A cultura da bike nunca esteve tão forte em cidades como São Paulo, graças à criação de projetos como a ciclofaixa, que tem conquistado mais ciclistas e aquecido o mercado do setor
Por Bruno Romano AO SABEREM QUE A PREFEITURA removeria uma faixa exclusiva para bicicletas, cidadãos canadenses não tiveram dúvida: saíram à rua e bloquearam o serviço, chegando a se deitar na frente dos caminhões que faziam o trabalho. O protesto pacífico movimentou a importante Jarvis Street, em Toronto, ganhou repercussão internacional e levantou novamente o debate local, no fim do ano passado. A discussão tem se tornado uma constante em grandes centros urbanos. Enquanto alguns já encontraram suas fórmulas de sucesso, muitos começam a enxergar agora que a presença de boas vias de bike pode trazer melhoras não só na mobilidade, como também na qualidade de vida geral – além de aquecer diversos segmentos do mercado.
“Cidades que servem de exemplo, como Amsterdã, têm sempre sua história ligada a uma forte pressão dos habitantes por melhoras no sistema viário. A bicicleta passa se tornar uma necessidade, e as soluções vão aparecendo na medida em que a cultura da bicicleta ganha força”, diz Arley Ayres, diretor da São Paulo Turismo, a SPTuris, empresa envolvida diretamente na concepção e manutenção da Ciclofaixa, uma iniciativa criada em 2009 que promove o pedal aos domingos e feriados para os paulistanos.
Dos 10 quilômetros traçados no início do projeto, ao redor dos parques do Ibirapuera e do Povo, a Ciclofaixa atinge hoje 119,7 quilômetros, segundo dados da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), que coordena o trânsito na cidade. A última pesquisa da SPTuris, realizada em novembro de 2012, contabilizou cerca de 120 mil adeptos por dia, com uma nota média de 8.8 para a aprovação do serviço, em uma escala de zero a dez. “O crescimento da Ciclofaixa acabou sendo facilitado a cada novo trecho implantado. Tudo por causa da ótima aceitação da população, que está cansada de viver espremida entre os sete milhões de carros existentes na cidade.”
Para o gerente-executivo Bruno Civolani, de 34 anos, a Ciclofaixa teve um impacto profundo em sua busca por condicionamento físico e lazer. “Foi um importante propulsor para eu praticar mais o esporte”, conta ele, que integra as estatísticas de 72% de usuários masculinos, a maioria entre 30 e 50 anos. De acordo com os números da SPTuris, 70,4 % dos adeptos pedalam no circuito todos os fins de semana. As mulheres, apesar de em menor número, também têm aparecido em peso, caso da jornalista Maria Fernanda Ribeiro, de 32 anos, que desde fevereiro de 2012 pedala todo domingo na ciclofaixa de São Paulo. No início, ela aguentava rodar apenas uns 30 quilômetros, mas hoje já triplicou essa distância, em rolês dominicais que chegam a durar seis horas, com direito a paradas para tomar água de coco e curtir a cidade. “Sou do interior e me mudei faz pouco tempo para cá. Pedalar aos domingos em São Paulo é uma forma de eu conhecer a cidade com calma, de ouvir músicas que gosto e aproveitar um momento meu, de relax”, diz ela.
“PODE SER UM COMEÇO, UM BELO ÍNDICE de que há, sim, demanda por ciclovias e ciclorrotas. Mas acho importante separar as coisas: ciclofaixas são estruturas de lazer que convidam ao uso da bicicleta e à descoberta de novas possibilidades de ocupar e percorrer a cidade. Não são medidas de mobilidade urbana”, sustenta Natália Garcia, responsável pelo projeto Cidade para Pessoas, que analisa e reúne informações sobre planejamento urbano, mobilidade e educação no trânsito pelo mundo. Já ciclorrotas são os melhores caminhos para se trafegar de bicicleta numa cidade, geralmente com sinalização (como uma bike pintada no chão) para carros avisando sobre o compartilhamento da via com ciclistas
Além dos exemplos do exterior como Bogotá, na Colômbia, que se transformou em uma cidade com 300 quilômetros permanentes de ciclovias, Natália foi a fundo no assunto dentro do Brasil. Os exemplos são muitos: da pioneira Curitiba, bem planejada desde a década de 1970, mas que sofre para dar conta da atual demanda, passando pelo Rio de Janeiro, com a maior malha cicloviária do país, ainda voltada mais para o lazer do que de fato para mobilidade. Para ela, Rio Branco, no Acre, “por mais improvável que pareça”, tem o status de “melhor cidade para se pedalar do país”, graças às adequações feitas, pouco a pouco, na capital.
Se a população adere e aprova as iniciativas de norte a sul do país, o mercado especializado também aproveita o embalo. “Sem dúvida a Ciclofaixa contribuiu para o crescimento em nossas vendas, especialmente nas bikes e equipamentos de entrada”, diz Alberto Perez, gerente de vendas da Specialized do Brasil, que não quis revelar números. Rapha Caliento, gerente comercial da Scott/Topeak Brasil, que importa produtos das duas conceituadas marcas ligadas ao universo das bikes, concorda. “A demanda hoje é maior do que a nossa oferta. Temos algumas linhas de acessórios que cresceram 100% nas vendas”, conta. “Sem dúvida, a base da pirâmide de consumo é a bicicleta e os acessórios com preços de entrada. Percebemos que muitos desses novos adeptos acabam limitando o orçamento, não necessariamente por poder aquisitivo, mas por ser uma nova atividade. Só depois que vivenciam a bicicleta sentem necessidade de algo mais sofisticado.”
Foi exatamente o que aconteceu com o gerente-executivo Bruno. No começo, para testar a Ciclofaixa, ele usou uma bicicleta que estava parada havia quase dois anos. “Como gostei, fui em busca de um novo equipamento, mais adaptado ao meu tamanho e peso, o que fez toda diferença em termos de conforto e, principalmente, no prazer ao pedalar. Acabaram, por exemplo, as dores na coluna e nos joelhos”, diz ele.
Segundo a SPTuris, 91,3 % dos usuários pedalam com bikes próprias. A empresa, no entanto, acredita que outro perfil também possa crescer, de pessoas que alugam bikes para conhecer melhor a cidade nos dias de descanso. Por isso iniciou recentemente um trabalho para promover a integração do turismo de São Paulo com a Ciclofaixa. “Desde o início, percebemos um considerável aumento nas atividades de ‘city tour’ e de pacotes de lazer relacionados à bicicleta. Agora queremos fortalecer o aluguel ou empréstimo de bikes nos hotéis da cidade, principalmente nos que já estão dentro do circuito.”
A PROPOSTA DE USAR mais bike no dia-a-dia também contagiou Gustavo Angimahtz, que fundou a Pediverde-Cicloturismo, em São Paulo, empresa que se dedica a organizar viagens gratuitas para iniciantes e iniciados interessados em trajetos um pouco maiores. O trabalho é voluntário e visa promover deslocamentos em bicicleta, com roteiros que já começam a ultrapassar os 200 adeptos. Preocupado com a segurança dos ciclistas, tema que se tornou recorrente com o aumento de vias específicas para bikes nos grandes centros, Gustavo acredita que é importante separar bem as atividades de lazer, locomoção e esporte: “O número de ciclistas aumentou, o mercado está aquecido e a bicicleta ganha espaço dia após dia. Contudo o governo municipal não pode se restringir apenas a iniciativas como a Ciclofaixa. É preciso expandir esse projeto e começar a despertar a ânsia do transporte, não só do esporte.”
O período de adaptação às vias de bicicleta não é exclusividade do Brasil. Todos os relatos de cidades que apostaram na bike dão conta desse processo natural, que passa por temas como a sinalização correta, os acessos adequados, a fiscalização e a qualidade do planejamento e da execução das obras. De acordo com dados da CET, de 14 de maio a 24 de agosto de 2012, foram registradas 212 autuações por desrespeito a quem anda de bicicleta em São Paulo. A Companhia aponta também números expressivos de acidentes: 93 mortes de ciclistas em 2005, número que diminuiu para 49 vítimas nos anos de 2010 e 2011, última medição oficial.
A CET promove atualmente o Programa de Segurança ao Ciclista, que, segundo a entidade, atua tanto na engenharia (vias voltadas para bike), como na fiscalização (multas específicas) e na educação, com programas de treinamento para agentes em relação ao uso da bicicleta na cidade. “Gosto de pedalar na Ciclofaixa, mas isso não melhora meu uso diário de bicicleta na cidade, já que não é uma estrutura física, e só acontece nos finais de semana. Por outro lado, a cultura da bicicleta se fortalece, o que já é um ganho”, ressalta Natália Garcia, do Cidade para Pessoas.
Ecoando os protestos da Jarvis Street, a adesão de novos “bikers” e o crescimento do mercado comprova o que já não dá mais para negar: uma evolução – e por que não dizer uma revolução? – das bikes está acontecendo em solo brasileiro. Aos poucos, as bicicletas vão encontrando seus caminhos nas vias urbanas, provando que uma metrópole pode ser muito mais viável e plural quanto mais ciclistas tiver.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2013)
Fotos Alexandre Cappi
PROGRESSO: Ciclovia da marginal Pinheiros, que virou local de treino e passeios
GRANDE PASSO: Em Campinas, a prefeitura diminuiu o espaço dos carros para criar
ciclovias permanentes
AMSTERDÃ É AQUI: Paulistanos aproveitam a ciclofaixa; acima, estacionamento público
de magrelas em SP