Pedra, flor, espinho

Durante seis etapas, 113 corredores de 24 países enfrentaram 273 quilômetros dos desérticos Estados norte-americanos de Uath e Arizona para completar a mítica ultramaratona Grand to Grand

Por Stephan Kappes
Fotos de Christiane Kappes


PEDRADA: O britânico Lee Harris passa por túnel de pedra do Grand Canyon durante as competições

O BRASILEIRO Maycow Angelo Patrício, 35 anos, ajeita metodicamente os 12 quilos de sua mochila. Depois de se certificar de que tudo está no lugar certo, Mico, como é chamado pelos amigos, abre um sorriso de satisfação. Ele arruma o lenço na cabeça e olha mais uma vez para o abismo de 600 metros do Grand Canyon, logo atrás da linha de largada. Dentro de quatro minutos vai começar a primeira etapa da corrida de longa distância Grand to Grand (G2G). O termômetro indica 12ºC. Mico mais parece um monge tibetano meditando, de tão calmo e equilibrado. Ele é daquele tipo de pessoa que todos admiram sem saber exatamente por quê. Apenas três metros à frente, com seu rosto de traços delicados e um corpo magro e leve de apenas 1,57 metros de altura, Maria Rita Fernandes, de 46 anos, veio de Manaus para, assim como Mico, participar pela primeira vez da ultramaratona de vários dias que acontece em uma das regiões mais lindas dos Estados Unidos. Os atletas ainda não sabem, mas esta será a primeira e a última visão ampla que terão do Grand Canyon.

Na Grand to Grand, que rolou em setembro passado, 113 atletas de 24 países atravessaram o interior do território norte-americano durante sete dias e seis etapas, passando pelos Estados de Utah e Arizona e seguindo os vestígios dos antigos colonos e índios navajos. O percurso se estende por 273 quilômetros, da fronteira norte do Grand Canyon até o topo dos penhascos Pink Cliffs, em Utah, a uma altura de 2.621 metros. Quase não há trilhas abertas por ali. O trajeto alterna trechos de cascalho, terreno selvagem, dunas de areia, caminhos por florestas e estradas de terra irregulares, com muita poeira. No total, os corredores superam um desnível acumulado de 10.176 metros.



As etapas atravessam desertos, vales, leitos de rios secos, cavernas, desfiladeiros e incríveis formações rochosas. Quem for rápido demais pode sofrer desidratação aguda, por isso se aventurar na competição requer cuidado. Jeison Costa, 35 anos, é o mais experiente corredor brasileiro na G2G. Ao lado de seu amigo argentino Christian Colque, no ano passado ele tornou-se o primeiro latino-americano a correr em todos os quatro grandes desertos do planeta, como parte do circuito Four Deserts. Foram 250 quilômetros em cada deserto, no Atacama (Chile), em Gobi (China), no Saara (Egito) e na Antártica. Comunicativo e sempre bem-humorado, o especialista em tecnologia da informação foi contagiado pelo vírus das ultramaratonas. Mesmo experiente e preparado, para ele a Grand to Grand revelou-se “um desafio especial”. “A areia aqui é muito macia. Então você chega ao limite físico e psicológico”, conta Jeison.

Pontualmente às oito da manhã, o pelotão de atletas equipados com mochilas de hidratação se põe em movimento para enfrentar os primeiros 50 quilômetros. Apenas sete quilômetros depois, um choque para o belga Steven Sleuyter: ele cai e se contorce de dor. Seu ombro esquerdo se deslocou. Como se estivesse em transe, Sleuyter empurra o próprio ombro com toda a força. E consegue a proeza de colocá-lo no lugar novamente. “Pensei que a corrida tinha acabado ali para mim”, diz o franzino empresário de Bruges, com seus parcos 61 quilos.


NA SECURA: O brasileiro Jeison Costa, e na foto mais acima, o norte-americano Craig Foster

Doze quilômetros antes da linha de chegada da primeira etapa, o terreno se transforma em uma zona de combate. Os corredores usam seus bastões para afastar arbustos pontiagudos, alguns gritam de dor, outros mexem agitados nos tênis. Vicente Juan Beneito, que lidera a prova no momento, grita para aliviar o desespero. Seus tênis e suas pernas estão cheios de espinhos. O grande corredor espanhol já passou por muitas situações adversas, mas nunca tinha atravessado um campo de cactos. A equipe do ponto de apoio tenta motivá-lo quando ele passa. “You are almost there! [Você está quase lá!]” Infelizmente, a tortura continua até a linha de chegada. A dor se parece com a picada de milhares de agulhas. Jeison também é obrigado a parar várias vezes para tirar espinhos dos tênis. “Em uma das paradas, vi uma cobra e corri como se fosse morrer”, diz ele. Na chegada, quase todos os participantes estão ocupados usando pinças.


NA SEGUNDA ETAPA, A TRILHA DOS NAVAJOS (Navajo Trail) atravessa 43 quilômetros por trechos de areia e terra batida. A largada acontece em um pasto afastado do acampamento onde ficam os atletas. Liderando a corrida, o espanhol Vicente, o belga Steven e o italiano Paolo Barghini deixam os outros participantes rapidamente para trás. Um desses três certamente será o vencedor da prova – já é possível sacar isso diante do nível muito superior de sua performance. Ao meio-dia, o sol queima a todos, brilhando como uma lâmpada de mesa cirúrgica. Para alguns corredores, só essa etapa já será uma verdadeira prova de força. Alguns receiam por seus pés – a areia fina se entranha nas meias. Para a manauara Maria Rita, a prova já se tornou um “triathlon”, misturando corrida, caminhada e marcha atlética.

Sob um calor de 30ºC, alguns corredores na linha de chegada já manifestam receio pela terceira e longa etapa que vem pela frente. O britânico Damian Blanchard ostenta braços vermelhos como um camarão, o rosto pálido e a voz monótona: “No final, minha água acabou”. O norte-americano Yuriy Esperson parece bem abatido, como se tivesse acabado de sair de uma briga de bar. “Em 1992, eu venci um campeonato de 24 horas aqui nos EUA, correndo 238 quilômetros. Por isso tenho pela longa etapa da Grand to Grand o maior respeito.” Para o quarto brasileiro na prova, o carioca Anderson Cerceau, de 43 anos, a corrida tem sido perfeita até agora. Anderson cumpriu as duas primeiras etapas com soberania, economizando forças e mantendo o ritmo. Sua colocação entre os 30 melhores competidores comprova seu potencial.

Na manhã do terceiro dia, os corredores matam os estressantes momentos antes da largada preparando a mochila. Depois, é dada a partida para a etapa decisiva, de cansativos 85 quilômetros. Logo fica claro que o desafio não será nada fácil: dezenas de quilômetros de areia fofa desenrolam-se na frente dos competidores, em um constante sobe e desce. Os quatro brasileiros seguem espalhados e distantes uns dos outros.


CENAS DE UMA ULTRA: De cima para baixo, largada da prova; a norte-americana
Julie Jenson e o belga Steven Sleuyter



Depois de 13 horas, Maria Rita Fernandes ainda não desistiu. Ela caminha devagar, com dificuldade, seus bastões sempre em ação. Bebe água como um camelo. No mínimo, um litro por hora. O calor ela consegue suportar bem, afinal temperaturas acima de 40ºC são normais em Manaus. Mas é com as dores cada vez mais fortes que ela se preocupa de fato. “A areia fofa me faz perder muita força, estou sentindo todos os músculos do corpo”, diz. Para se preparar, Maria Rita correu apenas de 20 a 30 quilômetros por dia. Ali, em meio à paisagem linda e desoladora, ela parece exausta.

Mico é ortopedista. Além do treinamento para a corrida, ele se dedicou à musculação até quatro vezes por semana para se fortalecer. Por isso quase não sente o peso da mochila. Sua aparência lembra a de um modelo. Barbudo, tem um tipo másculo. A respiração é levemente sibilante, e ele corre com passadas curtas. “Tive medo das dunas de areia à meia-noite. Eu me afundava até os joelhos de tão fofa que era a areia”, conta Mico. Ele é o primeiro brasileiro a atravessar a linha de chegada, depois de 17h28 – cerca de 60 minutos à frente de Jeison e Anderson. Mais tarde, Mico ainda receberá uma homenagem especial dos organizadores por ter ajudado a salvar algumas vidas nessa noite. Quando três participantes chegaram ao final da etapa com hipotermia e desmaiaram, Mico os socorreu imediatamente, tomando todas as medidas para estabilizar o estado de saúde dos colegas e cuidando deles até o sol nascer.


O TERRENO DA GRAND TO GRAND muda constantemente e apresenta sempre novos desafios aos corredores. Cânions, dunas de areia, campos de cactos. Alguns já não têm mais força, outros perderam a calma faz tempo. Assim que o sol desaparece, a temperatura sofre uma queda brusca de 15ºC. Não são poucos os atletas que fazem uma pausa ao escurecer para dormir um pouco no ponto de apoio. A noite no deserto é meio fantasmagórica. Há pequenas luzes por toda a parte – das lanternas de cabeça dos atletas, dos diversos LEDs de sinalização instalados pela organização e do céu estrelado de tirar o fôlego. Trata-se de um espetáculo natural inesquecível. Segundos tornam-se minutos, minutos transformam-se em horas. São 6h20. Maria Rita vê uma faixa. Depois de 22h20, ela é recebida por Tess Geddes, uma pequena filipina de 55 anos que organiza desde 2012 a ultramaratona com seu marido, Colin Geddes.


VAI BRASIL: Anderson Cerceau atravessa paredões
rochosos; abaixo, Maycon Angelo Patricio e sofrimento dos pés



Tess é uma atleta apaixonada, com grande experiência em corridas internacionais. Colin, um típico escocês e ex-bancário, cuida da burocracia e dos negócios da Grand to Grand. Não há um prêmio para o vencedor; os corredores que completam o percurso recebem somente uma fivela de cinto com o símbolo da prova, idolatrada pelos corredores como uma faixa de campeão mundial de boxe. Para participar, os atletas pagam uma taxa de inscrição respeitável: quem se inscreve bem cedo paga “apenas” US$ 2.400, enquanto aqueles que deixam para mais tarde precisam desembolsar US$ 3.200 – um passeio bem caro pelo Grand Canyon.

Por volta das 20h, todos desaparecem para dormir em suas barracas. Os geradores quebram o silêncio do deserto, mas isso já não incomoda ninguém. É preciso reunir forças para as últimas três etapas, mesmo elas sendo relativamente “curtas” (41.3, 41.9 e 12.3 quilômetros, respectivamente). A paisagem mais bonita começará agora. Parte do trajeto vai atravessar um desfiladeiro maravilhoso, no qual as rochas são de um vermelho forte, no chamado Slot Canyon, em Utah. Os atletas tentam se manter motivados. Porém o termômetro resolve baixar na última noite para temperaturas extremas, chegando a 7ºC negativos. Todos batem os dentes, e o jeito é apelar para a tática da “conchinha coletiva”, com vários corredores se aquecendo com o calor do corpo do vizinho de barraca.

Como na prova de ciclismo Tour de France, o importante na última etapa é conseguir fazer bonito na reta final. Os participantes, portanto, cruzam a linha de chegada mais ou menos juntos, pois já se sabe quem são os vencedores. A vista dos penhascos de Pink Cliffs, com suas estranhas formações rochosas, deixa os atletas fascinados. O espanhol Vicente Beneito coroa seu excelente desempenho vencendo a G2G em 31h09. Todos os brasileiros completam a prova felizes e eufóricos. Jeison consegue o 16° lugar, com 42h17. Anderson é o 26°, com 45h15, e Mico é o 32°, com 48h31. Maria Rita consegue realizar seu sonho em 61h04, obtendo o 69° lugar. Para ela, a corrida bem que poderia se chamar “Sand to Sand”, ou “De grão em grão” de areia. Mesmo assim, ela confessa que faria tudo de novo.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de dezembro 2013/janeiro 2014)







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