Surf no fim do mundo

Um grupo de californianos apaixonado pelo mar descobre as ondas e as belezas naturais da misteriosa península russa de Kamchatka

Por Maria Clara Vergueiro


NEM INDONÉSIA, NEM HAVAÍ: quando o fotógrafo Chris Burkard, de 24 anos, pensou em um destino para uma viagem de surf perfeita entre amigos, o dedo indicador foi parar lá no alto do canto direito do mapa-múndi – mais exatamente na península de Kamchatka, na Rússia. Trata-se de um longínquo apêndice de terra, cercado pelas gélidas águas das correntes subárticas e envolvido por insistentes ventos siberianos. Adicione a esse cenário um cinturão composto por 159 vulcões (29 deles em atividade), florestas de coníferas, rios carregados de salmão, mares apinhados de baleias, vales habitados por ursos, lobos, raposas e alces. O que esse grupo de surfistas estava mesmo pensando em fazer em terras tão selvagens, em nada parecidas com as areias brancas e ondas quentes das ilhas do Pacífico?

Durante quase um ano, Chris e o amigo jornalista Ben Weiland, que o ajudou a idealizar a expedição, estudaram meticulosamente aquelas bandas do planeta, incluindo suas marés, clima, possibilidades de acomodação e de locomoção. Depois, decidiam reunir surfistas versáteis e aventureiros, que não se importariam com a inconstância dos swells, muito menos em ter de dormir 13 dias em um camping montado por eles na costa, bem perto do mar (o que evitaria deslocamentos desnecessários pelas duas únicas estradas da península). O período escolhido, claro, foi o verão, quando as temperaturas ficam entre 15°C e 20°C, mas que ainda assim não desfazem a neve no topo das montanhas nem disfarçam os 4°C da água do mar. Os eleitos para integrar o time foram Cyrus Sutton, de 29 anos; Dane Gudauskas, 28; Trevor Gordon, 22; e Keith Malloy, 39 anos.

Dos quatro, apenas Keith e Cyrus já chegaram a integrar o WCT, o panteão do surf profissional, mas abandonaram as competições para adotar um estilo de esporte mais livre, escolha também de Dane e Trevor, que levam a vida viajando e estampando capas de revista. Dane tem especial talento e interesse por gastronomia e Trevor, pelas artes. Cyrus é criador do blog Korduroy (korduroy.tv/blog), que compartilha ideias e conteúdos da cultura do surf e foi eleito o melhor blog especializado pela revista Surfer. Keith, o mais veterano deles, é o diretor do documentário Come Hell or High Water, sobre surf de peito (o famoso “jacaré” da sua infância) e integrou o time do filme 180° South. Como Chris, todos são californianos e estão acostumados a ver o mundo e seus desafios de perspectivas variadas. “Para mim, as maiores inspirações acontecem quando eu saio da minha zona de conforto”, conta Chris, um fotógrafo premiado.


TERRA ESTRANGEIRA: Praia completamente deserta de Kamchatka; de cima do
jipe soviético, os surfistas avistam um dos 159 vulcões da península


A turma partiu de Anchorage, no Alasca, direto para Petropavlovsk, principal cidade da península de 464 mil quilômetros quadrados (o equivalente ao território da Papua-Nova Guiné, país próximo à Indonésia e Austrália). A península é povoada por apenas 320 mil habitantes, a maioria composta por índios Koryaks, de feições muito parecidas com as dos japoneses. Para levar os surfistas até a costa, a equipe contava com um jipe soviético, guiado pelo motorista russo Sergei, e com Lena, a tradutora. Na Segunda Guerra Mundial, Kamchatka foi declarada território militar, e ficou fechada para cidadãos russos e estrangeiros até 1990. “A atmosfera da guerra e seus efeitos ali foram apenas levemente descascados, superficialmente retirados”, relata Chris, que já fotografou as belezas e contradições de países como Nicarágua, Índia, Panamá, Islândia, Irlanda e México.

Munidos, cada um deles, de uma queda especial pelo minimalismo e pelo estilo “faça você mesmo”, os amigos montaram suas barracas na praia. Dane acordava encantado com a possibilidade de esticar os braços e catar blueberries para o café-da-manhã. “Ficavam do lado da minha barraca!”, vibra ele ao relembrar daqueles dias. Cyrus pescava, com as próprias mãos, os salmões que pipocavam no rio vizinho (apenas um dos 14 mil que existem na península) e grelhava-os para o jantar. Trevor desenhava as cenas bucólicas nas lonas que levou para pintar com os dedos. Keith entrava correndo no mar no segundo em que a maré virava, munido de uma grossa roupa de borracha e de uma das pranchas que levara para adaptar às muitas facetas daquelas águas. Em Kamchatka, as correntes vêm do sul e transformam a angulação das ondas, fazendo com que quebrem lateralmente à praia. Do alto de um helicóptero, Trevor pôde comprovar a especificidade daquelas ondas “interessantes”, como ele classificou as ondulações.


TÚNEL D’ÁGUA: Cyrus descola um tubo russo

Enquanto tudo isso acontecia, Chris registrava com sua câmera as experiências do grupo, para as fotos que depois estampariam as páginas da revista Surfer. Apesar da pouca idade, o californiano criou estilo próprio e inconfundível, desde quando ainda era um estagiário na revista especializada Transworld Surf, onde foi introduzido ao mundo da fotografia. “Quando estou ao ar livre é quando me sinto mais vivo. O resultado dessa interação é o que torna a imagem especial. E eu procuro levar essa mesma abordagem para minhas fotos de ação”, explica Chris, que não só conseguiu revelar o potencial surpreendente das ondulações de Kamchatka, como também o espírito despretensioso da viagem. Com baixas expectativas, o líder da expedição estava preparado para chuvas e ondas inconstantes. Alguns momentos de beleza já valeriam a investida. “Em vez disso, o clima estava sensacional, e eu descobri paisagens ainda mais bonitas do que a minha imaginação ousaria sonhar”, descreve. “E eu adoraria voltar lá para surfar aquelas ondas novamente”.


ÁLBUM: De cima para baixo, galera no jantar; Dane brinda com o pescador local

>> Kamchatka de perto

Dicas e informações importantes para programar uma viagem (ainda que imaginária) até essa terra distante


> Experimente os dogsleds, os trenós puxados por cachorros. São os “táxis” de lá. Pesca de salmão, observação de ursos e escalada em gelo são outras atividades comuns.


> Prepare-se para levar uma canseira dos russos, que são bem rigorosos com a liberação dos vistos para se entrar na península.


> Não existem estradas que conectem Kamchatka à Rússia. É preciso chegar de avião (desde Moscou ou São Petersburgo, por exemplo) ou de barco das ilhas Kuril, que têm o território disputado entre japoneses e russos até hoje.


> Tremores de terra são comuns na região: 10% dos vulcões ativos do mundo estão em Kamchatka (19 deles são patrimônio da Unesco). O mais alto chega a 4.750 metros.

> Leve na mala equipamentos de pesca, pranchas de diferentes tamanhos, botas de borracha, impermeáveis de todos os tipos e luvas grossas.


> Procure uma operadora local. Até Chris Burkard e sua trupe pediram ajuda. Uma opção é a explorekamchatka.com

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de fevereiro de 2013)