Céu e mar

Em sua sétima e mais recente expedição, o brasileiro BETO PANDIANI esteve a bordo do “Picolé”, uma embarcação pequena e sem cabine, para cruzar, sem paradas, o oceano Atlântico. Ele relata os momentos de aflição que passou ao lado de Igor Bely durante o desafio e fala sobre os planos e a ansiedade de estar no mar novamente


Depoimento dado a Mariana Mesquita


NA CALMARIA: Beto e Igor enfrentaram durante a viagem 12 dias sem vento


“NÃO É DE HOJE MINHA LIGAÇÃO COM O MAR. Quando era adolescente, eu ouvia boas histórias do meu pai, Corrado, um velejador italiano, sobre seus passeios de barco. Daí nasceu o sonho de dar a volta ao mundo em um veleiro. Em 2008, arrisquei a primeira travessia oceânica ao lado do Igor Bely, um francês de 25 anos que vive hoje na França. A viagem cruzou o Pacífico do Chile à Austrália em 71 noites. No momento em que colocamos o pé em terra firme, realizamos que se atravessássemos o Índico e o Atlântico completaríamos a volta na Terra. Por que não? Foi assim que surgiu a ideia da Travessia no Atlântico, a minha sétima e mais recente aventura.

O caminho até a expedição de fato levou um ano e meio. Tive que organizar a parte técnica – navegação, tecnologia e condições da viagem – e buscar apoio e divulgação nas diferentes mídias. Tudo foi feito com muita cautela. Optamos por começar a empreitada na Cidade do Cabo, na África do Sul, bem na pontinha do cabo da Boa Esperança, e ter como ponto de chegada a Ilhabela, um local do litoral paulista que é muito importante em minha carreira e história de velejador.

Mesmo depois de todos estes anos de expedição, acho que nunca vai existir uma viagem que não cause frio na barriga. Pelo contrário, o que me motiva a velejar é pensar que sempre tem algum elemento que faz a viagem parecer a minha primeira vez em alto mar. Desta vez, o diferencial foi que não existe nenhuma ilhazinha nos 8 mil quilômetros de navegação, e por isso a viagem teve que ser non-stop. Ou seja, 37 dias direto a bordo de um catamarã de 25 pés sem cabine e (muito) pequeno. Ao mesmo tempo em que era nossa diversão, a embarcação era também nossa maior dificuldade. Imagine ficar dias e dias em um barco sem proteção, com apenas dois cascos e uma lona, enfrentando péssimo tempo e reviravoltas meteorológicas. Apelidamos nosso barco de “Picolé”, o nome do meu cachorro.


ROTINA D BARCO: De cima para baixo, alimentação da dupla à base de comida liofilizada;
Igor aproveita os dias sem vento para ler um livro; banho de balde durante os dias quentes


Içamos a vela mestre pela primeira vez no dia 21 de abril deste ano. Sentimos a dificuldade da falta de cabine logo no começo da viagem. Durante a quarta noite, enquanto navegávamos pela costa dos Esqueletos, na Namíbia, passavam por nós alguns barcos pesqueiros e navios pesados de ferro que me tiravam o sono. Era difícil enxergar e se caíssemos na água seria fatal. Amarramos-nos ao barco e tentamos descansar um pouco. Perto das 10 da noite, acordei. Não tinha mais vento. Lembro de olhar para a água e me perguntar quantos seres estariam passando debaixo de nós. Perto das 5 horas da manhã, o vento voltou a soprar e o mar foi ficando descontrolado. Perto da hora do almoço enfrentamos ondas de até 6 metros de altura. Foi uma mistura de montanha russa com trem fantasma. Por essas e outras situações, uma pessoa que decide abraçar um projeto como este precisa ter muita certeza do que esta fazendo. Não existe a chance de voltar atrás. O mar é inteiramente instável e o desafio é imponderável, pois você chega a lugares onde não tem controle algum sobre nada.

A dieta à base de biscoitos, barras de cereal, castanhas e pratos quentes liofilizados foi selecionada a dedo. Para evitar ainda mais peso, esterilizávamos a água para beber. No fim, o Picolé carregou cerca de 400 quilos com tudo que precisávamos para a travessia. É nesse momento que você percebe como vivemos com coisas supérfluas que, por questões técnicas, não podem ir no barco e deixam de ter importância.

Aos poucos se criou uma rotina em alto mar. Depois da primeira refeição, atualizávamos a página “Travessia Atlântico” (travessiadoatlantico.tumblr.com) com novidades e fotos, e eu fazia as transmissões programadas para a rádio Eldorado. Nas horas livres, costumávamos ler alguns livros e em momentos de calmaria até arriscávamos ouvir uma música no Ipod. Foram dias de noites intermináveis e pouco sono.

Fui tomado por enorme felicidade e alívio ao avistar Ilhabela, nosso destino final. É incrível a sensação de ter concluído outra expedição para colocar no currículo. Quero produzir um livro até o fim de 2013, um diário de bordo fotográfico com tudo que guardamos desses momentos. Depois, velejar em 2015 pelos pólos e mais para frente me lançar na travessia do último e mais difícil oceano, o Índico.

A verdade é que quando você faz uma viagem deste porte, muita coisa muda dentro de você. É difícil voltar à rotina comum. Passar tantos dias em alto mar é perceber que a cidade é muito mais desequilibrada do que achamos. Lembro de navegar ao lado de golfinhos e baleias, de conviver com a natureza na sua forma mais pura. Logo que eu voltei para a terra, um amigo brincou comigo: “de volta a realidade?”. Sem pestanejar, respondi: “Não, de volta para a ilusão. A realidade ficou lá no barco.”

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de junho de 2013)