Amor acima de tudo

Casal de norte-americanos decide escalar as 50 vias mais clássicas da América do Norte em uma jornada de desafios, aventura e, claro, muita paixão

Por Janine Cardoso



NAS ALTURAS: Enquanto Mark tira esta foto, Janelle e o amigo Jed Porter aproximam-se
do cume do Monte Fairweather (4.671 metros) no Alasca
(Foto: Mark Smiley)

MOVIDOS POR UMA MESMA filosofia de vida e com uma sintonia fina desenvolvida à base de muita confiança mútua, o casal de norte-americanos Mark e Janelle Smileys decidiu criar um projeto que, ao mesmo tempo, une seu amor pelo esporte e o de um pelo outro. Batizado de Committed (Comprometidos) – nome que faz uma alusão tanto ao compromisso que os dois têm como marido e mulher quanto a esse trabalho em conjunto –, o projeto tem um objetivo ambicioso: levá-los às 50 mais clássicas linhas de montanhas da América do Norte. “Linha” é um termo tradicional da escalada que designa uma rota específica até o todo de determinado paredão rochoso ou montanha.

Commited foi inspirado no livro norte-americano Fifty Classic Climbs of North America (50 Escaladas Clássicas da América do Norte), escrito por Steve Roper e Allen Steck, em 1979. A obra, que mistura dicas de esporte com uma narrativa que convida à meditação, tornou-se uma espécie de “bíblia” entre os adeptos do esporte, por ser muito mais que apenas um guia com grandes rotas da modalidade.

A ideia do projeto começou a despontar na mente dos dois escaladores quando Mark, que é guia de montanha, soube que um amigo havia realizado, em parceria com mais duas montanhistas de alto nível, 20 das 50 “clássicas montanhas” da América do Norte em apenas 20 dias. Ainda sem conhecer o livro de Steve e Allen, Mark identificou-se de cara com o feito, em especial por já ter escalado anteriormente algumas delas.

Debruçou-se, então, em pesquisas sobre o assunto, descobrindo não apenas o livro, mas também um importante detalhe: nenhum outro montanhista no mundo havia realizado todas as tais 50 linhas clássicas. Diante desse desafio estimulante, Mark refletiu que tudo seria ainda mais fascinante se tivesse a seu lado a esposa, Janelle. O sonho saiu do papel, tomou as vidas da dupla e transformou completamente o cotidiano dos Smileys. Desde 2010, os dois estão “comprometidos” mais que nunca com as montanhas.


EMPAREDADO: Jad Porter companheiro de escaladas do casal, no Alasca
(Foto: Janelle Smiley)


SORRIA: Mark Smiley subindo a agulha Devil’s Thumb
(2.767 metros), no Alasca
(Foto: Janelle Smiley)

A sincronia positiva entre parceiros de escalada é sempre uma grande aliada para otimizar o sucesso de uma empreitada desse tipo, principalmente quando esta envolve adversidades, algumas frustrações e muitas tentativas. “Não tínhamos noção de onde estávamos nos metendo. É bem impressionante a diversidade entre as montanhas dessa lista, localizadas no Canadá e nos Estados Unidos, incluindo o Alasca”, revela Mark.


Os vídeos, imagens e textos documentando cada uma das 43 rotas realizadas até agora pelos Smileys mostram bem essa variação de terrenos, estilos e cenários. No site do projeto (smileysproject.com), é possível ver fotos e cenas inspiradoras das escaladas. Ao final do projeto, os dois terão escalado mais de 50 mil metros verticais em uma viagem que irá abranger mais de 40 mil quilômetros.

O currículo dos dois parceiros parece ter sido moldado para encarar, um dia, um desafio como esse. Com 32 anos, Mark Smyles é um profissional certificado pela American Mountain Guides Association como guia de alta montanha e de escalada em rocha, além de trabalhar também com recreação outdoor. Janelle, de 31 anos, cresceu escalando, esquiando e brincando nas montanhas do Colorado, nos EUA. A paixão por esportes de neve levou-a para a Noruega, Suécia, Suíça, França e Itália, onde desenvolveu ainda mais suas habilidades como esquiadora, conquistando por três vezes seguidas, inclusive em 2012, o 1º lugar no Campeonato Norte-Americano de Esqui de Montanha.

O projeto dos Smileys teve início, efetivamente, em abril de 2010, quando o casal trocou sua casa no Colorado por uma van, batizada por eles de “Lulu”. Em maio daquele mesmo ano, a dupla escalou a primeira linha de Committed – a Castleton Tower, situada nas Fisher Towers, no Parque Nacional de Moab, no Estado de Utah (EUA). Seis meses depois, faltando apenas sete linhas para finalizar suas montanhas clássicas, o casal admite que são muitas as dificuldades para viabilizar um projeto desse porte, mesmo contando com patrocínios, apoio e parcerias de marcas consagradas como Gore-Tex e La Sportiva. Ambos mantêm trabalhos nos períodos das “entressafras” de cada montanha para “ajudar a colocar gasolina no tanque da Lulu”, como brinca Janelle. Ela ganha a vida como coordenadora de eventos, enquanto Mark se vira como guia de montanha. “Trabalhamos duro para tornar nosso sonho uma realidade”, diz ele.



VEM QUE DÁ: Ian Lovett, que acompanhou algmumas escaladas dos Smileys, no Monte
Stuart (2.870 metros), no estado norte-americano de Washington
(Foto: Mark Smiley)

SEGUNDO MARK E JANELLE, para que a parceria entre os dois funcione é fundamental saber dividir as funções e cumprir bem seu papel. “Momentos de estresse são inevitáveis. Porém, principalmente nas horas difíceis, contamos com duas certezas: não queremos morrer e queremos permanecer casados. Sentimos muito amor e confiança um pelo outro, e isso nos leva a resolver os problemas com rapidez e manter foco no nosso objetivo final”, conta Mark.

Enquanto Janelle cuida da comida, por exemplo, Mark lida com os equipamentos. Ela supervisiona a logística e alguns assuntos do dia-a-dia, e Mark trata com os patrocinadores, mexe nas redes sociais e pensa em outras formas de promover e divulgar o projeto. “É uma grande trabalheira, mas há o lado positivo de sempre estarmos vivendo novas aventuras.”

Entre os capítulos de maior perrengue, o Monte Waddington, no Canadá foi um dos mais desafiadores até agora. “Lá existem muitas pedras grandes e soltas, é bem perigoso. Felizmente chegamos ao cume [4.019 metros] sem qualquer imprevisto durante o percurso, administrando com cautela cada passo.” Ironicamente, o pior acidente de Commited aconteceu pouco tempo atrás, no final de setembro de 2013, durante a escalada do paredão de granito conhecido como Royal Arches, no Parque Nacional do Yosemite, na Califórnia – justamente a linha classificada como uma das mais fáceis do livro de Steve e Allen. “Durante o rapel, a corda ficou presa em uma pedra do tamanho de uma placa, que caiu e atingiu o braço e a perna de Janelle”, lamenta Mark, enquanto sua parceira ainda se recupera das escoriações. “Você realmente precisa respeitar cada uma das rotas.”

Para Mark, entre uma de suas linhas preferidas está a escalada da torre de Lotus Flower, no Canadá – para conquistá-la, são 16 cordadas do mais puro granito até atingir 2.570 metros de altura, em uma linha graduada em 5.10c (segundo classificação dos EUA). “Trata-se de uma das escaladas em rocha mais lindas do mundo”, vibra Mark.

Já a linha do Salathé Wall, na famosa formação rochosa El Capitan, no Yosemite, é uma das mais memoráveis para Janelle até agora. Graduada em 5.13b em livre ou 5.9 em artificial (classificação dos EUA), a Salathé é uma escalada muito técnica de 35 cordadas, com estilo marcante de off-width (linha que percorre fendas largas demais para entalamento de pés e mãos, mas não tão larga quanto uma chaminé). “Amo a sensação de ‘morar’ na parede, passar dia após dia escalando e, depois, dormir no porta-ledge [aquelas plataformas móveis que ficam penduradas na rocha a metros do chão]. É incrível como a vida pode ser simples quando estamos lá em cima.”

Em outubro, quando Mark e Janelle conversaram com a Go Outside, o casal estava na fase de planejamento e captação de recursos para as próximas escaladas do projeto, que devem acontecer entre maio e junho de 2014, no Alasca. Dentre as sete montanhas que faltam para completar o Commited, três podem ser escaladas em apenas um dia, pois são pequenas se comparadas às outras quatro, localizadas no Alasca e no Canadá.

Já as outras quatro expedições levarão entre duas a quatro semanas e custarão entre US$ 5.000 e US$ 8.000. “E não há garantia de que seremos bem-sucedidos, devido ao tempo e às condições duras nesses lugares”, explica Mark. Por isso o projeto não tem data definida para terminar. Segundo ele, tudo dependerá de financiamento e do sucesso nessas quatro grandes expedições. “Já tentamos duas vezes, por exemplo, escalar o Denali [a montanha mais alta da América do Norte, com 6.194 metros] pela rota Cassin, mas não conseguimos. Esperamos que as condições meteorológicas estejam a nosso favor quando tentarmos de novo.”

Só é possível realizar uma ou duas grandes expedições por ano, por causa das condições climáticas e do volume de trabalho, grana e equipamentos exigidos. Por isso, pode-se dizer que os Smileys estão “tão perto, tão longe” de completar as 50 rotas de Committed. Mesmo assim, o casal já pensa em futuros desafios, quem sabe nas 50 escaladas mais incríveis do mundo. Amor pelo esporte, e de um pelo outro, é o que não falta para movê-los montanhas acima pelo resto da vida.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de novembro de 2013)







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