Por uma sociedade mais alternativa

Dois irmãos norte-americanos construíram as próprias bicicletas e saíram para um rolê de dois anos por seu país. A intenção era uma só: descobrir – e conviver o máximo possível – com diferentes estilos de vida


Por Mario Mele
Fotos: Irmãos Hussin


LAVANDO A ALMA: Depois de uma semana pedalando pelo deserto sem tomar banho,
Noah e Tim dão mergulho na fonte terminal de Langford, no Texas


OS IRMÃOS TIM E NOAH HUSSIN são herdeiros do famoso “sonho americano” – a utopia da igualdade de oportunidades pregada nos Estados Unidos desde os tempos dos primeiros colonos e até hoje ideal importante da nação. Criados no interior da Flórida, eles pensavam que tudo seria simples quando chegassem à idade adulta: ingressariam numa faculdade, construiriam uma carreira a partir de seu próprio esforço, casariam, financiariam uma casa e a entupiriam de equipamentos eletrônicos de última geração. Nos finais de semana, para celebrarem o american way of life, ainda fariam a alegria dos filhos em alguma lanchonete não muito distante.

Nos últimos dois anos, no entanto, Tim, de 27, e Noah, de 30, abdicaram do conforto e da segurança para morar na estrada. Em cima de bicicletas que eles mesmos construíram – com o reaproveitamento de materiais –, percorreram mais de oito mil quilômetros cruzando os Estados Unidos de leste a oeste. Diferentemente de Christopher McCandless, o herói de Na Natureza Selvagem que foi em busca da satisfação pessoal solitária, os irmãos quiseram dividir a experiência, registrando em foto e vídeo os modos alternativos de vida com os quais depararam. Eles agora estão empenhados na produção de um longa-metragem e de um livro, que deverão ser lançados até o começo do ano que vem.


NADA SE PERDE: Rob é um dos 17 moradores de uma comunidade da Carolina do Norte
que sobrevive do lixo. Nesta foto, ele tira a parte de um urso que tinha sido atropelado e
morto na rodovia; Acima, a Natchez Trace Parkway, no Mississippi, é um bela rodovia
sem nenhum estabelecimento comercial


Tim e Noah testemunharam a satisfação de comer uma refeição plantada e colhida com as próprias mãos, dividiram alegrias e tristezas de comunidades autossuficientes e, dessa forma, acreditam ter vivido o verdadeiro espírito de uma “Nova América” – como eles gostam de dizer, a “América Reciclada”.

Na viagem, os irmãos também perceberam que a estrada é muito mais do que uma ligação entre dois pontos: é o caminho que leva milhares de pessoas a se desconectarem de velhos hábitos a fim de voltarem para si mesmas, para a terra e para o próximo. Uma inspiração que brotou das músicas de Bob Dylan e dos livros de Jack Keuroac, como eles admitem na entrevista a seguir.


POUCOS E BONS: Os irmãos também registraram comunidades isoladas que são felizes
apenas pelo convívio com o lugar onde moram e entre eles, como esta no oeste do Texas


GO OUTSIDE O filme é para mostrar que o sonho norte-americano de igualdade de oportunidades está ultrapassado?

NOAH HUSSIN Queremos mostrar que, ao longo da história, o “sonho americano” tem recebido significados diferentes: sob um determinado ponto de vista, era substituir os antigos modos de vida considerados opressivos ao ser humano. Atualmente, porém, tem mais a ver com segurança, em encontrar um lugar confortável para se viver. Acontece que, ao se sentirem presos em sua própria jaula, muitos norte-americanos saíram em busca de algo novo. Apesar de a maioria ainda ter medo de perseguir os próprios sonhos, esperamos mostrar que há grupos que mantêm essa intenção bem viva na América. Quando superamos o medo do desconhecido, nos surpreendemos com o que somos capazes.


Construir as próprias bicicletas e viajar com elas é para fazer sentido com uma das mensagens que o filme quer passar: a noção de sustentabilidade?

Viajar de bicicleta permitiu, de fato, nos conectarmos com os lugares por onde passamos e com as pessoas que nos ajudaram a construir essa história. Em um carro, é fácil dirigir centenas de quilômetros, você quase não percebe o que está a seu redor. Em uma bicicleta, você vive cada quilômetro, percebe as mudanças sutis na cultura e na paisagem, sua viagem se torna profundamente clara. É também muito gratificante construir seu meio de transporte e usá-lo para percorrer grandes distâncias. O melhor é que o único combustível do qual precisávamos era comida. Foi dessa forma que percebemos o quão grande nosso país realmente é.


Qual é o estilo de vida mais diferente que vocês encontraram nessa viagem?

Há diversos estilos de vida diferentes e interessantes, cada um a sua maneira. Uma comunidade inesperada que encontramos foi no Cinturão da Bíblia, na zona rural do Tennessee do Leste. Nos últimos 30 anos, gays radicais têm ocupado aquela área, criando espaços seguros para a comunidade GLBT aprender sobre cultura de subsistência e formar sua própria identidade. E essa comunidade prospera numa das regiões mais conservadoras do país.


Que outros grupos ficaram marcados na memória de vocês dois?

Também encontramos, numa região deserta do extremo oeste do Texas, uma antiga cidade fundada por mineradores de mercúrio no fim do século 19 e abandonada logo depois da Segunda Guerra. Atualmente ela é habitada por pessoas que utilizam somente recursos naturais: a eletricidade é gerada a partir do sol, as casas são construídas por eles mesmos desde o alicerce, os alimentos são cultivados pela própria comunidade. São as pessoas mais compassivas e, ao mesmo tempo, individualistas que já conhecemos. Todos esses exemplos nos ensinaram muito sobre uma nova visão de mundo: se um grupo de pessoas acredita e se dedica a uma ideia, coisas positivas incríveis podem acontecer, mesmo que num primeiro momento pareça algo completamente absurdo. São essas vozes, sobre novos ideais, que queremos compartilhar.


Quem inspirou vocês a tentar enxergar o mundo sob um novo ângulo, na música, no cinema ou na literatura?

Todas as formas de arte que nos levam a ser mais abertos, críticos, compassivos e confiantes nos inspiram. Se a arte tem uma função, é para mudar algo que está dentro de nós, mas que dificilmente perceberíamos sem ela. Nesse projeto, quem mais nos inspirou foram escritores e músicos dos anos 1950 e 1960, como Jack Kerouac, Hunter S. Thompson e Bob Dylan.


Qual foi a rota que vocês percorreram?

Partimos de Asheville, na Carolina do Norte, rumo ao oeste, e cruzamos a cordilheira dos Apalaches, sentido Tennessee. De lá fomos para Nova Orleans passando por Austin, no Texas, e continuando pelo extremo oeste desse estado. Em seguida, pedalamos rente à fronteira com o México até Tucson, no Arizona. De lá, fomos para noroeste, chegando à costa da Califórnia na altura da Big Sur, por onde pedalamos até São Francisco.


Vocês também estão interessados em culturas diferentes fora de seu país? Já viram algum movimento social como o Occupy [que ficou famoso ao ocupar Wall Street em 2011] acontecendo num outro país?

Eu sou bem interessado em estilos diferentes de vida no mundo. Morei em Berlim, na Alemanha, por dois anos, onde experimentei culturas alternativas inspiradoras. Sempre me impressionei com as celebrações e manifestações do Primeiro de Maio, em Berlim. A cidade toda fica tomada por um forte evento político-social. Espero que as lições do Occupy transcendam as fronteiras nacionais, mas cada cultura tem que encontrar sua própria resposta para suas frustrações. Qualquer evento que permita uma conversara aberta sobre a vida é um passo na direção certa.


IRMANDADE: Os irmãos Hussin jantando na beira da estrada; abaixo, celebrando mais
um longo dia de pedal


TIM Gosto de descobrir novas culturas ao redor do mundo. Passei três meses na Bolívia filmando índios que trabalham em minas de prata e fiquei fascinado com o orgulho que a comunidade tem, apesar das difíceis condições de vida. Esses mineiros têm voz política, fazem protestos, bloqueios e greves.


Vocês concordam com posturas radicais como a do filósofo John Zerzan, que prega a volta ao primitivismo, inclusive como forma de salvar o planeta?

NOAH: Eu acho que pensamentos desse tipo são muito inspiradores, mas irrealistas. Como seres humanos, nunca iremos retroceder em nada, estamos sempre seguindo em frente. Se ficarmos preso ao passado, nunca aprenderemos a enfrentar os desafios futuros. Por outro lado, é importante aprender com a sabedoria da história para perceber que muitas práticas consideradas “primitivistas” são mais gratificantes e sustentáveis do que costumes contemporâneos. O desafio é incorporá-las em nossas vidas, encontrar as ferramentas certas para adotar boas lições do passado em pleno século 21.


Vocês pretendem investir em outro projeto para defender a mesma causa?

TIM: Estamos tão envolvidos com a produção do filme, do livro e do site, que deverão ser lançados no início de 2014, que ainda não pensamos seriamente em projetos futuros. Mas não custa sonhar.


Para saber mais e apoiar o projeto, acesse americarecycled.org

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de abril de 2013)







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