Sem perder o rumo

Cada vez mais populares na Europa e no Brasil, as corridas de orientação exigem fôlego e perspicácia extrema do atleta, que precisa correr, ler mapa e procurar pontos de controle ao mesmo tempo


Por Camila Junqueira


MULTI-HOMEM: As provas de rogaine, modalidade da orientação, podem durar de 2 a 24 horas
(Foto: Geir Pettersen)


POR INCRÍVEL QUE PAREÇA, nenhum dos mais de 200 participantes do Monsterogaine, a quinta etapa da Liga Espanhola de Rogaine, entrou em pânico ou desistiu de participar da prova, no final de setembro, depois que seu diretor-técnico recomendou, minutos antes da largada, que todos tomassem cuidado com objetos metálicos não identificados encontrados pelo caminho. “Não vá pisar neles!”, implorou. O evento, como muitas outras competições de orientação realizadas atualmente na Europa, foi disputado em território militar, remetendo à origem do esporte, que até o final do século 19 se restringia apenas ao exército. As competições organizadas em parceria com os militares podem tirar proveito de seus grandes campos de treinamento, que costumam ter bons mapas e terrenos bastante duros e técnicos —com a única “desvantagem” de que, ocasionalmente, um corredor pode topar com alguma mina pelo caminho.

É dada a largada, e as equipes correm sprintando cerca de 300 metros para chegar até a barraca onde estão pendurados os mapas em escala 1:10.000, que ocupam praticamente toda a desengonçada folha A2 recebida pelos participantes. Muito concentrados e distribuídos em pequenos grupos (as equipes podem ter de dois a cinco integrantes), os corredores começam a recortar e traçar percursos sobre o mapa. Em menos de dois minutos, alguns já estão correndo, e pouco a pouco todos vão saindo, cada um em uma direção diferente. De longe, pode parecer que os competidores observam o chão em uma busca desesperada pela tal mina que não querem ver nem pintada de ouro, mas na realidade não lembram mais dela: focados na prova, agora eles têm olhos apenas para o mapa e para o que lhes rodeia.

Os rogaines são a modalidade mais dura e longa da corrida de orientação, e neles a estratégia faz toda a diferença. Com formato conhecido como score, ganha quem encontra mais pontos de controle durante um tempo predeterminado. Os pontos de controle não têm ordem estabelecida e nem sempre é obrigatória a passagem por todos eles. No Monsterogaine, que tinha 101 pontos de controle opcionais e um tempo-limite de oito horas, os ganhadores correram cerca de 50 quilômetros em trilhas e subiram mais de 1.500 metros. Ainda mais dura foi a final da liga, cujos ganhadores da equipe Suunto, formada por Biel Ràfols (leia entrevista com ele nesta reportagem) e Juan Barea, percorreram quase meia centena de quilômetros com um desnível positivo de mais de 2 mil metros em seis horas. Tais dificuldades aproximam os rogaines das provas de corrida de montanha, mas com o fator de complicação nada desprezível de ser preciso se orientar e correr simultaneamente, ir quase metade do tempo total da prova fora de trilhas e caminhos determinados e precisar parar em pontos de controle para registrar a passagem.

Seguindo a onda de popularização das corridas de montanha, os rogaines, que há alguns anos eram vistos com antipatia pelos orientadores mais tradicionais, conquistam cada vez mais adeptos na Europa, nos Estados Unidos e na Nova Zelândia, com muitos corredores de aventura e ultramaratonistas de montanha entre seus participantes. Com um regulamento bastante flexível, os rogaines podem durar de 2 a 24 horas. A corredora de aventura brasileira Nora Audrá, por exemplo, vive na Nova Zelândia há mais de cinco anos e organiza na cidade de Christchurch divertidos circuitos de rogaine com provas de duas horas que acontecem sempre durante a semana e depois do horário de trabalho (os R&R Sport Wicked Rogaine Series). Já o Campeonato do Mundo da modalidade, que neste ano celebrou sua 11ª edição na Rússia, teve duração de

24 horas ininterruptas.


FERAS: O francês Thierry Gueorgiou; abaixo, o suíço Matthias Kyburz
(Fotos: Roni Rekomaa)


Os orientadores mais puristas preferem as competições em que resistência e estratégia não são tão importantes quanto a habilidade de ler o mapa. Mas não pense que eles não correm: é impressionante a capacidade que têm de aguentar um ritmo bastante forte (os tempos das provas de distância média, que costumam ter entre cinco e sete quilômetros, são de dar inveja a muito corredor de cross-country). E correm lendo o mapa, saltando sobre pedras, desviando de ramos de árvores e se movendo pela mata fechada — sem jamais se desorientar.

As provas mais tradicionais e antigas são divididas em “distância longa”, “distância média” e “sprint”. São individuais e com percurso linear, e o que diferencia cada uma delas é a escala do mapa e o tempo de duração (na “longa”, o ganhador demora cerca de 1h15, na “média” por volta de meia hora, e na “sprint”, de 10 a 20 minutos). No mapa, vêm desenhados o local de partida (representado por um triângulo), os pontos de controle (círculos) conectados por linhas e numerados na ordem em que devem ser visitados, e a chegada (um círculo). Exatamente no centro de cada ponto de controle, o corredor encontra um prisma, que conta com um picotador. O corredor precisa picotar seu cartão de controle para comprovar sua passagem por ali. Ganha quem passar por todos os pontos de controle do mapa em menos tempo.

Nas provas de sprint, que normalmente se realizam em zonas urbanas ou parques, os mapas costumam ser em escala 1:4.000 (ou seja, cada centímetro de mapa representa 40 metros); nas de média distância, em 1:10.000 (um centímetro são 100 metros); e nas de longa, em 1:15.000 (um centímetro são 150 metros). Outro dado importante é a distância entre as curvas de nível, que nos mapas com escala 1:10.000 e 1:15.000 normalmente é de cinco metros (quando você vai de uma curva de nível à outra, sobe, ou desce, cinco metros). Os mapas vêm com uma tabela que descreve a localização dos pontos de controle com símbolos e também trazem a distância aproximada da prova (em linha reta de um ponto de controle ao outro), desnível positivo, localização de bebedores ou apoio externo de hidratação, e distância entre o último ponto de controle e a chegada (os competidores também recebem essa tabela de símbolos em um papel à parte e as colocam em um bracelete para facilitar sua visualização).

Nessas provas, cada corredor recebe um mapa diferente de acordo com sua categoria. Há categorias para todas as idades de adultos a partir de 21 anos, com intervalos de cinco anos, elite masculino e elite feminino, categorias júnior (para corredores de 10 a 20 anos) e categorias para iniciantes. Nunca corredores da mesma categoria largam no mesmo horário: as saídas são escalonadas em baterias formadas por corredores de categorias diferentes, enquanto nos rogaines as saídas são sempre em massa.

Além de provas de distância média, longa e sprints, nos Campeonatos do Mundo de Orientação também se disputa um revezamento entre os atletas da seleção de cada país. O primeiro Campeonato do Mundo de Orientação aconteceu em 1966 e foi disputado a cada dois anos até 2003, quando passou a ser uma competição anual. A edição deste ano rolou em julho na Finlândia, e a desse ano acontecerá na Itália, no mesmo mês.

Desde o surgimento da orientação como esporte, é nos países nórdicos onde sua prática é mais popular. Para ter uma ideia, em 1934 na Suécia, quando o país tinha a metade do número de habitantes que a cidade de São Paulo possui atualmente, por volta de 250 mil pessoas participavam com regularidade de competições de orientação. Pouco depois, em 1942, ela já estava entre as modalidades esportivas ensinadas nas escolas do país. No entanto, surpreende saber que Thierry Gueorgiou, de 34 anos, e Simone Niggli-Luder, 35, as duas grandes feras da orientação na atualidade, não sejam nórdicos. Simone é suíça, enquanto Thierry nasceu na França. Os dois vêm se destacando nos Campeonatos do Mundo de Orientação desde 2003 — Thierry nas provas de distância média, levando o ouro em seis edições, e Simone nas quatro competições que disputou, subindo ao lugar mais alto do pódio em todas (distância média e longa, sprint e revezamento) nos mundiais de 2003 e 2005. Curiosamente, os dois estudaram biologia.

Além dos Campeonatos do Mundo de Orientação, celebrados desde 1966, os clubes locais, criados por gente apaixonada pela orientação, dão muita vida ao esporte organizando pequenas competições, sempre com atividades paralelas de introdução à modalidade para as crianças, que, em vez de oferecer prismas, seguem pistas que levam a um prêmio ou surpresa. Mas o componente lúdico da orientação não é um atrativo apenas para as crianças. Sempre, e em qualquer idade, encontrar um prisma dá uma sensação gratificante parecida com a de achar um tesouro. E é um esporte duplamente democrático: cada idade e nível de experiência tem uma categoria que lhe corresponde, de forma que todos os corredores conseguem motivação competitiva. Além disso, não é um esporte caro, pelo menos na Europa: a inscrição para uma prova de circuito regional costuma custar cerca de £ 5.

Honrando as origens da modalidade, cuja primeira competição aconteceu em Oslo (Noruega) em 1897, as provas mais populares também rolam em solo nórdico. São dois revezamentos: o sueco Tiomila, que a cada ano recebe mais de 7 mil orientadores; e o finlandês Jukola, que já tem quase 65 anos e em 2012 contou com a participação de mais 15 mil corredores de 20 países. Apesar do gene viking, nessas provas a rivalidade aperta apenas entre as equipes do pelotão da frente. Para a grande maioria dos participantes, o evento é quase uma festa.

O início da popularização desse esporte data dos anos 1940, com o surgimento de bússolas confiáveis e acessíveis a todos. Até hoje a bússola é o equipamento mais importante do orientador. Os modelos preferidos são os de dedo, que o corredor coloca na mesma mão que carrega o mapa, normalmente apontando para o local do mapa onde ele está, ou pelo menos pensa que está (as marcas mais tradicionais são Suunto, Silva e Orientsport). Braceletes para levar a descrição dos pontos de controle também não podem faltar.


NO SPRINT: Simone Niggli, da Suíça, em prova na Finlândia
(Foto: Geir Pettersen)

Os relógios com GPS são terminantemente proibidos em todas as competições. Para os leigos, pode parecer que a tecnologia não interferiu em nada nesse esporte. Puro engano: os dispositivos com localização via satélite são importantes aliados nos treinos e na produção de bons mapas; e os relógios com altímetro, estes sim permitidos, dão informação importante ao corredor, sobretudo em provas longas como os rogaines. Já os sistemas de registro eletrônico de passagem dos corredores pelos pontos de controle (que estão substituindo os tradicionais perfuradores) economizam um tempo precioso da organização para calcular os resultados. Também há tênis criados especialmente para orientação, com cravos no solado para um melhor agarre e maior velocidade nos terrenos mais técnicos (as marcas mais usadas são Inov e Icebug). Panturrilheiras acolchoadas para proteger as canelas e faixas de cabeça para evitar que o suor escorra sobre os olhos completam o kit do típico orientador.


Ainda falta muito para que tenhamos no Brasil tantos ou tão bons orientadores como existe hoje na Europa, mas já estamos dando nossos passos. Os primeiros mapas específicos de orientação com território brasilero começaram a ser feitos nos anos 1980 com a ajuda de topógrafos nórdicos, e a primeira competição não militar aconteceu em Porto Alegre (RS) em 1992. Naquela época, surgiram diversos clubes na região Sul do país, onde até hoje se concentram a maioria dos corredores de orientação brasileiros. Atualmente, a Federação Gaúcha de Orientação conta com 23 clubes e é responsável pela organização da maior competição do esporte no Brasil, o Campeonato Gaúcho de Orientação, que em 2013 contou com sete etapas. Quase todos os nossos estados têm sua federação, regulamentadas pela Confederação Brasileira de Orientação (para saber se o seu estado possui uma federação e se há algum clube de orientação em sua cidade, entre no site cbo.org.br).

Várias provas bacanas também acontecem em território nacional: este ano, o Campeonato do Mundo de Orientação Máster (para corredores com mais de 30 anos) terá sua base nas cidades gaúchas de Porto Alegre e Canela, e o Campeonato Sul-Americano de Orientação foi disputado em Goiânia (GO) enquanto produzimos esta edição que você tem nas mãos. Também há vários atletas brasileiros fazendo bonito nessas competições. Na edição de 2012 do Sul-Americano, por exemplo, os gaúchos Ironir Alberto e Miriam Ferraz Pasturiza levaram o ouro nas categorias mais disputadas de elite.


> Louco por mapa

Um bate-papo com o espanhol Biel Ràfols (foto abaixo), um dos talentos atuais da corrida de orientação.


O espanhol Biel Ràfols, de 26 anos, cresceu vendo sua família praticar orientação e é expoente de uma geração que aprendeu a ler mapas brincando. Ele foi campeão da Espanha em todas as categorias júnior e traz no currículo o tetracampeonato espanhol de rogaines.


GO OUTSIDE Desde quando você compete em corridas de orientação?

BIEL RÀFOLS Minha primeira corrida foi em 1996, quanto eu tinha 9 anos. Dos 13 aos 17 anos, eu, meus pais e irmãos passávamos os verões em um furgão viajando e participando de provas por toda a Europa. Foi uma época muito bonita.


Como era participar de orientação quando criança?

Sempre foi uma diversão, um jeito de brincar. Tem que ser assim, caso contrário não faz sentido. Com 10 anos, eu buscava pistas e fitas, com 14 anos já começava a entender melhor os símbolos dos mapas e procurava “surpresas escondidas”. Porém apenas com 20 comecei a entender a orientação como um esporte de alto rendimento.


Quem é o orientador que você mais admira?

Se não dissesse Thierry Gueorgiou e Simone Niggli, estaria mentindo. Tive a sorte de competir contra eles, fico fascinado ao ver como competem e, principalmente, como treinam e se mantêm motivados. São os melhores!


Qual é a modalidade que você mais gosta?

Sem dúvida, a média distância. Nela o aspecto físico é menos relevante e se dá mais importância à orientação. Você tem que correr rápido, mas as balizas estão perto uma da outra (cerca de 500 metros) e é preciso estar muito concentrado todo o tempo. Isso é o que eu mais gosto.


Que conselhos você daria aos que estão começando?

Paciência no começo para entender a simbologia do mapa e procurar as balizas tranquilamente. Estudar os mapas e entender seus símbolos também é muito importante. E acima de tudo: primeiro pensar, depois correr.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de fevereiro de 2014)







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