe acusou a outra de causar o desprendimento de um pedaço de gelo que despencou montanha abaixo, atingindo montanhistas e sherpas. Eles começaram a discutir, todos desprovidos de oxigênio a 7 mil metros de altitude, gritando palavras em inglês – a segunda ou terceira língua de todos, o que só ajudou a aumentar a confusão. Os ânimos foram se exaltando. Segundo Karma Sarki, de 28 anos, um dos sherpas na face do Lhotse naquele dia, Simone chamou-os de “chor” (ladrões). O italiano admite ter gritado “machickne” (filho da puta, em nepalês), xingamento captado pelo rádio de um sherpa e transmitido na montanha.

Quando as duas equipes voltavam para o acampamento 2, Simone e Ueli levaram chutes, socos e golpes com pedras. Embora estivessem sangrando, eles não precisaram de atendimento médico. Melissa Arnot, que estava fazendo seu quinto cume no Everest (o maior feito já realizado por uma mulher nessa montanha), colocou-se entre os europeus e os sherpas para dispersar a briga. “Achei que seria menos provável eles atirarem uma pedra ou coisa parecida em mim, por eu ser mulher”, disse ela, em uma entrevista por telefone via satélite da montanha.

Nos dias após o barraco, Simone, Ueli e uma série de montanhistas profissionais importantes reiteraram sua posição de que tinham, sim, o direito de estar na face do Lhotse e de que não precisavam da ajuda dos sherpas. “Pagamos muito dinheiro para estar lá, então por que eu não poderia escalar?”, diz Ueli. Mesmo assim, a ideia de uma escalada sem apoio no lado sul do Everest é uma falácia. Simone e Ueli podem até ter escalado sem apoio, mas só a chegada deles ao acampamento 2 já exigiu o uso de escadas instaladas pelos sherpas na Cascata de Gelo do Khumbu. Durante uma festa em maio passado na embaixada britânica em Katmandu para comemorar o aniversário de 60 anos da primeira chegada ao cume do Everest, o italiano Reinhold Messner, considerado o mestre do alpinismo moderno, usou palavras duras ao falar sobre a situação. “Escaladores que passam pelas escadas fixadas por sherpas na Cascata de Gelo Khumbu e que, depois, sobem o Everest sem cordas alegando serem especiais são, na verdade, parasitas.”

O sherpa Karma Sarki, que também se envolveu na briga naquele dia, disse que Simone havia insultado o trabalho deles, além de xingá-los. E, subindo no estilo alpino, sem levar muito equipamento, os europeus avançaram bem mais rápido que os sherpas naquele dia, fazendo com que a equipe de fixação de cordas se sentisse diminuída. “Os sherpas ficaram furiosos porque os três escaladores nos ultrapassaram”, conta Karma Sarki. “E eles fizeram isso no nosso país, na nossa montanha. Colocamos a vida em risco para ajudar os alpinistas estrangeiros. O Everest é tudo para nós.” Nenhum desses fatores justifica as atitudes violentas dos sherpas, mas a ambiguidade toda da história – usar a ajuda dos sherpa, mas apenas em alguns trechos – explica bem por que os fixadores de corda ficaram furiosos.

Essa indefinição dos limites está começando a invadir o montanhismo como um todo. Os grandes alpinistas continuam a colocar os sherpas em risco, apesar da difundida crença de que esses montanhistas de elite deveriam fazer seu próprio trabalho pesado. Melissa era plenamente capaz de liderar o trajeto no Baruntse em 2010, mas não o fez por opção.

Mais recentemente, em julho de 2012, o sherpa Lhakpa Rangdu, de 44 anos e pai de três filhos, foi contratado por um trio escocês e sul-africano para desbravar a Aresta Mazeno, de 9.600 metros de extensão, nunca antes escalada e localizada no Nanga Parbat, montanha de 8.100 metros do Paquistão. Ao lado de um dos outros dois sherpas da equipe, chamado Lhakpa Zarok, ele abriu caminho até cerca de 200 metros do cume antes de retornar.

“Nós fomos contratados para fixar as cordas”, disse Lhakpa Rangdu em outubro passado, no pequeno apartamento que ele e sua mulher, Lhakpa Diki, de 36 anos, alugam em Katmandu. Ele se senta com o pé esquerdo cruzado sobre o joelho, revelando um tornozelo com nódulos e cicatrizes. Quando caiu, enroscando o crampon (solado com cravos para prender na bota e andar na neve) na parede de gelo e quebrando o tornozelo, Lhakpa Rangdu estava encordado com a sul-africana Cathy O’Dowd, então com 43 anos. A dupla, juntamente com os outros dois sherpas da equipe, descia enquanto os escoceses Sandy Allan e Rick Allen tentavam chegar ao topo. “Por sorte, estávamos a apenas um dia de distância do vale mais próximo”, disse Cathy. “Ele precisou descer a montanha no dia seguinte com o tornozelo quebrado.”

Dez dias depois, após um percurso a cavalo até a cidade e um voo de volta à Katmandu, onde foi feita uma radiografia de seu pé, Lhakpa Rangdu ouviu de um médico que precisaria ser operado. Ele tinha US$ 575 de cobertura médica e pagou mais US$ 500 dos US$ 3 mil que ganhara na expedição. O Paquistão também exige seguro para os sherpas, porém, mais uma vez, os detalhes não eram algo que os alpinistas estavam totalmente a par. “A maior parte dos trâmites foi feita pela agência local, então não sei como funciona. Mas os sherpas tinham seguro, com certeza”, diz Cathy.

A chegada ao topo de Sandy e Rick em 16 de julho pela Aresta Mazeno foi, antes de mais nada, um feito histórico – realizada com o apoio de sherpas contratados, fato que normalmente estaria em conflito direto com os rigorosos padrões do alpinismo moderno. Porém, em abril de 2013, numa cerimônia em Chamonix, na França, os dois ganharam o cobiçado prêmio Piolet d’Or (Piqueta de Ouro), espécie de Oscar do montanhismo. Cathy twittou no dia: “Um Piolet pela vitória na Aresta Mazeno, mérito nosso tanto quanto dos sherpas Lhakpa Rangdu, Zarok e Nuru.”


EM OUTUBRO PASSADO, me hospedei em um pequeno apartamento com parede de barro em Namche Bazaar, um vilarejo na região do Khumbu, no Nepal, onde Nima Lhamu, sobrinha do sherpa Lakpa Rita e prima do sherpa Chhewang, preparava bolinhos para vender aos carregadores que transportam mercadorias até a feira semanal que dá nome à cidade. David Morton, ex-guia da Alpine Ascents, sua esposa, a nipo-americana Kristine Kitayama, um administrador da Alpine Ascents e o filho deles, Thorne, de 2 anos de idade, também estavam lá.

Em abril de 2006, Nima Lhamu estava grávida de seis meses de seu primeiro filho com o marido Dawa Temba quando ele morreu na Cascata de Gelo do Khumbu, com dois outros sherpas. Ele tinha 22 anos. “Eu estava grávida e, quando fui à Katmandu, o dinheiro do seguro já havia sido retirado pela mãe dele”, disse Nima Lhamu. “Depois disso, a família dele começou a brigar comigo e, depois, não entraram mais em contato.” Seu filho Tenzing Chosang nasceu poucos meses depois. Dois anos atrás, Nima Lhamu casou-se novamente com Karma Sarki, assistente “faz-tudo” da Alpine Ascents. Seguindo os costumes culturais dos sherpas, para poder se casar com outro homem, ela deixou o filho Chosang, então com 4 anos, aos cuidados de seus pais, Dati e Pasang Rita, um sherpa aposentado especializado no Everest. David e Kristine se ofereceram para pagar a educação escolar de Chosang. Isso faz parte da complexa relação e conflitos de interesses inerentes a essa situação envolvendo sherpas e ocidentais. Por mais de cem anos, alpinistas ocidentais têm ajudado sherpas a saírem da pobreza rumo à celebridade étnica, inadvertidamente destruindo famílias e, depois, lutando para ajudá-las a juntar os cacos.

No dia seguinte, acompanhei Melissa em uma caminhada até o vilarejo de Thamo para visitar a viúva de Chhewang Nima. Os filhos de Chhewang, Ang Gyaltzen e Lhakpa Tenzing, estavam de férias da escola e em casa para visitar a mãe. A casa dela, no alojamento Tashi Delek, fica atrás de um muro baixo, logo depois de um declive com uma longa fileira de pedras budistas esculpidas a mão e que dividem uma trilha. Lhamu Chhiki nos recebeu em sua cozinha com uma expressão séria e vestindo um tradicional avental listrado sherpa. Ela se emocionou assim que viu Melissa, mas fez sinal para nos sentarmos e serviu chá. Melissa disse que, possivelmente, tinha conseguido um trabalho para ela na loja Adventure Gear, em Katmandu. Em seguida, entregou-lhe um envelope com centenas de dólares norte-americanos, um ritual que Melissa me contou ser a coisa mais difícil que ela faz todos os anos.

Depois de 15 minutos colocando as novidades em dia, perguntei a Lhamu Chhiki se ela não se importaria que Melissa saísse para eu entrevistá-la a sós. “Nunca quis que meus filhos se tornassem escaladores”, disse Lhamu Chhiki. “Eu quero proporcionar a eles uma educação para que, depois de criados, possam fazer algo além de subir montanhas.” Ao final de nossa breve conversa, perguntei se ela culpava Melissa pela morte de seu marido. “Não”, disse. “Eu não culpo Melissa.”


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Naquela noite, subindo a trilha em Thame, nós nos encontramos novamente com os David e Kristine, que tinham concordado em levar Chosang, o filho de Nima Lhamu, de volta para a casa dos avós, em Marlung. Na manhã seguinte, nos terraços da aldeia voltados para o leste, não havia sinal de vento. Os únicos sons que se ouviam eram dos sinos tradicionais e do pequeno riacho perto do abrigo de montanha Sun Shine. Do lado de fora, encontramos o irmão de Nima Lhamu, Mingma Tshering, um belo rapaz de 21 anos com maçãs do rosto proeminentes e fluente no inglês. Ele havia concluído o ensino médio recentemente em Katmandu, graças ao patrocínio de um benfeitor alemão, e nos disse que via opções para seu futuro. “Antigamente as pessoas não iam à escola. Eram obrigadas a ir para o Everest”, contou.

Ele também cresceu ouvindo seu pai, Pasang Rita, o primo Chhewang e o tio Lakpa Rita contarem as mesmas histórias do Everest que todos nós já lemos ao longo dos anos. “Na minha infância, eu sonhava em escalar o Everest”, disse. Pasang Rita se aposentou do trabalho de expedições em 2012. “Meu irmão mais novo e eu estamos fazendo planos para ir no lugar dele”, disse Mingma. Ele havia decidido trabalhar no Everest, mas não tinha contado seus planos à irmã, Nima Lhamu. “Quero conhecer a vida nas montanhas. Talvez eu escale o Everest uma única vez. Depois disso, nada de ficar fazendo trabalho arriscado.” Mas já disseram a ele que, uma vez que você começa nesse meio, pode ser difícil parar.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de janeiro de 2014)







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