Superação no Yosemite

Pela primeira vez na história, um atleta com as pernas paralisadas guia com sucesso uma escalada no parque californiano do Yosemite, nos EUA


Por Maria Clara Vergueiro


INSPIRADO: Sean guiando a vitoriosa ascensão no paredão Jamcrack, no Yosemite
(Foto: Dave Campbell)


DURANTE 14 MESES, Sean O’Neill observou a enorme ponte. Memphis-Arkansas é uma estrutura de ferro e concreto que se debruça sobre o rio Mississippi, na divisa dos Estados norte-americanos de Arkansas e Tennessee. Sean passou a infância se pendurando em árvores, muros, antenas e prédios, subindo cada vez alto, até se ver fascinado pelos 34 metros que separam o rio e a base da ponte. Tinha 25 anos e pretendia praticar um pouco antes de pular lá de cima em direção à água, mas acabou se jogando antes de ter um plano bem esquematizado. Assim que chegou à superfície e recuperou o fôlego, sabia que sua coluna estava quebrada e que as pernas nunca mais funcionariam como antes. “Ali pensei que já havia machucado minha família mais que o suficiente com aquele acidente e que era bom eu achar um jeito de chegar à margem a salvo”, conta Sean, que segundos depois de decidir sobreviver se agarrou a uma bóia salva-vidas, milagrosamente lançada por um barco que passava ali perto.

A idade, diz o norte-americano, torna tudo mais fácil. Hoje, aos 48 anos, é o primeiro paraplégico a liderar uma escalada ao El Capitan, a mítica parede rochosa de 915 metros localizada no Parque Nacional do Yosemite, na Califórnia.

Para muitos escaladores, subir o El Capitan equivale a ir a Meca uma vez na vida para um islâmico: é o ponto alto na trajetória de um atleta da modalidade. “Eu nunca senti que vivia uma realidade terrível e nunca quis mudar o passado. Procuro fazer um futuro melhor para mim e para os outros”, resume Sean, que já havia explorado aquelas fendas diversas vezes antes, porém sempre içado em uma cadeirinha adaptada, com outros escaladores fazendo a segurança e abrindo a via. Nesta última temporada, entretanto, ele mudou os rumos do esporte adaptado ao assumir, sozinho, a liderança da sua ascensão – o que significa não apenas posicionar as proteções móveis (peças de segurança presas nas fendas da rocha, por onde se passa a corda de segurança) para todos os demais, como também correr um risco muito maior de despencar da parede, já que não há onde se prender em caso de desequilíbrio. Tudo isso, é bom frisar, sem poder contar com o suporte das próprias pernas.


QUASE LÁ: Sean durante escalada no El Capitan, no Yosemite
(Foto: Ammon Mcneely)

O projeto de liderar a escalada no emblemático paredão nasceu durante uma conversa entre Sean, o escalador Timmy O’Neill – seu irmão – e Dave Campbell, amigo dos dois. Os irmãos contaram a Dave sobre uma fracassada investida de Sean no Half Dome, outra parede de granito do Yosemite que é venerada por quem ama escalada. Naqueles últimos dias, Sean havia investido em alguns treinos prendendo-se sozinho nas fendas e sem a utilização de um jumar, o dispositivo usado para fazer a ascensão em corda, fundamental para alguém que não tem o movimento das pernas. A progressão, no entanto, ainda era muito lenta. Dave ficou impressionado com a determinação do amigo e saiu dali decidido a arranjar equipamentos mais apropriados para que, enfim, Sean pudesse guiar sua própria escalada. Conseguiu o apoio da marca Petzl, uma das mais conhecidas da modalidade, para elaborar ferramentas capazes de proporcionar uma ascensão mais rápida e mecanicamente eficiente, que colocasse o escalador “na ponta afiada da corda” (on the sharp end of the rope, em inglês), termo usado pelos praticantes para definir a posição mais arriscada e técnica que se pode assumir em uma escalada em rocha.


DESCANSO: O escalador dando uma relaxada ao lado da cadeira de rodas após escalar
(Foto: Dave Campbell)


ANTES DO ACIDENTE, Sean nunca havia sequer calçado sapatilhas de escalada. Cinco anos depois, subiu a Devil’s Tower, no Estado de Wyoming, inaugurando assim uma nova relação com esse esporte. “Escalar exige paixão e foco, pode trazer à tona emoções muito fortes. Eu tento aprender a me manter quieto internamente. O ego pode ficar inflado ou diminuído quando você escala, e isso é algo que se deve aprender a controlar”, ensina. Esperar pacientemente, desejar escalar como outros atletas, relaxar e ficar despreocupado, estar nas costas de alguém, no meio de uma trilha, contando com a firmeza dos pés alheios – Sean é capaz de enumerar diversas sensações produzidas a partir de sua interação com o universo da escalada, inclusive o medo de altura contra o qual ele teve que lutar durante uma de suas investidas na rocha, a 60 metros do chão.

Depois de um ano de testes e treinos apurando as técnicas e os equipamentos adaptados desenvolvidos por ele e Dave, Sean rumou ao El Capitan para realizar o projeto. Foram mais de 12 horas de escalada, acompanhadas de perto por Dave e outros dois escaladores, atentos e ansiosos pela conquista, comemorada depois com pizza e um sono profundo no saco de dormir estendido ao lado da cadeira de rodas, no chão de terra do Yosemite. “Durante a ascensão, dois escaladores californianos passaram embaixo de Sean. Começaram a conversar com a gente e levaram algum tempo até perceber que ele não usava as pernas”, relembra Dave.

Os braços excepcionalmente fortes do escalador e a destreza com que ele se envereda pelos bosques e montanhas da região rural onde vive, no Estado do Maine, contribuem para o sucesso das empreitadas que impõe a si mesmo. Sean também é adepto do esqui cross-coutry e downhill e tem desenvolvido protótipos de ferramentas para fazer escalada adaptada em gelo. Para Dave, que é representante de vendas da marca Patagonia, desenvolver equipamentos é tão importante quanto dar exemplos de superação. “Sean é uma inspiração para outros paratletas, alguém com quem podem aprender sobre novas técnicas e avanços, e isso interfere positivamente no mercado e nas pessoas”, avalia.

O envolvimento com a escalada adaptada fez com que ele o irmão, Timmy, criassem a Paradox Sports (paradoxsports.org), uma organização não-governamental que oferece programas especiais e orientação para a prática de esportes de aventura a pessoas com algum tipo de limitação física. “É importante que essas atividades sejam menos elitizadas, que possam chegar a mais gente”, diz Sean. “Ser um praticante de esportes extremos pode tornar as pessoas um pouco arrogantes, até mesmo na comunidade adaptada. Em qualquer grupo, acho fundamental que os atletas continuem desafiando a si próprios sem deixar de olhar para os outros, suas necessidades e metas.” Além de ocupar seu tempo com os treinos e as ações da Paradox, Sean faz estrelas. “O Natal está chegando!”, diz, animado, no fim da entrevista, indicando a página no Facebook onde é possível apreciar suas peças de metal, desenhadas e produzidas manualmente por ele. Depois de se tornar o primeiro paraplégico a guiar uma escalada no El Capitan usando apenas os próprios braços e a força da sua determinação, o objetivo desse atleta agora é vender estrelas suficientes para abrir uma lojinha do lado de fora da sua casa. E, já que determinação não lhe falta, isso será apenas uma questão de tempo.


(Reportagem publicada originalmente na revista Go Outside de setembro de 2013)