O empresário paulistano Marcos Martins, de 44, deixou o escritório para trás e, durante 29 dias espalhados ao longo de três anos (de fevereiro de 2011 a janeiro de 2013), remou e dirigiu quase 800 quilômetros por lugares inexplorados e rotas bastante perigosas em meio a um labirinto de ilhas na Patagônia chilena. Em depoimento a DENISE MOTA, ele conta as dores, delícias e desafios enfrentados na sua Expedição Gelo Norte
“EM 1995 FIZ UMA VIAGEM de bike e a pé pela Patagônia, e foi então que pensei em começar a explorar melhor essa região, só que de caiaque. Nem imaginava que o golfo de Penas, no sul do Chile, era um dos trechos mais técnicos para se remar por ali. Apenas olhei o mapa e pensei: ‘Bom, já que decidi passar por esse labirinto de ilhas, então deve ser legal pegar um trecho de mar aberto para variar um pouco e ter mais emoção’. Normalmente viajar na Patagônia de caiaque é uma mistura de jogo de xadrez com roleta russa, pois você sempre organiza tudo pensando em como minimizar os riscos, só que frequentemente acaba tendo de rever os planos em função das condições climáticas que mudam muito rapidamente. Isso acaba te expondo aos riscos que tanto tentou evitar. Ao longo dos anos, enquanto aprendia a remar, essa meta da Patagônia ficou um pouco distante enquanto eu ganhava a experiência necessária para encarar a remada. Até que, em fevereiro de 2011, finalmente parti para a primeira perna de minha aventura, que batizei de Expedição Gelo Norte e que levaria três anos para concluir.
Etapa 1 (janeiro de 2011) > 130 quilômetros pelo rio Baker, em 4 dias
O fato de eu estar sozinho na minha primeira viagem de caiaque na Patagônia, onde a água é muito fria e, portanto, perigosa por causa de uma potencial hipotermia, foi um desafio que durou até a última remada. Eu estava no rio mais caudaloso do Chile, remando um barco carregado e, por isso, pouco manobrável, sem experiência significativa de remada em rio. Evitei grandes corredeiras, mas mesmo assim o isolamento da região me colocava em estado de alerta constante, o que tornava as sensações mais intensas. Aprender a lidar com esse nível de estresse e encontrar paz para poder curtir a viagem foi um aprendizado muito legal durante o percurso. O ponto alto desse exercício foi quando cheguei à corredeira Rápido González, onde tive que decidir se a desceria ou faria uma portagem [carregar o caiaque a pé por um trecho na margem até chegar a águas mais calmas]. A corredeira era classe 3, não tão técnica, e o rio me convidava a descer, mas, com o barco carregado, optei por não arriscar e fiz uma portagem pesada. Essa remada pode ser feita por pessoas com pouca experiência, desde que acompanhadas de guias que conheçam bem a região e o rio.
Etapa 2 (agosto de 2011) > 150 quilômetros nos lagos Bertrand e General Carrera, em 5 dias
Era inverno e, apesar da expectativa de frio intenso, o tempo foi maravilhoso durante todo o trajeto. Antes da viagem nevou, e as montanhas ficaram todas brancas. Mas durante os dias que passei lá houve sol sem nuvens e vento todos os dias. Passei muito mais calor do que frio. O que me marcou mais foi conviver de perto com os remadores locais e a população das pequenas cidades que visitei. São pessoas profundamente apaixonadas pela Patagônia, e a maioria estava indignada com a represa que planejam construir na bacia do rio Baker, o que causará um fortíssimo impacto cultural e ambiental na região.
Etapa 3 (janeiro de 2012) > 150 quilômetros entre a baía Exploradores e a lagoa San Rafael, em 7 dias
Logo no primeiro dia dessa etapa, em que eu também estava sozinho, passei por um apuro grande só para ‘ficar esperto’ e entrar na frequência correta da viagem. No início da remada, se desce aproximadamente 10 quilômetros pelo rio Exploradores, que deságua na baía Exploradores. O vento contra estava tão forte que eu avançava superdevagar. Era a primeira vez que eu iria para o mar na Patagônia. Em vez de parar para acampar e entrar no mar na manhã seguinte, continuei viagem. Foi uma grande besteira, porque a transição entre o rio e o mar nesse local é um grande charco, onde meu barco rapidamente encalhou. Por uma hora, reboquei o caiaque pela mão nos trechos mais rasos, remando onde não encalhava. Eu me sentia um idiota completo. Era mais de oito da noite e havia apenas mais uma hora e meia de luz. Esse trecho é alagado pela maré cheia, e não havia um ponto para eu armar a barraca. Encontrei um tronco gigante numa margem um pouco mais alta e parei por lá mesmo. Imaginando que a maré cheia me alcançaria no meio da noite, montei a barraca o mais perto do mato possível e deixei as coisas preparadas para uma saída de emergência. Às quatro da manhã, acordei assustado com o barulho do barco sendo levantado pelas águas, que também acertavam minha perna por baixo do piso impermeável da barraca. Rapidamente coloquei o caiaque e o resto das coisas em cima do tronco. Felizmente a maré ficou nessa altura apenas 20 minutos, recuando depois. Havia planejado atravessar o golfo de Penas e chegar até à cidadezinha costeira de Caleta Tortel em 360 quilômetros de remada, mas tive um problema com o barco. Naveguei apenas na parte abrigada da minha rota, seguindo um fiorde que termina na belíssima lagoa San Rafael, onde tomei a dura decisão de voltar, após tentar consertar o barco sem sucesso.
Etapa 4 (janeiro de 2013) > 360 quilômetros entre baía Exploradores e Caleta Tortel, em 13 dias
Nessa etapa remei com meu amigo Fábio Raimo, um brasileiro com 15 anos de experiência em viagens de caiaque na Patagônia. Houve vários pontos altos, e um deles foi a perfeição com que tudo se desenrolou. Apesar de ter sido a etapa mais exposta de toda a viagem, não corremos nenhum risco maior. Outro momento a recordar foi a portagem pelo ístmo de Ofqui, que separa a lagoa San Rafael do golfo de Penas. Carregamos, arrastamos e remamos os caiaques por quase dois quilômetros de laguinhos, pântanos e trilhas até o rio Negro. Após cerca de 30 quilômetros, o rio nos permitiu entrar novamente no mar, já no golfo de Penas. Foi um dia longo e duro, mas com uma forte sensação de superação no final. O Penas é perigoso por uma conjunção de fatores: está completamente exposto à forte ondulação e aos ventos que vêm principalmente do oeste; a profundidade de suas águas é baixa, o que faz com que as ondas ultrapassem com frequência os 4 metros; a costa oferece raros locais para entrar e sair do mar; o risco de uma nuvem de chuva atingir os remadores sempre está presente; e as ondas respondem muito rapidamente aos estímulos do vento. A abordagem mais indicada para navegar com segurança nesse tipo de lugar é aguardar as janelas de bom tempo. Algo que nos ajudou foi o serviço do holandês Karel Vissel, que oferece suporte meteorológico a expedições de caiaque (kayakweather.com). Porém tivemos momentos de tensão no golfo. O primeiro veio no início da expedição, quando começamos a navegar ao lado dos penhascos que compõem a maior parte da costa e pudemos ver o quanto não existe margem para erro ali. Há vários túneis e cavernas bem assustadores, mas como o mar estava supercalmo pudemos atravessar vários deles. Tudo estava tão perfeito que comentávamos que devíamos tomar cuidado porque algo poderia surgir de repente. Já no segundo dia, remamos por 30 quilômetros sem ter como sair da água. Tivemos que nos afastar da costa para contornar as pontas Barrientos e Delírio, onde as ondas triplicavam de tamanho e quebravam com 4 metros. No terceiro dia, uma nuvem de chuva fraca nos atingiu, com ventos de aproximadamente 20 km/h. As ondas se tornaram mais altas e rápidas, mas felizmente estávamos a apenas dez minutos de uma baía, onde entramos em busca de proteção. O último momento de tensão foi no derradeiro dia. O mar estava aumentando de tamanho, com 2 metros de onda. Apontamos os caiaques rumo ao canal Baker e logo deixamos para trás a assustadora ponta Oscar. Uma vez no canal, ficamos um dia parados numa praia descansando. Havíamos remado nove dias seguidos, uma média de 40 quilômetros por dia com caiaques carregados com cerca de 40 quilos. Finalmente tivemos ventos mais fortes e patagônicos, de 40 km/h, mas soprando a nosso favor. Com essas condições ideais, saímos do mar e subimos o rio Baker contra a correnteza por apenas dois quilômetros até encontrarmos nosso carro, que amigos haviam deixado lá para nós, simplificando bastante a logística do término da expedição.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2013)
REMA, MARCOS: Tensão estampada no rosto nas primeiras horas de remada sozinho
pelo rio Baker
(Foto: Marcos Martins)
MÃO DE DEUS: Remador chileno inspeciona de perto as curiosidades, formações rochosas
conhecidas como "capelas de mármore", no lago General Carrera
(Foto: Marcos Martins)
BELEZURA: Amanhecer no segundo dia de remada no rio Baker, com a lua cheia ainda visível no céu
(Foto: franciscoibarra.co)
PARAÍSO: Marcos organiza seu equipamento
(Foto: Fábio Raimo)