No pelotão dos samurais

Após amargar brigas e crises no ciclismo mundial de elite, o australiano Shane Perkins refez sua carreira pedalando ao lado dos ciclistas keirin do Japão – um seletíssimo grupo de guerreiros das pistas que dão vida a uma das indústrias de apostas mais concorridas (e coloridas) daquele país

Por Bruno Lazaretti


PSICODÉLICO: Uniformes multicoloridos e alta velocidade são marcas dos keirins
(Foto: Takenori Wako)

ENQUANTO O RUÍDO de um sino enche de tensão o velódromo de Aomori, no norte do Japão, anunciando o momento do sprint final, o ciclista australiano Shane Perkins lidera o pelotão à frente de outros cinco atletas, a maior parte composta de veteranos japoneses. Ao seu lado, outro estrangeiro garante a segunda posição. Mas a situação não dura muito tempo. Disparando furiosamente da traseira do grupo, um ciclista nipônico ganha espaço entre os dois gringos, jogando sua bicicleta contra o do australiano, que não cede mesmo diante do perigo. Em uma fração de segundo, o foguete japonês quica em Shane, se desequilibra e acerta em cheio seu colega. Enquanto Shane cruza a linha de chegada, os outros dois voam das bicicletas e rolam pela pista.
O australiano celebra a vitória, mas uma parte dele sabe que algo estava errado. Em alguns minutos ele descobriria que o juiz o havia desclassificado, por ter se envolvido na tal confusão com os outros dois rivais. O amargor de ver o prêmio de 900 mil ienes (cerca de R$ 20 mil) escapando por entre os dedos foi reforçado pela terrível sensação de déjà vu. Nas semifinais dos Jogos da Commonwealth de 2010, Shane foi eliminado em um episódio idêntico: cruzou a linha de chegada enquanto os ciclistas Ernard Pierre Esterhuizen, da África do Sul, e Ross Edgar Pritchard, da Escócia, se enganchavam em uma queda após um confronto entre os três. Na ocasião, o australiano expressou sua frustração mandando gestos obscenos aos juízes. Mas, no Japão, ele apenas abaixa a cabeça. Os últimos anos como convidado nas competições do tradicionalíssimo circuito de ciclismo keirin tinham ensinado muita coisa ao “australiano bad-boy”, como a imprensa mundial havia se acostumado a chamar Shane – que protagoniza a webserie Ryokou, sobre sua experiência com os keirins (leia entrevista com o diretor da produção nesta reportagem).

O termo keirin não designa apenas uma modalidade no ciclismo do Japão. Ser um atleta de keirin é ser uma espécie de samurai sobre bicicletas. Requer concentração e força de samurai, além de uma entrega total à la monge zen-budista. As corridas keirin nasceram em 1948 como um jogo de apostas no Japão do pós-guerra. A ideia, claro, era movimentar dinheiro em um país em ruínas, literal e figuradamente. Isso explica muito do funcionamento do esporte até hoje: não se trata tanto de uma competição em nome do espírito atlético como o conhecemos no Ocidente, mas de um negócio, uma corrida semelhante às de cavalos em que os competidores se preocupam em fazer carreira, e não fama, e os organizadores batalham para girar capital, e não lançar estrelas.
As corridas são disputadas por seis ou nove ciclistas (dependendo da categoria) em velódromos a céu aberto de 250 metros, 333 metros ou 450 metros. Os ciclistas formam uma fila atrás de uma moto ou bicicleta de segurança que, gradativamente, aumenta a velocidade no decorrer da corrida, de tem um percurso total de cerca de 2 quilômetros. É pura explosão, do começo ao fim, e chega-se facilmente aos 70 km/h. O ritmo também é marcado sonoramente por um gongo ou sino cujas badaladas aceleram com a aproximação do fim da corrida. Faltando cerca de 700 metros para a linha de chegada, o sino soa seu último toque e o veículo de segurança sai da pista para os ciclistas sprintarem. Protegidos por uniformes forrados com espuma que parecem armaduras e capacetes “cogumelo” de cores gritantes que lembram roupas de jóquei, eles dão tudo para cruzar a linha de chegada em primeiro lugar.


Trata-se de uma competição agressiva: os ciclistas chocam ombros e cabeças para ganhar posições. É comum que ao menos um par de competidores se enganche e caia nos últimos metros das finais mais importantes. Mas há regras tácitas e códigos de honra que regem o esporte e são observados por um juiz. Em suma, como coloca Shane Perkins: “Se o juiz toma a decisão, você tem que acatar e seguir em frente”.

ATÉ A DÉCADA DE 1980, a corrida keirin era um negócio (mais que um jogo) de japoneses e para japoneses. Foi só depois que Koichi Nakano, o maior nome do ciclismo japonês, começou a ganhar campeonatos mundiais que o mundo começou a se interessar pela até então estranha corrida japonesa cuja indumentária fazia os competidores lembrarem formigas-atômicas em duas rodas. O sucesso foi tanto que, em 2000, a modalidade passou a fazer parte dos Jogos Olímpicos. Diante dessa popularização, a partir de 1981 a Associação Nacional do Keirin, que controla o esporte no Japão, decidiu convidar todo ano um seleto grupo de ciclistas internacionais para pedalar no país. Mas não de mão beijada: antes de cair nas pistas, os eleitos precisam treinar por duas semanas na Escola Keirin, na cidade de Izu, internato obrigatório para todos que querem se tornar keirins.

Mas foi uma longa jornada até Shane Perkins ser agraciado com essa honra. Em 1999, aos 15 anos e apenas três meses de ciclismo, ele quebrou dois recordes australianos na competição nacional sub-15 e levou para casa duas medalhas de ouro. Antes mesmo de completar 20, já tinha tudo o que é de se esperar de um ciclista profissional veterano, incluindo episódios nebulosos com doping e uma série de reportagens em tabloides locais explorando sua vida pessoal e vendendo a imagem dele como “cabeça quente”.

Em 2008, a má reputação e a rivalidade com o conterrâneo Ryan Bayley lhe custaram uma vaga na seleção australiana para as Olimpíadas em Pequim. Já quase com um pé fora do ciclismo de elite, Shane venceu a Copa Mundial do esporte em novembro daquele ano. Dois meses depois, foi convidado pela Associação Nacional de Keirin para treinar e competir no Japão.

Shane mudou-se para o Japão com toda a família e se internou na Escola Keirin no início de 2009. O treinamento de 15 horas diárias ao lado de japoneses que nunca competiram profissionalmente e que, sobretudo, encaram o ciclismo como um ganha-pão, mudou suas perspectivas sobre a carreira. “Foi uma experiência bem diferente logo de cara, mas aos poucos foi se tornando cada vez mais divertida”, conta. “Nas entrevistas por aqui, os jornalistas sempre te perguntam sobre seu corpo, sua saúde, seu tipo sanguíneo, para assim entender melhor como está sua condição física.” Em outras palavras, é quase como se os ciclistas keirin fossem vistos pela mídia e público mais como “cavalos de corrida” do que como estrelas da bike.

Entrar no circuito keirin já é, por si só, uma grande aposta. Os ciclistas (inclusive os convidados internacionais) têm de bancar todas as suas despesas, consertar as próprias bicicletas e treinar por conta própria. Tudo isso pela chance de ganhar os prêmios, que variam de 900 mil ienes (cerca de R$ 20 mil) para o primeiro colocado das corridas de categoria F1 (à qual Shane e os demais estrangeiros pertencem) a 100 milhões de ienes (cerca de R$ 2,2 milhões) para o vencedor do grande prêmio da categoria G1, a mais alta do circuito, que ocorre apenas uma vez por ano.

Antes de ser apenas uma aposta, porém, o ciclismo keirin é uma modalidade de consistência e paciência: as corridas ocorrem semanalmente e não são eventos isolados, mas rituais que duram três dias de confinamento em um velódromo. Durante esse tempo, os ciclistas dividem um mesmo galpão onde comem, dormem e treinam. As corridas rolam uma vez por dia, e até lá os atletas compartilham o mesmo espaço – dormem literalmente a metros um do outro, em tatames espalhados pelo chão. O cotidiano relaxado da concentração contrasta com a violência nas pistas. “Você dá todo o seu sangue na prova. Mas, quando a corrida acaba, a briga também chega ao fim. Espírito esportivo e respeito são muito importantes no keirin. Não importa o que aconteça nas pistas, não importa quem fez o quê a quem, no fim todos pedem desculpas e conversam como amigos no jantar”, explica Shane. Afinal, os ciclistas estão ali para ganhar o pão de cada dia, não brilhar como um cometa e se desintegrar após 15 minutos de fama.


OS DIAS DE INVERNO EM IZU, onde fica a Escola Keirin, são de céu claro e ventos congelantes. Ao lado de seus rivais de toda temporada, Shane suporta as baixíssimas temperaturas treinando na pista da instituição, que fica no topo de uma colina. O sol está se pondo e, à medida que a temperatura cai, o céu se transforma de um azul absoluto para tons ambíguos de dourado e vermelho. Shane é o único estrangeiro na pista naquele dia. Mas já não destoa tanto dos outros. Há quatro anos dividindo provas e tatames com um grupo reduzido de keirins (hoje há apenas quatro mil profissionais no Japão), Shane parece ter passado a vida inteira ali.

Após algumas baterias de tiros e voltas solitárias, o australiano é engolido por um pelotão nos últimos minutos de desaquecimento, quando mais se conversa do que se pedala. Rindo e falando uma mistura de inglês e japonês, os colegas tiram sarro da situação: Shane Perkins, o campeão mundial, cercado de japoneses em uma tarde fria, numa pista remota nos confins do Japão. “E agora, senhor grande estrela da TV?”, riem os japoneses. Shane apenas gargalha com eles. E segue pedalando entre os samurais das bikes.


> ENTREVISTA: Testemunhas de uma jornada

Os cineastas independentes Matty Roberts e El Davros, da produtora australiana Projucer, realizaram um documentário sobre a trajetória de Shane Perkins nas pistas keirin. Financiado por crowdfunding (doações online) e disponível no Youtube, o filme Ryokou explora a reinvenção da carreira do ciclista australiano a partir de sua imersão na cultura japonesa. Conversamos com El Davros, diretor do documentário, para sacar a jornada pessoal por trás das câmeras.


GO OUTSIDE Foi fácil ganhar acesso às corridas e bastidores?

EL DAVROS A Associação Nacional de Keirin foi extremamente acolhedora e solícita. Mas os velódromos têm autonomia em relação ao órgão. Filmamos em duas pistas diferentes, e a experiência foi bem distinta. Na primeira, uma pista moderna e grande, tivemos mais dificuldade: nossos movimentos foram limitados à pista somente, nada de bastidores. Já na segunda, onde filmamos no inverno, o clima foi bem mais relaxado e pudemos fazer cenas preciosas nos dormitórios. Nossa conexão com Shane, que virou um tipo de celebridade por lá, certamente ajudou.


O que mais agradou vocês esteticamente nas corridas keirin?

Elas são como uma fração da estética geral da cultura japonesa. O Japão é um mundo de contradições. Em algumas partes é minimalista, simples e ponderado. Por outro lado, a cultura pop japonesa é berrante, resplandescente e excessiva. O keirin incorpora a mistura desses dois mundos. Os velódromos são simples, limpos e minimalistas em termos de cores: tons de azul e cinza, linhas vermelhas ou brancas. Em contraste, você tem nove corredores com pernas hipertrofiadas vestindo capacetes de bacia e roupas de Tartarugas Ninja em cores primárias. Parece que estão fantasiados!


A sua visão sobre as corridas keirin evoluiu durante as filmagens?

Eu achava que veria expectativa, pressão e hype cercando todas as corridas keirin, do jeito como encaramos os eventos internacionais de ciclismo, em que as rivalidades e a pressão sobre os atletas são exploradas pela imprensa. Foi só chegar ao primeiro dia do primeiro evento que acompanhamos para essa concepção virar de cabeça para baixo. A maneira com que essas competições são construídas e a relação entre os competidores me surpreenderam muito. Com o passar do tempo lá, eu fui me dando conta de que o keirin é visto menos como uma competição de elite e mais como uma forma paga de entretenimento. Claro, o nível dos atletas é soberbo. Mas toda aquela parte da alta pressão, rivalidade e expectativa parece não se aplicar ao keirin. Os ciclistas competem todas as semanas, e veem sua performance em termos de balanço financeiro cumulativo, e não número de vitórias. Chegar em primeiro não significa ser o melhor.


Foi difícil editar o documentário?

Nós encaramos a edição do Ryokou de maneira incrivelmente linear. Literalmente imprimimos transcrições das entrevistas, depois marcamos os trechos mais importantes que queríamos para cada parte. Aí eu e minha namorada recortamos esses trechos com tesouras e espalhamos pela mesa da cozinha. Depois “montamos” o documentário enfileirando esses papeizinhos trecho a trecho. Foi uma verdadeira “edição de papel”.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de agosto de 2013)