Sem segredos

Conversamos com o ex-ciclista norte-americano Tyler Hamilton, um dos primeiros a denunciar o escândalo envolvendo Lance Armstrong e doping, e que agora tem lançado no Brasil seu livro contando os bastidores do Tour de France no auge das drogas

Por Mario Mele


VIDA NOVA: Tyler na região onde mora atualmente em Missoula, Montana (EUA)
(Foto: Brian Smale)


O NORTE-AMERICANO Tyler Hamilton foi ciclista profissional por 13 anos (entre 1995 e 2008) e, em 2004, ganhou uma medalha de ouro nas Olimpíadas de Atenas na prova de contrarrelógio individual. Mas dificilmente um currículo vitorioso no ciclismo o colocaria na lista dos autores mais vendidos do The New York Times. Só mesmo um livro polêmico para conseguir tal feito – no caso, A Corrida Secreta de Lance Armstrong, que chegou com estardalhaço às livrarias dos Estados Unidos em setembro do ano passado e agora é lançado no Brasil (editora Seoman, R$ 36). Na obra, Tyler, hoje com 42 anos, dá detalhes de como ciclistas de sua brilhante geração se dopavam. Revela ainda a convivência entre ele e seus colegas – especialmente Lance – nas competições e na intimidade.

Não é exagero dizer que o escândalo envolvendo Lance e toda a discussão sobre doping no esporte não teria vindo à tona sem a participação de Tyler. Várias vezes suspenso em sua carreira ao ser pego em exames antidopings, em 2009 foi banido por oito anos do ciclismo, o que acabou levando a uma aposentadoria forçada. Nos anos seguintes, o ex-ciclista foi convocado a depor em seu país e, sob pressão, revelou que não apenas tomava drogas para melhorar a performance, mas que isso era uma prática coletiva, difundida em equipes profissionais como a US Postal Service, da qual participava com Lance. Por essas e outras, Tyler é visto por muitos como o cara que deu o pontapé inicial para que a roupa suja do ciclismo começasse a ser lavada. Para outros, como o presidente da UCI Pat McQuaid, Tyler simplesmente aproveitou toda a polêmica de Lance para ganhar dinheiro com revelações bombásticas.

A seguir, o ciclista diz que sua maior preocupação hoje é “endireitar” os atletas de agora para que limpem de vez a má fama desse esporte.


NO AUGE: Tyler cruza um campo de girassóis durante o 19º estágio do Tour de France
de 1999. Lance ganhou esta etapa, enquanto ele ficou em terceiro

GO OUTSIDE Você se sente culpado por ter ajudado a criar uma geração de fãs de um ciclismo antiético?

Não posso mudar o passado. Tudo o que eu tento agora é fazer com que outras pessoas aprendam com meus erros. Tenho conversado muito com crianças e jovens, e quero que eles compreendam as consequências de nossas escolhas.


Você se considera uma vítima de seu esporte?

Não acho que nenhum de nós seja vítima, somos produtos de nosso tempo.


Você fez amigos durante a carreira como ciclista?

Gosto muito dos meus companheiros da equipe Rock Racing. São ciclistas espanhóis e colombianos, como Victor Hugo Pegna, Santiago Botero, Oscar Sevilla, Francisco Mancebo, José Enrique Gutiérrez. Também sou amigo do francês Nicolas Jalabert, outro grande ser humano.


Qual foi momento mais feliz da sua carreira? E o mais triste?

O mais feliz da minha carreira é agora. O mais difícil começou em setembro de 2004, quando meu primeiro teste antidoping deu positivo, e durou até julho de 2010, quando tive de depor diante da justiça norte-americana.


O que você sentiu ao ter de devolver a medalha de ouro olímpica, conquistada em 2004, após ter admitido que se dopou?

Foi um alívio devolver aquela medalha, um peso que tirei dos ombros. Mas fiquei desapontado por a terem dado ao segundo colocado [o ciclista russo Viatcheslav Ekimov]. Deveriam ter deixado o resultado em branco.


EX-OURO: Em 2004, em Atenas, Tyler foi coroado com o
ouro olímpico, medalha posteriormente cassada pelo COI


Você acha possível que você e Lance voltem a ser amigos? Isso aconteceria se só dependesse de você?

Não preciso falar com Lance novamente. Contar a verdade foi a coisa mais difícil que ele já fez, e fico feliz que ele, finalmente, tenha tomado essa decisão. Sei bem como ele se sente agora, porque estive no mesmo lugar uns anos atrás. Não é um processo fácil, mas lhe desejo o melhor.


Quais suas primeiras lembranças em cima de uma bicicleta?

Descendo uma ladeira próxima a minha casa, descalço, na garupa da bicicleta minha irmã. Meu pé enroscou na roda traseira e ficou destruído. Fiquei enfaixado por um bom tempo.


Em sua opinião, quem é o maior ciclista de todos os tempos?

Não sei, isso não é importante para mim.


ETERNOS RIVAIS: Tyler (esq.) e Lance durante o Tour de France 2004, competindo por
equipes diferentes

Que conselho daria a seu filho se ele decidisse ser ciclista profissional?

Ouça seu coração.


A edição deste mês da Go Outside é sobre cães e, no livro, você diz que tem um cachorro chamado Tanker. De que raça é?

Tanker é um golden retriever. Ele adora perseguir esquilos. É inacreditável quando ele percebe a presença de um: suas orelhas ficam em pé, e ele para o que estiver fazendo para ir atrás do bicho.


Em muitos capítulos do livro, parece que você nunca soube o que era “ciclismo limpo”. Acha que seria justo legalizar o doping no ciclismo de uma vez por todas?

É fácil pensar que a disputa era justa, ou que brigávamos em campos de igualdade porque estávamos todos dopados, mas isso não é verdade. Primeiro de tudo: drogas têm efeitos diferentes em cada pessoa. Também envolvem dinheiro e riscos. Então é impossível haver disputa justa nesse caso.


Você diz no livro que, atualmente, pedala só de vez em quando. Voltaria a se interessar pelo ciclismo se pudesse retornar às competições?

Não competiria mesmo assim. Só entraria em uma prova agora se fosse para ajudar pessoas – seja para arrecadar fundos para uma instituição de caridade ou guiar um cego numa corrida, por exemplo. Caso contrário, estarei focado em orientar ciclistas a darem seu melhor somente por amor ao esporte.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2013)







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