Viemos ao mundo com habilidades natas para a escalada, só que acabamos perdendo-as ao longo dos anos; saiba por que você deve não apenas deixar, mas incentivar seu filho a subir na estante de casa ou se empoleirar na árvore da praça
(Foto: Oliver Renck) SER CRIANÇA É SER ESCALADOR. Em julho de 2012, o artigo publicado pela especialista em treinamento desportivo Debora Hashiguchi no site Alta Montanha, intitulado “Você foi feito para escalar”, colocou em palavras o que algumas pessoas mais atentas já sabiam por intuição: não é mera coincidência passarmos nossa infância tentando subir em árvores ou fazendo estripulias com os braços e pernas em estantes, muros e playgrounds. Segundo a estudiosa, a escalada é parte natural do desenvolvimento humano; nascemos com habilidades naturais para a modalidade, mas vamos nos esquecendo delas ao longo da vida em uma sociedade que não dá valor aos ensinamentos que esse esporte oferece. De acordo com Debora, durante a fase inicial da vida o ato de escalar não apenas fortalece o corpo como amplia as possibilidades de movimentos para além dos que realizamos quando andamos, corremos ou saltamos. Fora o aspecto motor, a capacidade cognitiva também é bastante exigida na escalada. É preciso concentração, e a todo o momento lida-se com desafios importantes que exigem raciocínio lógico com o objetivo de favorecer o movimento. “Mas, culturalmente, perto dos sete anos de idade deixamos de lado nossas habilidades de locomoção com os braços, que se perdem com o tempo. A partir dessa época, passamos a viver verticalmente”, diz a pesquisadora. É nessa fase acontece a chamada “poda neurológica”, ou seja, os neurônios sofrem modificações importantes: eles se fortalecem quando utilizados, e morrem quando caem em desuso. “Esse pode ser o ‘segredo’ dos talentos-mirins da escalada. Muitas de suas conexões nervosas foram preservadas por conta do esporte, e escalar para eles continua sendo tão natural como quando eram bebês”, afirma Debora. Veja o exemplo da estrela norte-americana da escalada Alex Honnold, hoje com 27 anos de idade e grande destaque da modalidade no mundo: desde muito jovem, ele não podia ver uma estante ou muro que já queria subir. Sua mãe, no entanto, não cortava o barato do filho. “As pessoas gritavam: ‘Cuidado!’. Eu mesma tinha medo de que ele se machucasse, mas logo percebi que o Alex sabia o que estava fazendo, então deixava-o fazer o que queria para ver até onde chegaria”, disse a mãe, Diedre Wolownick, em depoimento no documentário Alone on the Wall, que conta a história de Alex. Nos últimos tempos, tem sido curioso o surgimento de talentos-mirins desse esporte, como a norte-americana Ashima Shiraishi. Com apenas 11 anos, a pequena já tem fama por realizar feitos dignos de gente grande, como vencer o boulder Power of Silence, no setor de Hueco Tanks, no Texas, um projeto de graduação v10, segundo a tabela que mede o grau de dificuldade dessa modalidade, na qual se escalam rochedos relativamente baixos, mas bastante técnicos.
Para Dimitri, a prova viva da eficiência da escalada foi ver um de seus alunos, de 14 anos de idade e com síndrome de Down, superar o medo e vencer uma rocha de 30 metros de altura em um único dia. “Tenho duas crianças em casa, e posso dizer na teoria e na prática que aquela que escalar desde cedo vai mostrar um comportamento diferente ao longo da vida. Acredito que a escalada pode mudar conceitos já estabelecidos pela literatura científica e ampliar os horizontes”, diz ele. Apesar dos benefícios da escalada, um estudo realizado no ano passado nas 54 unidades do Sesi (Serviço Social da Indústria) mostrou que mais de 90% das crianças nunca teve nenhum tipo de contato com a modalidade. Debora explica que um dos motivos para esse distanciamento ainda pode ser a existência de mitos e lendas sobre os “perigos” que cercam a modalidade, em um país sem nenhuma tradição nesse esporte. Mas pode ser que essa realidade mude num futuro próximo, dependendo da popularização dos esportes outdoor e do incentivo de professores e pais. Dono da Crux Ecoaventura, escola de escalada aberta em 1998 no Rio de Janeiro, o carioca Marcelo Castro percebeu, recentemente, um aumento considerável no número de crianças interessadas em realizar aulas técnicas de escalada. “Temos alunos dos 6 aos 15 anos de idade. Não existe hora certa para começar. Porém um psicológico mal trabalhado ou esforços desproporcionais podem frustrar e levar ao abandono da prática. É preciso existir sempre o prazer de escalar para que a criança queira continuar por vontade própria”, diz ele. Um dos alunos de Marcelo, o brasileiro Táltos Smith, de apenas 7 anos, apareceu no mês passado no programa Zona de Impacto, do canal por assinatura SporTV. No episódio, ele venceu os 120 metros de altura da tradicionalíssima via dos Italianos, no morro do Pão de Açúcar. E impressionou pela calma e plena consciência do uso dos equipamentos e dos desafios na rocha. “Força muscular, equilíbrio, resistência, tranqüilidade e saúde mental são qualidades importantes para nossa vida em qualquer situação. Com a orientação correta, descobrimos essas habilidades adormecidas dentro de nós. Assim conseguirmos ir além de nossos limites e limitações. É uma ferramenta valiosa para a vida”, diz Timi Smith, mãe de Táltos, que influenciada pelo filho também começou a escalar. Na casa dos Smith, existe apenas uma regra: ele só pode escalar se tiver bons resultados na escola. Apesar da idade, Táltos também já pensa em seguir carreira no esporte e, quando crescer, quer ajudar seu treinador. Mas seu filho não precisa se tornar um atleta profissional da escalada para aproveitar os benefícios do exercício físico e mental. O importante mesmo é, em meio a tantas modalidades diferentes, encontrar uma que se encaixe em seu perfil e, o mais importante, lhe proporcione prazer. Naturalmente, ele ficará mais forte, autoconfiante e saudável. “Não deixe essas habilidades de lado. Vamos escalar, vamos ser felizes”, escreveu Debora em seu artigo. Da próxima vez que você vir uma criança tentando subir no armário de casa, fique por perto não para censurá-la, mas para dar toda a força e segurança necessária para que ela escale até o fim.
Subindo pelas paredes
Algumas dicas do professor Marcelo “Crux” Castro para quem quer iniciar uma criança na escalada 1. Não existe idade certa para se começar na escalada. Mas é interessante contar com a ajuda de um instrutor que possa apresentar corretamente o esporte à criança ou jovem.
2. Deixe a criança confortável para continuar ou parar; não a obrigue a nada, caso contrário ela criará resistência psicológica.
3. Envolva a família. É bem mais difícil quando os pais não praticam nenhum esporte.
4. Leve-a para a natureza sempre que puder, para que seu filho desfrute-a e aprenda a respeitar seu “playground natural”.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de janeiro de 2013)
ESSA VAI LONGE: Aos 11 anos, a norte-americana Ashima
Shiraishi já virou lenda na escalada por suas conquistas adultas
AH, MULEKE: O brasileiro Táltos Smith, de apenas 7 anos, escala o morro do Pão de Açucar, no RJ