Com investimentos tímidos do governo e quase sem apoio de empresas privadas, os atletas brasileiros ainda ganham mal e contam com infraestrutura muito inferior à de seus colegas gringos – deixando mais distante o sonho de medalha olímpica Por Adalberto Leister Filho
AQUELAS CORREDEIRAS pareciam desafiadoras para a mineira Ana Sátila Vargas. A garota havia descoberto a canoagem aos 9 anos, quase por acaso, após praticar boxe e natação. Com 13 anos, enfrentou uma prova de fogo. “Fiz bobagem porque o rio estava muito cheio e eu quis remar. Fiquei enroscada em um galho. Meu técnico tentou me ajudar, mas foi difícil sair. Quase me afoguei. Deu um medinho, sim”, admite a canoísta, que três anos depois se tornaria a mais jovem atleta brasileira na Olimpíada de Londres.
Para chegar à vaga nos Jogos, ela superou obstáculos ainda mais intransponíveis do que as perigosas corredeiras de Primavera do Leste, no Mato Grosso, onde morava com a família. A falta de incentivo para continuar no esporte foi o principal deles. Até o ano passado, recebia do Bolsa Atleta, programa do Ministério do Esporte para fomentar novos talentos, pouco mais de R$ 900 mensais. Foi só em 2013, depois da participação olímpica, que sua vida mudou. Os ganhos da canoísta, entre bolsa e salário pago por patrocinadores, chegam agora a R$ 6.000, e ela conta com a boa infraestrutura do Centro de Treinamento da CBCa (Confederação Brasileira de Canoagem), em Foz do Iguaçu (PR), para onde se mudou.
Para isso, a CBCa conta, desde 2011, com patrocínio de uma empresa estatal, o BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social), que jogou nas corredeiras e rios, neste ano, uma verba de R$ 6,2 milhões. Ainda é pouco, se comparado ao orçamento de países tradicionais na modalidade, como França e Alemanha, que gastam entre R$ 30 milhões e R$ 40 milhões por temporada nesse esporte. Porém é o suficiente para as primeiras remadas. “Hoje existe uma luz a ser trabalhada incansavelmente até 2016, com reais possibilidades de se transformar em uma grande surpresa para o Brasil”, acredita Argos Rodrigues, superintendente da confederação.
O Estado ainda é o principal financiador da preparação olímpica no Brasil, onde os investimentos privados são em sua grande parte limitados às modalidades mais badaladas e aos atletas já consagrados – cenário bem diferente daquele encontrado em outros países, onde as marcas costumam incentivar o esporte através de contratos e apoio direto. O Programa Bolsa Atleta é a principal folha salarial que tenta manter jovens talentos treinando e almejando conquistas futuras. “Neste ano, o Ministério do Esporte investiu R$ 150 milhões no programa, beneficiando cerca de 6.000 atletas de modalidades olímpicas. Para 2014, teremos valor semelhante”, afirma Ricardo Leyser, secretário nacional de alto rendimento do Ministério do Esporte.
O programa existe desde 2005, mas proibia os bolsistas de receberem qualquer outro tipo de patrocínio. Muitos burlavam a regra, porém estavam sujeitos à punição de perder o salário pago pelo governo. No ano passado, o regulamento foi alterado e não limita mais os ganhos dos esportistas. “O patrocínio muitas vezes vem somente como uniforme ou material esportivo. A vantagem do Bolsa Atleta é que o esportista sabe que irá receber mensalmente. Permite avançar, para que ele possa fazer um caminho dentro do programa, em busca de bolsas mais altas, de acordo com o nível que for atingindo”, destaca Ricardo. NEM TODOS, PORÉM, foram beneficiados pelo crescimento das receitas. Brasileira melhor colocada no ranking mundial do ciclismo BMX (na 28ª posição), Priscilla Carnaval recentemente teve que readequar seus gastos. Sem patrocínio, ela bancava um investimento mensal de R$ 1.200 para treinar com o francês Thomas Allier, que a acompanhava desde 2011. “Neste ano ainda não recebi o Bolsa Atleta e não tive mais condições de continuar com ele, o que é difícil. O Thomas me passa muita confiança e consegui meus melhores resultados sob o comando dele”, lamenta Priscilla.
Sem ganho fixo mensal, ela teve auxílio de sua equipe, a Penks, de Barueri, e da Confederação Brasileira de Ciclismo, para viajar e competir. Em algumas ocasiões, não foi o suficiente. “Minha mãe também me ajuda. O restante do dinheiro é conforme ganho em competições no Brasil. Cada Campeonato Paulista dá em torno de R$ 150 de premiação.”
Potências mundiais do BMX, Austrália, Estados Unidos e França oferecem incentivos bem mais vultuosos a seus atletas – os principais nomes do esporte chegam a salários acima de R$ 20 mil mensais. A boa notícia é que foram os países emergentes que subiram às primeiras posições do pódio na Olimpíada de Londres. Maris Strombergs, da Letônia, conquistou o bicampeonato olímpico. Mito em seu país, ele conta hoje com 12 patrocinadores e receitas estimadas em mais de R$ 100 mil mensais. Vizinha do Brasil, a colombiana Mariana Pajón também superou as dificuldades de falta de infraestrutura e triunfou em Londres. Patrocinada pela Red Bull, uma das empresas que mais investem em esportes de ação e aventura, ela recebeu premiação de R$ 230 mil pela façanha. Isso após recusar oferta de US$ 1 milhão caso ganhasse o ouro competindo pelos Estados Unidos.
Apesar dos exemplos a serem seguidos, há muitos obstáculos para o BMX brasileiro chegar a esses patamares. Renato Rezende, principal atleta do masculino no país, aponta uma dificuldade básica: a ausência de uma pista olímpica no Brasil. As instalações usadas na preparação não contam com a mesma distância nem com o grau de dificuldade de um percurso oficial. A rampa de largada também é mais baixa, diminuindo o impulso do ciclista. “É como treinar no campo de futebol society e disputar campeonato no gramado oficial”, compara. O Rio de Janeiro irá construir uma pista para a Olimpíada. Há também projeto em Londrina, sede da confederação brasileira, que prevê a inauguração de um centro de treinamento da modalidade. Por enquanto, a saída é mesmo o aeroporto. “Estamos estudando passar um período nos Estados Unidos em 2014”, conta o técnico Daniel Jorge.
A partir do ano que vem, a infraestrutura do ciclismo tende a melhorar, com a injeção de mais recursos financeiros. A Caixa Econômica Federal anunciou, em outubro, que patrocinará o esporte. Até 2016 serão liberados R$ 17 milhões nas diversas modalidades (ciclismo de estrada, pista, BMX e mountain bike) na busca por uma inédita medalha olímpica. A melhor participação ocorreu na Olimpíada de Roma, em 1960, com a quinta posição de Anésio Argenton na prova de velocidade em pista. “Foi isso [a possibilidade de medalha] que aproximou a confederação da Caixa Econômica”, afirma Francisco Cusco, coordenador de Alto Rendimento da Confederação Brasileira. “O grupo que estamos treinando tem chance de brigar por medalha. Se irão conseguir ou não, a sorte é quem vai dizer”, faz coro Hernandes Quadri Jr., técnico de ciclismo de estrada. Sorte e, claro, salários decentes, pistas adequadas para treinos, uma boa equipe de treinadores e obviamente patrocínio.
O investimento brasileiro nos pedais, no entanto, ainda é ínfimo quando comparado aos gastos internacionais. Uma equipe de ponta de ciclismo de estrada tem orçamento médio de R$ 27 milhões por temporada. A principal delas, a Team Sky, bicampeã da Volta da França, a mais tradicional e glamorosa prova do calendário internacional, embolsa valores mais impressionantes. Em 2013, a patrocinadora Sky gastou cerca de R$ 94 milhões para estampar seu logotipo no uniforme do britânico Chris Froome, campeão do Tour de France. Com o título obtido neste ano, calcula-se que o Chris deva receber, entre salários e patrocínios diversos, cerca de R$ 12,5 milhões na próxima temporada.
Se é inegável que, com iniciativas como o Bolsa Atleta, a realidade brasileira melhorou nos últimos anos, o país ainda está a muitos quilômetros de pedaladas distante dos patamares milionários da Europa e dos Estados Unidos. “Hoje, 80% dos ciclistas da seleção brasileira conta com o Bolsa Atleta. Além disso, a maioria tem contrato com clubes, com salários que podem chegar a R$ 10 mil e R$ 12 mil. Acredito que nesse ciclo olímpico vamos ter contratos até maiores”, afirma Francisco Cusco. Fora da seleção, a realidade é bem mais dura: em equipes quase sempre criadas com apoio de prefeituras, os atletas de ciclismo de estrada frequentemente vêm seu parco salário atrasar – isso quando não recebem nada. Muitos têm de se virar como mecânico de bike, treinador ou fazendo bico em outras áreas, gastando energia e foco que poderiam ser usados em treinamentos rumo aos Jogos. APESAR DE BEM-VINDO, O INVESTIMENTO brasileiro é tardio para a formação de atletas. Calcula-se que sejam necessários ao menos oito anos, ou dois ciclos olímpicos, para que surja um atleta de ponta. Às vésperas dos Jogos do Rio em 2016, é difícil preparar uma nova geração de elite. “Hoje é um sonho mesmo uma medalha. Não temos tantos talentos. Precisamos aumentar a amostragem”, afirma Carlos Eduardo Machado, o Cadu, técnico de mountain bike. Para ele, é necessário acontecer a massificação da modalidade, para que o país possa descobrir mais atletas promissores. Ações nesse sentido, porém, são tímidas. O Ministério do Esporte tenta interiorizar esportes menos populares fornecendo equipamentos esportivos para Estados do Norte e Nordeste, melhorando o nível de competitividade desses locais. O alcance da iniciativa, no entanto, é limitado.
A simples escolha do Rio de Janeiro como sede da Olimpíada, ocorrida em Assembleia Geral do COI (Comitê Olímpico Internacional) em 2009, já representou novas perspectivas para alguns atletas. É o caso do triatleta Reinaldo Colucci. “Antes meus patrocinadores eram mais voltados para provas de Ironman. Agora mudaram o foco e passaram a cobrar resultados relacionados à Olimpíada também”, comemora o medalhista de ouro no Pan-Americano de Guadalajara, em 2011. Com situação financeira estabilizada, Colucci pôde voltar a ser treinado pelo australiano Brett Sutton, mesmo técnico da suíça Nicola Spirig, medalha de ouro na Olimpíada de Londres. Concentrado na distância olímpica, neste ano o brasileiro foi nono colocado na Grand Final do Mundial, além de ter triunfado na etapa de Guatape (Colômbia) da Copa do Mundo. “Se melhorar uns 30 ou 40 segundos na corrida e me aprimorar na natação, tenho chance de me incluir entre os ‘top 5’ e brigar por medalha”, acredita Colucci.
Entre os esportes outdoor, quem não reclama de financiamento é o vôlei de praia. Neste ano, apenas em convênios com o Ministério do Esporte, a CBV (Confederação Brasileira de Vôlei) conseguiu uma verba de R$ 8,9 milhões, tendo como metas principais a disputa dos circuitos sul-americano e mundial da modalidade. Mesmo com esses incentivos, a participação brasileira morreu na praia. No Mundial de Roma, em 2011, o país havia sido campeão no masculino (Emanuel/Alison) e feminino (Juliana/Larissa). Em Stare Jablonki (Polônia) neste ano, o país ganhou apenas uma prata (Ricardo/Álvaro Filho) e um bronze (Lili/Bárbara Seixas).
Apesar dos investimentos virem quase às vésperas da próxima Olimpíada, a esperança de que haja uma participação histórica em 2016 é bastante alta. “O Comitê Olímpico Brasileiro tem a meta de colocar o Brasil pela primeira vez entre os dez primeiros países no quadro geral de medalhas. Para isso, a expectativa é subir ao pódio em cerca de 13 modalidades”, afirmou o COB através de sua assessoria de imprensa.
O discurso do comitê encontra eco no Ministério do Esporte. “Esperamos ficar entre os dez primeiros. Competir em casa ajuda, atrai novos investimentos, a torcida incentiva”, conta Ricardo Leyser. “Iniciamos o ciclo olímpico muito bem, com 25 medalhas em Mundiais”, acrescenta.
O dirigente refere-se aos seis ouros, dez pratas e nove bronzes obtidos pelos atletas do país neste ano, em competições de nível mundial, o que daria ao Brasil a oitava posição em uma hipotética Olimpíada em 2013. Tal desempenho no primeiro ano do novo ciclo olímpico não garante campanha brilhante daqui a três anos. Para a Olimpíada de Londres, em 2012, o ministério previa a conquista de 20 medalhas, mas teve que se contentar com 17 (três ouros, cinco pratas e nove bronzes), que colocaram o Brasil apenas na 22ª posição. Resta saber se isso irá se repetir.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de dezembro 2013/janeiro 2014)
DESPISTADO: Renato Rezende, um dos principais nomes do BMX brasileiro, aponta a
ausência de uma pista olímpica para treinos no país como um dos obstáculos para
conquistarmos medalhas nesse esporte
CASO RARO: Graças a patrocínios, o triatleta Reinaldo
Colucci (em foto da vitória no Pan de 2011)
pôde voltar a treinar com o australiano Brett Sutton
(Foto: Doug Pensinger)
MUITO À FRENTE: Ciclistas estrangeiros, como o britânico Chris Froome
(na foto fugindo do pelotão em 2013 em prova no Colorado, EUA),
chegam a receber milhões de dólares em patrocínio
(Foto: Doug Pensinger)