Peixinha é

Apenas 5 anos depois de experimentar o stand-up paddle pela primeira vez, a paulista Nicole Pacelli encara uma final dramática na França e se torna a primeira campeã mundial de sua modalidade

Por Mariana Mesquita

RINDO À TOA: Nicole se diverte com o pranchão em Turtle Bay, no Havaí, dias depois de
vencer a primeira etapa do circuito mundial; abaixo, fazendo pose
(Foto: Hugo Valente)


(Foto: Fabiana Silva)

NEM O FRIO, MUITO MENOS O VENTO que batia forte nas areias de La Torche, no sudoeste da França, desanimaram as centenas de pessoas que estavam pela praia naquele começo de novembro. Todos acompanhavam a última etapa da primeira edição feminina do Stand Up World Tour, o circuito mundial de stand-up paddle. No outside, a jovem paulista Nicole Pacelli, de 22 anos, era líder do ranking até então. Ela aguardava apreensiva a série entrar para ter a chance de manobrar seu pranchão. Na água, a brasileira sabia que só a norte-americana Candice Appleby poderia tirar seu título. “Foquei todas as minhas forças na bateria contra ela”, lembra Nicole. “Depois que a venci, relaxei. Mas o campeonato ainda não tinha terminado, e perdi minha bateria seguinte”. Sem as duas principais favoritas na etapa, as atenções se voltaram para a disputa entre as norte-americanas Vanina Walsh e Izzi Gomes. Caso Vanina vencesse, seria campeã do mundo. Se perdesse, o título ficaria com a brasuca. Ao final da batalha dramática, Nicole terminou a etapa na 7a colocação, mas somou os pontos que precisava para ficar à frente no ranking geral e ser coroada a primeira campeã mundial de stand-up paddle da história na modalidade wave.

Nicole sempre soube que lidar com o universo competitivo seria difícil. “Comecei praticando o stand-up paddle por diversão e estou evoluindo aos poucos. Não sei dizer o que aconteceu na final, mas aprendi a lição: manter o foco até o fim”, diz Nicole. Um grande exemplo para ela é o havaiano Kay Lenny, que apesar dos 21 anos de idade já é tricampeão mundial de stand-up paddle nas ondas. Kay está no topo da lista dos atletas que Nicole mais admira: além de dominar a modalidade, sabe se concentrar durante as competições. Mas, como integrante de uma família bastante envolvida com a história do surf brasileiro, Nicole tem em seus pais e irmãos outras grandes referências. “Estou aperfeiçoando meu espírito competitivo e minha família me ajuda muito nisso. Aprendi com meu pai a ter calma nos momentos difíceis. Ao mesmo tempo, a força da minha mãe em sempre ir atrás do que quer me inspira”, revela a garota. Nas horas difíceis, ela também abre mão de uma arma secreta: cantar. “As pessoas podem até achar estranho, mas minha banda preferida é Racionais Mc’s, que não tem muito a ver com o surf. Quando eu estava entrando no mar em La Torche, cantei uma música deles para me sentir mais forte”.

O circuito inaugural da categoria feminina do Stand Up World Tour contou com a participação de 16 garotas de todos os cantos do mundo em quatro etapas oficiais, realizadas no Havaí, no Brasil, na Califórnia e na França. Além de Nicole, a brasileira Aline Adisaka, natural de Ubatuba (SP), também marcou presença no World Tour e fechou o ano como a quarta melhor do mundo. Nesta primeira edição, qualquer atleta podia se inscrever; a partir do ano que vem, com o primeiro ranking estabelecido, somente as melhores terão a chance de participar. “Tomara que agora, com um grande circuito oficial, a visibilidade deste esporte aumente”, diz Nicole, que venceu uma etapa, foi vice em outra, e conquistou um quinto e um sétimo lugares ao longo do circuito. Com esse resultado, ela e o santista Leco Salazar (que venceu o circuito mundial em 2012) são os únicos brasileiros a carregar o título de campeão mundial de stand-up paddle nas ondas. Detalhe: ambos se tornaram os melhores do mundo apenas três anos depois que se iniciaram na modalidade.


BOTANDO PARA BAIXO: Nicole dropa uma bomba na França
(Foto: Hugo Valente)


NICOLE AINDA ERA UMA CRIANÇA quando descobriu a paixão pelo surf. Ela é filha do lendário brasileiro Jorge Pacelli, surfista de ondas grandes que tem várias temporadas no Havaí. Foi ele que, há quase 20 anos, empurrou a menina em suas primeiras ondas nas praias do Guarujá, onde ela nasceu e viveu por seis anos, até mudar-se com a mãe, a bodyboarder Flávia Boturão, e os irmãos para a capital. Mesmo vivendo em uma cidade grande, sua relação com o surf só se fortaleceu. Em 2009, Jorge Pacelli apresentou o primeiro pranchão de stand-up paddle à menina, que logo se viciou na brincadeira.

O caminho até o topo do ranking do Stand Up World Tour ainda demoraria alguns anos, ao longo dos quais adquiriu experiência e colecionou histórias. Depois de terminar o ensino secundário, Nicole lançou-se em um intercâmbio de seis meses pela Nova Zelândia, país com alguns dos melhores roteiros outdoor do planeta. Ao retornar ao Brasil, ainda em 2009, ingressou no curso de Educação Física na Universidade de São Paulo (USP). “Meus pais sempre se preocuparam com os meus estudos e dos meus irmãos. Daqui a 15 anos, quando eu não surfar mais profissionalmente, o que vou fazer da vida? Preciso ter uma opção”, diz.

A carreira de atleta foi ficando mais séria depois que ela correu uma das etapas do Campeonato Paulista da modalidade em Santos (SP), em 2010. Sem nenhuma informação sobre o nível de suas adversárias nem experiência em qualquer tipo de competição, ela ganhou o campeonato. Meses depois, Nicole pisaria no topo do pódio do Brasileiro de SUP: durante a etapa de Ibiraquera, em Santa Catarina, ela deixou para trás seis competidoras, entre elas, a gaúcha Greta Sisson, que vive em Imbituba (SC) e que lhe tomaria o título brasileiro em 2011 (Nicole seria novamente coroada a melhor surfista de stand-up paddle do país no ano seguinte).

Nicole passou a ter aulas de treinamento funcional em São Paulo e a correr para melhorar seu preparo físico. Além de continuar descendo as ondas do Guarujá (SP), ela também começou a encarar as ondas pesadas de Maresias, no litoral norte paulista, onde sua família tem casa. Foi com essa bagagem que, em 2010, ela desembarcou pela primeira vez, com seu pai e sua prancha de stand-up paddle, nas tradicionais ilhas do Havaí. “Eu cai de pranchão em Sunset Beach e confesso que foi uma surpresa ter me dado bem”. O pico é um clássico do North Shore havaiano, com direitas pesadas que atenção e habilidade.

Foi nessa mesma praia que, em fevereiro de 2012, ela venceu sua primeira etapa do Stand Up World Tour. O circuito feminino ainda não existia oficialmente, e rolava somente durante algumas etapas do masculino, que acontece desde 2010 e leva a chancela da Waterman League, entidade que divulga e promove a cultura de esportes praticados no mar. Já na estreia, Nicole chamou a atenção. Aproveitando a boa fase, ela decidiu se inscrever em uma etapa masculina do circuito. “Geralmente é difícil surfar no Havaí por causa do crowd, então pensei que, apesar de estar competindo contra homens, seriam apenas eu e três caras na água para disputar as ondas.” Isso lhe deu a chance de descer ondas de até quatro metros. “Quando saí da água, vários surfistas me parabenizaram, mas eu só conseguia me lembrar da série gigante que tinha acabado de tomar na cabeça”, lembra.


TANTA COISA ACONTECEU nos últimos dois anos que a paulista preferiu trancar o curso de Educação Física para aproveitar a maré boa e se dedicar totalmente ao stand-up paddle. “Sempre que encontro com minha mãe, ela pergunta: ‘e a faculdade?’”, diz, rindo da situação. No mar ela já está diplomada: em 2013, além do circuito mundial, venceu o International Surfing Association (ISA), tido como os “Jogos Olímpicos do Surf”. Durante este evento, que aconteceu no Peru, Nicole deixou para trás grandes nomes da modalidade, como a francesa Caroline Angibaud – outra surfista que esteve nas quatro etapas do Stand Up World Tour. Em abril de 2013 Nicole também concorreu ao Billabong XXL Global Big Wave Awards, uma espécie de “Oscar do big surf”, com uma onda de seis metros dropada no braço em Waimea, usando uma pranchinha tradicional. “Eu não venci, mas só de ter a minha foto entre as finalistas já foi uma grande conquista.”

A atleta paulista também foi convidada para integrar o programa “Sol & Sal”, transmitido pelo Canal OFF. Ao lado da surfista profissional Claudia Gonçalves, que já ganhou uma etapa do WQS, circuito de qualificação para a elite do surf mundial, ela viajou para as Ilhas Samoa, um arquipélago no centro do oceano Pacífico, em busca de ondas e aventuras. Claudia se impressionou com o “surf no pé” da amiga. “A Nicole desceu boas ondas de dois metros, para esquerda e direita, sem dificuldade, com uma incrível habilidade em todos os tipos de mar. Além de muito surf, ela tem uma atitude admirável”, diz.

Nicole ama o mar, e garante que os campeonatos são apenas uma consequência dessa paixão. “Quando eu era criança, nem pensava em competir. Eu e meu pai já surfamos ondas grandes juntos, algumas vezes de tow-in. Mas a verdade é que nunca me dei bem em competições”, explica. Ela reconhece que um ponto importante para sobreviver num esporte extremo é ter a humildade de saber quando você ainda não esta pronto para um desafio. “O mar é imprevisível e merece respeito. Eu já deixei de surfar algumas vezes porque senti que não estava preparada para estar lá, e acho que fiz a coisa certa.”

A humildade também a faz enxergar os erros. “Preciso aprender a manter o foco durante as competições para não me prejudicar”, diz ela, que já confirmou presença no Stand Up World Tour em 2014. Ir ao cinema, viajar, curtir a família, o namorado e voltar a estudar também estão na “lista dos planos para 2014”. Claro que medos e ansiedades são comuns na vida de qualquer garota de vinte e poucos anos, mas Nicole prefere lembrar que é abençoada por conseguir viver fazendo o que mais gosta.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de dezembro 2013/janeiro 2014)







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