Ciganos à deriva

No Sudeste Asiático, a comunidade moken luta para preservar sua cultura de povo do mar – e, para isso, conta com a ajuda de um grupo de estrangeiros que se uniu para protegê-los e documentar seu estilo de vida milenar

Por Dado Abreu


DESTREZA: Homem recolhe pepino-do-mar na Tailândia

(Fotos: Pierre Perrini)

QUANDO UM DEVASTADOR TSUNAMI varreu o litoral da Tailândia e de outros 13 países da bacia do Índico na manhã de 26 de dezembro de 2004, nenhum integrante da comunidade moken estava sob perigo. Não por sorte ou fruto do acaso. Abrigados no topo das montanhas, a pequena comunidade do arquipélago de Mergui, localizado no mar de Andaman, entre o Mianmar (antiga Birmânia) e a Tailândia, farejou o aroma da destruição. Abandonou a praia no momento em que o oceano recuou e se livrou quase intactamente de uma das piores tragédias naturais da história da humanidade. Entre os mais de 230 mil mortos, não havia um só moken. Porém, embora o tsunami não tenha sido capaz de dizimar o grupo de pouco mais de 2000 pessoas, como aconteceu com outras comunidades locais, o crescimento do turismo no Sudeste Asiático e modernas frotas pesqueiras estão cuidando de dar fim a uma cultura ancestral de mais de 3500 anos.

É por conta disso que um time de cineastas, fotógrafos e designers, liderados pelo documentarista norueguês Runar Jarle Wiik, criou o Project Moken, para retratar e proteger o modo de vida desse povo conhecido como os “ciganos do mar”. O coletivo disponibiliza em seu site (projectmoken.com) uma série de conteúdos audiovisuais, como vídeos e fotografias. E, no ano que vem, pretende lançar sua grande tacada para preservar ainda mais as tradições da comunidade: o documentário No Word for Worry (Sem Palavra para Preocupação, em tradução livre). O título é uma referência à língua local dos moken, que também não possuiu palavras como “oi” e “tchau”. A ideia é que o longa-metragem, focado na vida de um jovem moken e dirigido por Runar Jarle Wiik, chame atenção internacional para a situação dessas pessoas que sofrem brutalmente com sérias ameaças de extinção de sua cultura. “O objetivo é dar a possibilidade aos moken de participar do mundo moderno e tirá-los da zona de exclusão na qual vivem hoje”, diz o diretor.

Segundo um poema épico local, “os moken nascem, crescem e morrem em seus barcos, enquanto os cordões umbilicais de seus filhos mergulham no mar”. Isso porque, fora do período de monções, os moken vivem entre oito e nove meses por ano navegando entre as praias da região a bordo de suas kabangs, como são conhecidas as longas e características embarcações que utilizam há séculos. No mar eles comem, dormem e educam os filhos. Reza o mito que a razão desse costume seria um castigo dado por uma antiga rainha chamada Sybian, quando seu marido, Geman, da Malásia, traiu-a com sua própria irmã. Inconformada, a monarca teria então declarado que, a partir daquele momento, a kabang dos malaios representaria o corpo humano, com a parte dianteira sendo a boca e a traseira o ânus, e neles eles viveriam eternamente suas vidas.


BARCO-CASA: Nesta foto é possível ver as kabangs,
embarcações nas quais os moken passam suas vidas


E assim são os dias dos moken. Exímios mergulhadores capazes de prender a respiração por vários minutos, buscam no fundo do mar, com ferramentas simples, suas necessidades diárias: peixes e moluscos para se alimentar, além de conchas, caracóis e ostras que trocam por outros produtos com comerciantes. Eles acumulam poucos bens materiais e, quando em terra firme, vivem contrariados. Muitos, inclusive, sofrem com náuseas e enjoos nesses curtos períodos longe do oceano. A ligação com a água é tamanha que suas crianças aprendem a nadar antes mesmo de darem os primeiros passos – um estudo da Universidade de Lund, na Suécia, apontou que a visão subaquática dos jovens moken é duas vezes melhor que a de outras crianças.


A PÁTRIA DOS MOKEN é o arquipélago de Mergui, composto por cerca de 800 ilhas dispersas ao longo de 400 quilômetros no Mar de Andaman. Uma de suas principais vilas se localiza nas ilhas Surin, ao sul do arquipélago, onde cerca de 200 pessoas do grupo fixam bangalôs no período de chuvas de monções. Surin é o único grupo de ilhas que permaneceu no território da Tailândia quando a fronteira foi traçada nos tempos em que a França governava a Birmânia – todas as outras ilhas são parte da costa ocidental de Mianmar. É nessa comunidade que se encontra um dos grandes problemas enfrentados por esse povo.


TUDO NATURAL:Nesta foto, cena do povo moken; acima, cabanas na costa da Tailândia

Para produzir o kabang, o barco-casa que representa a própria identidade dos moken, os mais antigos membros da comunidade que ainda dominam a arte de construção da embarcação utilizam a madeira sólida de uma árvore que cresce nas ilhas Surin. O tronco deve ter uma medida específica, nem mais, nem menos, exatamente compatível com o abraço de dois homens adultos ao redor de uma árvore. Se suas mãos se tocarem do outro lado do tronco, significa que aquela árvore tem o tamanho exato para o casco de um kabang. Contudo a poda não pode acontecer antes de uma semana de rituais xamânicos necessários para espantar “os espíritos ferozes que habitam as árvores”. Outras madeiras, além do bambu, servem de material para a construção do convés, do mastro e do timão, tudo sustentado por cordas de fibras vegetais. Na proa, uma carranca faz as vezes de estabilizador, e a única vela do kabang é feita de folhas trançadas de palmeira. Esculpida à mão, a construção leva, em média, quatro meses para ser construída. Tudo parece simples, ao menos para um moken ancião, mas não é bem assim.

Nos anos 1980, as ilhas Surin foram incorporadas a um parque nacional tailandês e protegidas por rígidas leis ambientais que proíbem, entre outras coisas, a poda de árvores, mesmo pelos moken. Residentes há tempos no local, eles não possuem nenhum tipo de direito, sofrendo com a falta da matéria-prima essencial para a substituição de seus barcos – só com o tsunami, eles perderam um quinto de sua frota, e o que restou está deteriorada. Esse conflito é o ponto central de No Word for Worry, que narrará a dificuldade de uma família das ilhas Surin para fabricar um kabang e, assim, desenvolver e preservar sua identidade.


A TAILÂNDIA É HOJE o principal destino turístico do Sudeste Asiático. No último ano o país recebeu mais de 15 milhões de viajantes, número três vezes maior do que o Brasil. O crescimento da indústria do turismo contribuiu para uma política de exclusão que acabou segregando os moken em favor dos estrangeiros, conta Runar Jarle Wiik. “O exército delimitou a área deles com barracas de bambu, forçando-os a permanecer num determinado local, ‘preservando’ assim as outras praias exclusivamente para os turistas”, revela o diretor. “Se são pegos navegando, eles sofrem repressão por falta de documentos ou de autorização.” Alguns moken alegam que funcionários do governo chegaram a cortar todas as palmeiras de seu povoado para que eles perdessem qualquer direito sobre as terras. Isso porque, na Tailândia, o plantio de palmeiras é considerado atividade agrícola, e uma lei local indica que, se uma terra for mantida fértil por mais de 20 anos, as pessoas que nela habitam possuem direitos legais sobre ela. Desse modo, os moken não contam com nenhum tipo de cidadania. Nem na Tailândia, muito menos no Mianmar.

Por outro lado, uma ameaça ainda maior compromete o futuro desses nômades: frotas pesqueiras modernas estão destruindo a fauna aquática local, contribuindo ainda mais com o estrago causado pela tragédia de 2004. Assim alguns moken estão sendo forçados a se mudar para o continente, abrindo mão das raízes. “O mar mudou, e a nossa vida mudou”, comenta, abalado, Khun Jao, um dos personagens do documentário. “Não podemos mais fazer as mesmas coisas que antes. Nem ir aos lugares que costumávamos. A vida, para nós, não é mais divertida”, diz ele, que deixou o mar e se mudou com os 13 membros da sua família para Kuraburi, na Tailândia. Como Khun, outros também se transferiram para a cidade. Quase todos acabam contratados por barcos de pesca para colocar explosivos no fundo do oceano ou mergulhar 40 metros em busca de produtos exóticos, como pepino-do-mar. Correndo risco de embolia pulmonar, o mergulhador moken fatura com essa atividade, em média, somente US$ 10 por dia pelo balde coletado – um prato com uma pequena porção da iguaria não sai por menos de US$ 40 nos restaurantes turísticos tailandeses. Ainda assim, os moken seguem suas vidas com um inabalável sorriso. Talvez porque “preocupação” seja mais uma das palavras que não cabe em seu idioma.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de setembro de 2013)







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