Memórias de um grande corredor

Conversamos com o lendário Pablo Vigil, atleta norte-americano de 61 anos que fez histórias no trail running e é ídolo dos maiores corredores de montanha da atualidade (incluindo Kilian Jornet!)

Por Rodolfo Lucena


CARA LEGAL: Pablo no seu estilão corredor-hippie


SETE UNHAS PERDIDAS, dedos machucados além da dor e uma alegria sem fim: esse foi o saldo da primeira corrida de montanha do norte-americano Pablo Vigil, hoje com 61 anos. Considerado uma lenda viva do trail running, esse norte-americano é admirado pelos melhores entre os melhores da atualidade, como o catalão Kilian Jornet. Pablo tinha apenas 19 anos quando descobriu a paixão pelo esporte que o transportaria para diversos cantos do planeta. Correu em dezenas de países, venceu longas provas e, ainda hoje, é o único homem a ter sido campeão, quatro vezes seguidas, da duríssima e prestigiosa competição Sierre Zinal, na Suíça.

Nascido em 25 de janeiro de 1952 na cidadezinha de Springer, no Novo México (EUA), ele teve uma infância difícil e acabou encontrando na corrida em trilhas uma espécie de alento. Também pela corrida acabou conhecendo gente como os mitos norte-americanos Steve Prefontaine e o maratonista Frank Shorter, cuja vitória na Olimpíada de Munique, em 1972, ajudou a criar o boom de corridas de rua nos EUA. A seguir, Pablo fala de suas conquistas e do seu aprendizado nas montanhas.


GO OUTSIDE Quando você começou a correr?

PABLO VIGIL Comecei quando era ainda um bem garoto, brincado com meus irmãos e vizinhos. Meus pais não tinham um carro, então nós caminhávamos muito. Passei a participar de algumas competições na escola primária, nas aulas de educação física. Sempre fui uma criança muito ativa.


Como surgiu sua paixão pelas montanhas?

Isso também vem desde criança. Eu sempre adorei estar nas montanhas e subir morros. A maior parte de minha vida, vivi em locais de altitudes de 1.600 a 2.300 metros, caminhando e correndo muito. Talvez eu tivesse alguma vantagem, do ponto de vista genético, mas, acima de tudo, eu tinha paixão, amor pelas montanhas. No ginásio e no colégio, fiz outros esportes, como luta e basquete, que colaboraram para me fortalecer e dar resistência para as futuras corridas de montanha. Fiz minha primeira corrida de verdade em 1971, quando tinha 19 anos. Foi a famosa Pikes Peak Marathon, em Colorado Springs, na qual terminei em quarto lugar na geral, sendo o mais rápido e o mais jovem na minha categoria. Depois dessa corrida, perdi sete das dez unhas dos pés! A Pikes Peak é uma prova difícil, começa em uma altitude superior a 2.000 metros e sobe a cerca de 4.500 metros, para depois voltar.


THAT 70S: Abaixo, Pablo (de boina) corre com feras, como o campeão olímpico Frank
Shorter; nesta foto, ele com Kilian no Colorado, nos EUA


Como você avançou a partir dali?

Naquela época, eu corria pelas equipes de cross-country e atletismo indoor e outdoor da minha faculdade. Fazia antropologia na Adams State University, que fica no Colorado. Quando terminei o curso, em 1971, eu continuava louco para me tornar um corredor de nível internacional. Então me mudei para Boulder, também no Colorado.


Você recebeu um incentivo especial para essa mudança…

Me mudei para lá depois de ter participado de uma corrida local de 5 quilômetros. Frank Shorter, que naquela altura já era muito famoso, campeão olímpico da maratona de Munique, estava na corrida, e nós conversamos bastante. Ele me convidou para mudar para Boulder e treinar com ele. Eu não imaginava sequer que ele pudesse falar comigo, quanto mais me convidar a treinar com ele, então aproveitei essa chance. Naquela época, muita coisa estava acontecendo em Boulder. Steve Prefontaine costumava visitar a gente, e me encontrei algumas vezes com o poeta da geração beatnik, o Allen Ginsburg, que tinha viajado com outro poeta famoso, Jack Kerouac. Boulder estava cheia de gente interessante, e você nunca sabia quem poderia encontrar na esquina. Até Lasse Viren, o finlandês que ganhara o ouro nos 10.000 metros e nos 5.000 metros em Munique, esteve com a gente por uma semana. Em 1975, Boulder era um enorme e borbulhante caldeirão de talentos.


Você mesmo vivia com algum desses talentos, não é verdade?

Eu morava em um trailer duplo com outros 13 corredores. Foi um tempo de muitas loucuras. Nós éramos solteiros, livres e doidões. Vivíamos como se fossemos monges, perseguindo nosso sonho de nos tornarmos corredores de verdade. Dois de meus colegas de trailer participaram da equipe norte-americana que foi para a Olimpíada de Montreal, em 1976: Gary Bjorklund, nos 10.000 metros, e Mike Slack, nos 1.500 metros. Nós sobrevivíamos comendo aveia, manteiga de amendoim e macarrão, e dando muito incentivo e apoio um ao outro. Tínhamos muita sinergia e acreditávamos que ninguém podia com a gente. Eu conseguia me sustentar fazendo bicos, como aprendiz de padeiro e zelador. Trabalhar nesses empregos simples e flexíveis foi o segredo para eu conseguir treinar e viajar para participar de corridas.


Você fez parte da seleção dos EUA que foi ao Mundial de Cross-country em Glasgow, na Escócia, em 1978. Isso lhe abriu a vontade de viajar para a Europa?

Em 1979, fui à Suíça pela primeira vez, junto com outro norte-americano, Chuck Smead, para participar da famosa corrida de montanha Sierre Zinal, de 32 quilômetros. Chuck tinha vencido aquela prova alguns anos antes e me convenceu a ir. Paguei a viagem do meu próprio bolso, achando que eu tinha alguma chance de vencer. Não só ganhei como estabeleci um novo recorde, melhorando a marca anterior em quase cinco minutos. Voltei a vencer em 1980, 1981 e 1982, num total de quatro vitórias consecutivas. Por cerca de 30 anos, fui o único corredor da história a ter vencido Sierre Zinal quatro vezes seguidas. Hoje sou o único homem com essa marca, pois Anna Pchrtova, da República Tcheca, emparelhou comigo.


Qual foi o impacto dessas vitórias na sua carreira?

Vencer em Sierre Zinal abriu muitas portas internacionais para mim. Considero a Suíça meu segundo lar. Adoro a cultura, o idioma, as pessoas e, acima de tudo, os amigos que tenho lá. Várias vezes saí da Suíça aclamado como herói e fui recebido nos EUA como um cão sem dono. Na Europa, correr em montanhas é muito mais intenso, tanto nas subidas e descidas, quanto no aspecto técnico e no apoio popular.


Qual foi sua corrida mais emocionante?

Eu adorei a Super Marathon de Hoggar, uma prova de 100 milhas [160 quilômetros] em etapas no sul da Argélia, no norte da África. Essa corrida foi uma das mais lindas e mais difíceis de minha vida, me pressionou além dos meus limites, tanto do ponto de vista físico quanto do psicológico. Durou cinco dias, com temperaturas que passavam dos 40 ºC, em pleno deserto do Saara. Foi uma experiência fascinante.


O que é mais dolorido: correr nas montanhas ou no asfalto?

Se você corre forte, sentirá dor em qualquer tipo de corrida. Dor é dor, mas acho que as corridas em montanhas são menos doloridas, por causa da beleza natural, das rochas, da vegetação, dos animais. Além disso, uma maratona no asfalto destrói mais os músculos.

O que é preciso para ser um bom corredor de montanhas?

Muito amor e paixão. É preciso ter objetivos e estar disposto a se sacrificar por eles. É preciso viver se equilibrando no fio da navalha. Há também um grau de egocentrismo maior do que o comum, que pode chegar a ofender muita gente, mesmo familiares e amigos. Ao mesmo tempo, acredito que o amor e a paixão são inúteis se não forem compartilhados, se não servirem de inspiração para outros.

Como você encontra forças para prosseguir quando as pernas quase já não respondem mais?

Eu acredito que corpo e mente estão em uma batalha perpétua, desde quando somos bebês até a morte. É preciso aprender a equilibrar os dois da melhor forma possível, o que só acontece depois de muitos anos de experiência. É importante saber lidar com essa relação entre corpo e mente. Não sou um especialista nisso, mas cada um precisa estar consciente do que é capaz e tentar fazer o melhor. Isso é mais importante do que focar na vitória.

O que a corrida significa para você?

Para mim, correr significa paixão, objetivos, sacrifício, prazer. Correr me ajudou a viajar o mundo, me abriu portas e me proporcionou experiências nunca sentidas pela maioria das pessoas. E ainda não acabou. Eu continuo a viajar para participar de oficinas sobre corridas e fazer palestras. Correr me ajudou a me formar em antropologia e a conseguir um mestrado em educação. A corrida me deu propósitos e objetivos na vida, que é o que a maioria das pessoas deseja. Correr permitiu que eu me conectasse mais e melhor ao mundo, conhecendo povos e culturas diferentes.


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2013)







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